Euclides Benedito de Oliveira
Da união estável como espécie de entidade familiar pode afirmar-se que, na verdade, somente existe e perdura enquanto traduzir uma “união feliz”. Constitui relação de puro afeto entre homem e mulher. A comunhão de vida que se estabelece por essa via informal tem por objetivo a mútua felicidade e a formação de uma família, sem necessidade de intervenção cartorária ou judicial.
Para logo se estabeleça necessária e básica premissa: união estável, conquanto entidade familiar protegida pelo Estado, não se equipara ao casamento. Revelam-se patentes as diferenças, bastando se comparem os seus modos de formação e de dissolução. Enquanto o casamento exige formalidades específicas, a união estável começa e pode terminar pela simples vontade das partes, dependendo do mútuo interesse numa comunhão de vida.
Entidade familiar paralela ao casamento, a união estável pode vir a converter-se em casamento, hipótese em que demanda satisfação dos requisitos legais para habilitação. Mas quando não desejada ou enquanto não efetuada a conversão, cabe indagar se subsistem para a constituição de uma união estável os mesmos requisitos de constituição válida do casamento no que tange aos impedimentos matrimoniais.
A Constituição Federal (artigo 226) apenas exige o requisito da heterossexualidade na formação da união estável e determina que a lei facilite sua conversão em casamento, mas, com isso, não está a exigir que se submeta, enquanto união estável, aos mesmos requisitos do casamento. Na Lei 8.971/94 (art. 1o) constam requisitos pessoais relativos ao estado civil dos companheiros, mas a Lei 9.278/96 (art. 1o) modificou a conceituação da união estável, nada mais referindo a esse propósito.
O tema suscita sérias controvérsias, em face da imprecisão do texto legal. A muitos parece que a proteção jurídica a todas as espécies de entidade familiar estaria condicionada ao requisito básico da inexistência de impedimentos, seja para o matrimônio, seja para a união estável. A outros se afiguram distintas essas situações de união familiar, com a necessidade de tratamento diferenciado no plano dos requisitos para sua formação, em face da informalidade da união estável, não lhe importando a existência de impedimentos matrimoniais.
Sem radicalizar, predominante se mostra corrente intermédia de pensamento, tanto em doutrina quanto na jurisprudência, fazendo a necessária distinção entre casamento e união estável, para que a esta se apliquem os impedimentos matrimoniais absolutos, decorrentes de parentesco (incesto) ou de anterior casamento (bigamia), com as exceções decorrentes de separação de fato ou judicial de um ou de ambos os conviventes.
A matéria veio de receber solução disciplinadora no novo Código Civil (Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, com vigência após um ano). Seu art. 1.723, § 1o, diz que a união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos absolutos, que são tratados no art. 1.521, semelhantes aos previstos no art. 183 do Código Civil de 1916, incisos I a VI e VIII. Ressalvam-se, por expressa disposição do novo Código, os casos de pessoa casada que se achar separada de fato ou judicialmente. Não se aplicam à união estável, como dispõe o § 2o do art. 1.723 do novo Código, as causas suspensivas do art. 1.523, que são aqueles impedimentos meramente proibitórios cuidados no art. 183, inc. XIII a XVI do atual ordenamento civil. Quanto aos impedimentos relativos, de que trata o art. 183, inc. IX a XII, deixam de ser considerados impedimentos no novo Código, mas constituem causas de anulação do casamento, nos termos do seu art. 1.550.
De outro lado, a união estável pode acarretar impedimentos para o casamento de parentes oriundos daquela relação, vez que una e indistinta a natureza da filiação e dos laços de parentesco formados na linha reta ou na colateral até o terceiro grau, independente de sua origem (CF 88, art. 227, § 6o). Quanto à afinidade na linha reta, impeditiva de casamento, restringe-se, no atual Código (art. 334) ao vínculo entre um cônjuge e os parentes do outro. O novo Código, todavia, estende o mesmo vínculo de parentesco por afinidade aos parentes em linha reta dos companheiros (art. 1.595), em igualação aos casados.
Em qualquer situação, porém, mesmo quando desfigurada a união estável como entidade familiar, como se dá em uniões adulterinas ou incestuosas, conquanto o novo Código tipifique a situação como concubinato (art. 1.727), pode restar a situação indelével da chamada “família de fato”, que subsiste mesmo sem lei que lhe dê cobertura. A falta de revestimento legal não obsta ao reconhecimento de certos efeitos jurídicos a essas espécies de união do tipo puramente afetivo. Seus membros formam uma entidade familiar ainda que sem estrita concepção jurídica. Não podem ser ignorados os efeitos dessa convivência no âmbito interno do grupo e também no plano externo, por seu indisfarçável reflexo social.
Os efeitos jurídicos dessa união à moda conjugal haverão de ser examinados caso a caso, de acordo com suas características e peculiaridades. Garantida será, no entanto, a defesa dos direitos assegurados aos parceiros e o reconhecimento de plenos e igualitários direitos aos seus descendentes, para que se preservem os frutos dessa intangível relação de afeto, subsistente, perene e muito acima da sempre mutável disposição normativa.
São Paulo, 23.01.02.
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O autor é advogado de Família e Sucessões, membro da Diretoria do IBDFAM em São Paulo.