A noção de convênio, no âmbito da literatura do direito administrativo, precisa ser revisitada, especialmente em função das inovações introduzidas no direito positivo pela Emenda nº 19, de 1998, que deu nova redação ao artigo 241 da Constituição Federal, e pela lei nº 11.107, de 4 de abril de 2005, que tem sido chamada “Lei dos Consórcios Públicos”.
Normalmente, o convênio é visto na literatura como um ajuste de cooperação entre dois partícipes estatais, ou entre um partícipe estatal e outro privado, para o alcance de objetivos comuns. Costuma-se destacar a sua característica da precariedade, tendo em vista a circunstância de ser denunciável a qualquer tempo, por qualquer dos partícipes. Ademais, é freqüentemente identificado por oposição ao consórcio, ou, ainda, por oposição ao contrato.
Diz-se que o convênio, quando entre entes estatais, envolve partícipes de níveis diversos da federação (município com Estado, União com município etc.), ao passo que o consórcio envolve partícipes do mesmo nível federativo (município com município, Estado com Estado).
Diz-se ainda que o convênio envolve vontades convergentes, é dizer, objetivos comuns aos partícipes, ao passo que o contrato encerra vontades antagônicas, ou seja, objetivos opostos buscados por cada parte. Finalmente, diz-se que os convênios prescindem de autorização legislativa para que sejam celebrados, sob pena de interferência indevida do Legislativo em atividade típica do Executivo.
Ocorre que as inovações introduzidas no direito positivo desmentem ou, quando menos, põem em dúvida essas afirmações aparentemente sedimentadas na literatura.
Primeiramente, nota-se que o regime jurídico do convênio não é tão único quanto faz crer a síntese doutrinária. Se cabia falar genericamente em “convênio”, até há bem pouco tempo, como se invariavelmente estivesse em pauta o mesmo regime jurídico, a partir da lei 11.107/2005 ficou ainda mais evidente a insuficiência desta afirmação genérica. Isso porque a lei tratou, ainda que de maneira caótica, dos convênios de cooperação a que alude o artigo 241 da Constituição Federal, e ao fazê-lo imputou-lhes um regime jurídico especial.
De fato, o convênio de cooperação mencionado no artigo 241 da Constituição, segundo a disciplina que lhe foi dada pela lei 11.107, é insuficiente isoladamente para a instrumentalização do ajuste, na medida em que a sua celebração deve ser secundada por contrato de programa. Há previsão legal, portanto, de uma espécie de convênio que, diferentemente de outros do mesmo gênero, não basta por si só, mas é apenas instrumento que precede a celebração de outro ajuste ao qual se deu o nome de contrato de programa. Esse contrato de programa, de acordo com a lei 11.107, é regido pela legislação de concessões e permissões de serviços públicos.
A circunstância de o convênio de cooperação ser secundado por um contrato de programa infirma a dita precariedade geral dos convênios, pois dá mais firmeza ao acordo celebrado. De fato, a lei 11.107 estabelece que permanecem válidas as obrigações constituídas por contrato de programa mesmo quando extinto o convênio em que tal contrato se lastreou. Este novo sistema do “convênio seguido de contrato de programa” é novidade diante da formulação tradicional da noção de convênio, denotando antes a firmeza do que a precariedade da avença.
Ademais, a Constituição Federal já deixa claro que os convênios de cooperação, a que se refere o artigo 241, podem ser feitos entre quaisquer entes da federação —pouco importando se da mesma esfera ou de esferas distintas. Aliás, o mesmo se passa com relação aos consórcios públicos: o comando constitucional permite depreender que é permitida a sua celebração mesmo entre entes pertencentes a esferas federativas distintas, ao contrário do que se apregoava na literatura.
Com relação à tradicional oposição entre convênio e contrato, já se observava, mesmo antes da lei 11.107, iniciativas doutrinárias voltadas à sua reformulação, apregoando-se mesmo que as diferenças supostamente existentes não seriam perfeitamente identificáveis na prática. De resto, a utilização do binômio “convênio versus contrato” para fins de identificação da existência, em cada caso, do dever de licitar, já vinha sendo cada vez mais questionada, com base na razão contundente de que não é o mero fato de afirmar-se que uma avenca é contrato, ou que ela é convênio, que atrai ou deixar de atrair a incidência do dever de licitar.
Mas o fato é que, com a lei 11.107, temos agora um convênio de cooperação secundado por um contrato. E, em matéria de licitação, a própria lei fala em dispensa de licitação para a celebração desses ajustes. Tudo isso demonstra ter sido perdido, nesse caso concreto, o sentido da discussão “convênio versus contrato”, já que aqui eles têm que andar juntos.
Finalmente, o texto constitucional, no artigo 241, exige lei para a celebração de convênio de cooperação ou consórcio público. A afirmação genérica de que a celebração de convênio prescinde de lei autorizativa, embora assentada em jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, merece ser repensada para o caso específico dos convênios de cooperação e consórcios públicos, tal qual disciplinados no artigo 241 da Constituição. É que quando o dispositivo prevê que os entes da federação “…disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação, autorizando…” —é este o trecho que importa realçar aqui—, parece estar tratando, a um só tempo, de duas competências legislativas.
De um lado, trata-se de competência concorrente para disciplinar as contratações administrativas (cabendo à União, assim, formular normas gerais a respeito, de caráter nacional, válidas para todos os entes federados); de outro, trata-se de competência para editar lei autorizativa para a celebração desses ajustes por cada ente federado, no exercício da respectiva autonomia político-administrativa. Em suma, não há espaço, ante a redação do artigo 241, para a idéia de que convênios de cooperação devem prescindir de autorização legislativa. Parece que, nesse caso, o constituinte quis o concurso da vontade do Legislativo com a atuação do Executivo na celebração das avenças.
Essas, enfim, são as inovações do direito positivo que desafiam os estudiosos à reconstrução da noção de convênio —especialmente à formulação de uma síntese que dê conta das peculiaridades mais importantes de cada espécie de convênio. O instituto do convênio, atentemos, está passando por uma reviravolta.
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Rodrigo Pagani de Souza é advogado do escritório Sundfeld Advogados, em São Paulo. Mestre em Direito do Estado pela USP, é coordenador e professor do Curso Anual de Direito Administrativo da SBDP (Sociedade Brasileira de Direito Público).