LUCIANO SAMPAIO GOMES ROLIM
Advogado em Recife
Atualmente, vive o Direito a era dos princípios, assumindo estes posição hegemônica na pirâmide normativa.
Diante desta constatação, faz-se mister, inicialmente, deixar assente uma noção acerca de tal categoria jurídica.
Princípios, no sentido jurídico, são proposições normativas básicas, gerais ou setoriais, positivadas ou não, que, revelando os valores fundamentais do sistema jurídico, orientam e condicionam a aplicação do direito.
Conforme averbou CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO (1), em lição lapidar:
“Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, dispositivo fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.
(…)Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.
Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada.”
Neste contexto, o Direito Constitucional contemporâneo acentua a força normativa dos princípios constitucionais, suplantando a doutrina positivista das normas programáticas.
De acordo com a lição de PAULO BONAVIDES (2), é na idade do pós-positivismo que tanto a doutrina do Direito Natural como a do velho positivismo ortodoxo vêm abaixo, em decorrência de reação intelectual comandada por RONALD DWORKIN, jurista de Harvard. Os princípios, então, passam a ser tratados como direito.
Destarte, é possível afirmar, juntamente com PAULO BONAVIDES (3), que a teoria dos princípios, depois de acalmados os debates acerca da normatividade que lhes é inerente, converteu-se no coração das Constituições.
Dentre os princípios que iluminam o novo Direito Constitucional, ganha cada vez mais relevo, inclusive na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o princípio da proporcionalidade.
É possível vislumbrar duas funções distintas desempenhadas pelo referido princípio no sistema normativo. Na primeira delas, o princípio da proporcionalidade configura instrumento de salvaguarda dos direitos fundamentais contra a ação limitativa que o Estado impõe a esses direitos.
Nesse sentido, sua aplicação tem por fim, segundo informa GERMANA DE OLIVEIRA MORAES (4), ampliar o controle jurisdicional sobre a atividade não-vinculada do Estado, vale dizer, sobre os atos administrativos que envolvam o exercício de juízos discricionários ou a valoração de conceitos jurídicos verdadeiramente indeterminados (conceitos de prognose), possibilitando a contenção do exercício abusivo das prerrogativas públicas.
De outro lado, o princípio em exame também cumpre a relevante missão de funcionar como critério para solução de conflitos de direitos fundamentais, através de juízos comparativos de ponderação dos interesses envolvidos no caso concreto.
Esta função é ressaltada por PAULO BONAVIDES (5), in verbis:
“Uma das aplicações mais proveitosas contidas potencialmente no princípio da proporcionalidade é aquela que o faz instrumento de interpretação toda vez que ocorre antagonismo entre direitos fundamentais e se busca daí solução conciliatória, para a qual o princípio é indubitavelmente apropriado. As cortes constitucionais européias, nomeadamente o Tribunal de Justiça da Comunidade Européia, já fizeram uso freqüente do princípio para diminuir ou eliminar a colisão de tais direitos.”
Neste sentido, o princípio em tela assemelha-se ao princípio da “concordância prática”, formulado por KONRAD HESSE, o qual aliás se acha de certo modo implícito no primeiro, consoante arguta observação de PAULO BONAVIDES (6).
No presente estudo, intentar-se-á fazer uma análise crítica, sobretudo à luz da jurisprudência do STF, do emprego do princípio da proporcionalidade no primeiro sentido mencionado, vale dizer, como mecanismo de tutela dos direitos fundamentais contra os abusos do poder público.
De início, impende registar não haver uniformidade na doutrina quanto à terminologia adotada. Pode-se afirmar, contudo, que as expressões mais utilizadas são, além de “princípio da proporcionalidade”, “princípio da proibição de excesso” e “princípio da razoabilidade”.
Sem embargo de opiniões em contrário, entendo não haver distinção essencial entre o princípio da razoabilidade e o princípio da proporcionalidade. Ambos funcionam como meios de controle dos atos estatais, através da contenção dos mesmos dentro de limites razoáveis e proporcionais aos fins públicos. De acordo com a lição de J. J. GOMES CANOTILHO (7):
“Através de standards jurisprudenciais como o da proporcionalidade, razoabilidade, proibição de excesso, é possível hoje recolocar a administração (e, de um modo geral, os poderes públicos) num plano menos sobranceiro e incontestado relativamente ao cidadão”.
Na verdade, como leciona LUÍS ROBERTO BARROSO (8), os princípios em questão diferem entre si pela origem, pois aquele surgiu no direito anglo-saxão, como face material da cláusula do due process of law, ao passo que o segundo desenvolveu-se a partir da doutrina alemã, ressaltando o autor que, em linhas gerais, ambos os conceitos são fungíveis. No mesmo sentido, JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO (9).
A propósito, o Supremo Tribunal Federal não estabelece distinção precisa entre os princípios em apreço. É o que se infere da ADIMC-1407 / DF (, Relator Min. CELSO DE MELLO, in verbis (10):
“ E M E N T A: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE -ELEIÇÕES MUNICIPAIS DE 1996 – COLIGAÇÕES PARTIDÁRIAS APENAS PARA ELEIÇÕES PROPORCIONAIS – VEDAÇÃO ESTABELECIDA PELA LEI N. 9.100/95 (ART. 6º) – ALEGAÇÃO DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PARTIDÁRIA (CF, ART. 17, § 1º) E DE VIOLAÇÃO AOS POSTULADOS DO PLURIPARTIDARISMO E DO REGIME DEMOCRÁTICO – AUSÊNCIA DE PLAUSIBILIDADE JURÍDICA – MEDIDA CAUTELAR INDEFERIDA. PARTIDO POLÍTICO – AÇÃO DIRETA – LEGITIMIDADE ATIVA – INEXIGIBILIDADE DO VÍNCULO DE PERTINÊNCIA TEMÁTICA.
(…) VEDAÇÃO DE COLIGAÇÕES PARTIDÁRIAS APENAS NAS ELEIÇÕES PROPORCIONAIS – PROIBIÇÃO LEGAL QUE NÃO SE REVELA ARBITRÁRIA OU IRRAZOÁVEL – RESPEITO À CLÁUSULA DO SUBSTANTIVE DUE PROCESS OF LAW. – O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade – que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do substantive due process of law – acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta obséquio ao postulado da proporcionalidade, ajustando-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do substantive due process of law (CF, art. 5º, LIV). Essa cláusula tutelar, ao inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário do legislador” (grifamos).Votação: por maioria, vencido o Min. Ilmar Galvão. Resultado : indeferida. DJ DATA-24-11-00 PP-00086; EMENT VOL-02013-10 PP-01974. Julgamento: 07/03/1996 – Tribunal Pleno.
Relativamente ao conteúdo do princípio da proporcionalidade, a doutrina, de um modo geral, desdobra-o em três subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
Primeiramente, a medida adotada deve ser a mais adequada para a satisfação do interesse público visado pela norma, sob pena de invalidade.
Outrossim, a restrição aos direitos fundamentais deve restringir-se ao estritamente necessário ao atendimento daquele interesse. Segundo CANOTILHO (11):
“O princípio da exigibilidade também conhecido como ‘princípio da necessidade’ ou da ‘menor ingerência possível’, coloca a tônica na idéia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível. Assim, exigir-se-ia sempre a prova de que, para a obtenção de determinados fins, não era possível adotar outro meio menos oneroso para o cidadão” (grifos do original)
Por último, reclama-se a proporcionalidade entre a restrição imposta e a medida adotada. Aqui, “meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, com o objetivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim”(12).
Urge advertir, porém, que o princípio da proporcionalidade, a despeito de ter sido concebido como instrumento de proteção dos direitos fundamentais, não raro é invocado para justificar medidas restritivas impostas a tais direitos, sob o argumento de que ditas medidas não seriam desproporcionais. É o caso, por exemplo, da decisão do Egrégio STF a respeito do plano de racionamento de energia elétrica, publicada no Informativo STF n.º 234. “O Tribunal, por maioria, deferiu a medida cautelar em ação declaratória de constitucionalidade para suspender, com eficácia ex tunc, e com efeito vinculante, até final julgamento da ação, a prolação de qualquer decisão que tenha por pressuposto a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade dos artigos 14 a 18 da Medida Provisória 2.152-2 de 1º/6/2001 — que estabelecem metas de consumo de energia elétrica, prevendo a suspensão do fornecimento em caso de descumprimento e a cobrança de tarifa especial aos consumidores que ultrapassem suas metas. À primeira vista, o Tribunal entendeu demonstrada, em face da crise de energia elétrica, a proporcionalidade e a razoabilidade das medidas tomadas, salientando que a tarifa é preço público de natureza política, permitindo, por conseguinte, a adoção de um regime especial de tarifação com vistas a desestimular o consumo de energia, nos termos do art. 175, parágrafo único, IV, da CF (“Art. 175. Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei disporá sobre: … III – política tarifária;”).. ADCMC 9-DF, rel. Min. Néri da Silveira, 28.6.2001.(ADC-9)”.
Por essa razão, torna-se imperioso que o princípio da proporcionalidade seja analisado à luz das normas e princípios que compõem o sistema constitucional de cada Estado, em homenagem à força normativa da Constituição. A não ser assim, teremos que admitir a procedência da crítica de GENTZ, citado por BONAVIDES, segundo a qual “o freqüente uso do princípio tende a transformá-lo num chavão rígido ou num mero apelo geral à justiça, tão indeterminado que de nada serve para a decisão de um problema jurídico, abrindo assim a porta ‘a um sentimento incontrolável e descontrolado de justiça que substitui as valorações objetivas da Constituição e da lei por aquelas subjetivas do juiz’” (grifo nosso).
Ademais, uma decisão fundamentada exclusivamente no princípio da proporcionalidade, sem qualquer correlação com os valores prestigiados no texto constitucional, pode gerar a indesejável impressão de ter sido proferida mais por considerações políticas do que jurídicas, o que representa enorme desprestígio para a Justiça.
Por isso, decidiu bem a Primeira Turma do STF, v. u., no HC 80.949-RJ, Rel. o eminente Min. SEPÚLVEDA PERTENCE(14):
“EMENTA:
I. Habeas corpus: cabimento: prova ilícita.
1. Admissibilidade, em tese, do habeas corpus para impugnar a inserção de provas ilícitas em procedimento penal e postular o seu desentranhamento: sempre que, da imputação, possa advir condenação a pena privativa de liberdade: precedentes do Supremo Tribunal.
II. Provas ilícitas: sua inadmissibilidade no processo(CF, art. 5º, LVI): considerações gerais.
2. Da explícita proscrição da prova ilícita, sem distinções quanto ao crime objeto do processo (CF, art. 5º, LVI), resulta a prevalência da garantia nela estabelecida sobre o interesse na busca, a qualquer custo, da verdade real no processo: conseqüente impertinência de apelar-se ao princípio da proporcionalidade – à luz de teorias estrangeiras inadequadas à ordem constitucional brasileira – para sobrepor, à vedação constitucional da admissão da prova ilícita, considerações sobre a gravidade da infração penal objeto da investigação ou da imputação” (…).
Diante do exposto, infere-se que o princípio da proporcionalidade, em um Estado Democrático de Direito, deve atuar como instrumento de realização das normas e princípios positivados no texto da Lei Fundamental, sob pena de subverter sua importante missão na tutela dos direitos fundamentais contra a ação limitativa que o Estado impõe a esses direitos.
NOTAS
(1) Curso de Direito Administrativo, 12a edição, Malheiros, 2000, pp. 747 e 748.
(2) Curso de Direito Constitucional, 9a edição, Malheiros, 2000, p. 237.
(3) Op. cit., p. 253.
(4) Controle Jurisdicional da Administração Pública, 1a edição, Dialética, 1999, pp. 75-83.
(5) Op. cit., p. 386.
(6) Op. cit., p. 367.
(7) Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3a edição, Almedina, 1999, p. 263.
(8) Temas de Direito Constitucional, 2a edição, Renovar, 2002, pp.161 e 162.
(9) Manual de Direito Administrativo, 7a edição, Lumen Juris, 2001, p. 21.
(10) DANIELA LACERDA SARAIVA SANTOS, na obra coletiva Os Princípios da Constituição de 1988, organizada por MANOEL MESSIAS PEIXINHO, ISABELLA FRANCO GUERRA e FIRLY NASCIMENTO FILHO, Lumen Juris, 2001, pp. 374 e 375, destaca dois precedentes (RE 192.568-PI e RE 211043-SP) nos quais o STF faz uso do princípio da razoabilidade como sinônimo do princípio da proporcionalidade. Conferir, também, ADIMC-1976 / DF, Relator Min. MOREIRA ALVES, DJ 24.11.00.
(11) Op. cit. ,p. 264.
(12) J. J. GOMES CANOTILHO, Op. cit. ,p. 265..
(13) Op. cit., p. 394.
(14) Informativo STF, n.º 250; DJ DATA-14-12-01.