Renato Franco de Almeida
I. INTRODUÇÃO
Não podemos falar sobre união estável – fato criador – sem tocarmos, mesmo que perfunctoriamente, no assunto família – fato criado.
Com efeito, passada a fase religiosa, onde sua função precípua era a tradição do culto dos antepassados, a família experimentou a diminuição das suas funções, tanto religiosas, como sócio-econômica.
Mais precisamente a partir do século XIX até metade deste, a célula mater ficou desprovida de funções sociais porquanto, com a Revolução Industrial, o Pai/Marido deixou o lar para trabalhar fora de casa, nas indústrias, aparecendo nova figura, até então colocada em segundo plano na hierarquia familiar, a Mãe/Esposa.
Neste momento, mitiga-se a hirarquia existente no corpo familiar – onde o Marido/Pai determinava até mesmo as funções que cada componente exerceria no referido grupo social – dando-se ênfase ao novo e atual fundamento da família: o amor conjugal com escopo de procriação e o estreitamento do laço filial.
Dessarte, a instituição (1) familiar, a partir do momento que tenha como supedâneo o sentimento entre seus componentes, sucumbe a novos modelos formadores da família, deixando esta definitivamente de ser um corpo demasiadamente hierarquizado com escopos religiosos passando a leito de interesses recíprocos com o fito de comunhão de vida.
II. UNIÃO ESTÁVEL
De efeito, tendo como novo fundamento o sentimento humano, a família prescindiu do contrato solene denominado “casamento” para sua constituição/existência, eis que, deste não nasce, por óbvio, aquela.
Nisto reside, no nosso entendimento, a natureza sócio-jurídica da união estável: fato gerador alternativo e natural da família.
Neste particular, ousamos divergir de Francisco José Ferreira Muniz quando parece entender que existem diversos tipos de família reconhecidos pela Constituição, dentre eles a família fulcrada no casamento e a família à margem deste contrato.
Para nós trata-se tão-somente de uma relação de causa e efeito, porquanto do casamento, assim como da união estável, surge a família, e, não, diversos tipos de família, porém partindo-se de fatos geradores distintos.
Reconhecida hodiernamente como entidade familiar – art. 226, § 3º CF/88, a união estável, que no passado possuiu a famigerada denominação de “concubinato” – do latim cum cubare, sempre foi associada à devassidão, prostituição.
Não obstante, sua existência factual nunca foi negada, ao revés, mesmo em Roma já foi premiada com conotações jurídicas, conquanto tímidas, sendo conceituada como “casamento inferior”.
“No Baixo Império torna-se o concubinato um casamento inferior, embora lícito. Com os imperadores cristãos começa a receber o reconhecimento jurídico.” (Ebert Chamoun, Instituições de direito romano, Forense, 1957).
No direito comparado, entretanto, sua importância jurídica extrapolou sua acessoriedade em relação ao casamento para se constituir verdadeiramente em “nova” forma de constituição da família.
Assim, na década de 30, a extinta URSS, em sua legislação referente a direito de família, por meio de Código próprio, desvinculava o matrimônio da família, sendo aquele mera alternativa de existência desta.
Em Cuba, em meados da década de 70, o legislador, também por diploma legal próprio, dispunha sobre o matrimônio não formalizado.
Além destes, muitos outros países possuem, atualmente, legislação própria sobre o direito de família, e, nesta, vislumbram efeitos jurídicos para a união estável, incluindo, por outro lado, esta no extenso ramo do direito familiar.
No Brasil, talvez devido à excessiva pressão exercida sobre nosso legislador pelas igrejas e segmentos isolados da sociedade, a jurisprudência, para minimizar as injustiças que vinham ocorrendo no caso concreto, deu roupagem societária – no sentido de auferição de lucros e cumulação de patrimônio – a união estável.
Tal heresia jurídica foi, a tempo, corrigida pela “Constituição-cidadã”, determinando, em seu texto, que lei infraconstitucional facilite sua conversão em casamento.
III. O PARADOXO DA REGULAMENTAÇÃO LEGAL
Sendo a união estável fato social cuja existência o estudioso social não pode, de maneira alguma, negar, por que regulamentar tal situação factual já que, na maioria das vezes, os “conviventes” – protagonistas desta relação – optam por esta como meio de fugirem das normas legais que regram o casamento? Não seria um paradoxo esta normatização?
Por outro lado, a inexistência de normas jurídicas sobre o assunto não levaria a injustiças nos casos concretos?
E em sendo regulamentada, qual seria o âmbito aceitável de ingerência estatal nestas relações fáticas estáveis?
Pensamos que correta se nos antolha, no particular, a teoria do direito de família mínimo.
De efeito, o âmbito da intervenção estatal neste modo de constituição da família deverá ter por escopo tão-somente regular os efeitos patrimoniais, incluídos aí os alimentos – obedecidos os pressupostos para sua concessão, v. infra – que poderão advir, salvante acordo prévio em contrário, de uma extinção da união estável.
E tal entendimento tem por fundamento exatamente o fato de muitas pessoas optarem por esta forma de constituição de família exatamente para não sucumbir às amarras legais do casamento civil. Por entenderem, outrossim, que desta forma poderão, ante o sentimento de liberdade aí impregnado, entregar-se mais verdadeiramente uns aos outros.
Sim. E observamos que este sentimento foi vislumbrado pelo legislador constituinte originário ao tentar, de forma genérica como deveria ser, regular os efeitos patrimoniais da união estável.
IV. CRÍTICA À LEI VIGENTE E AO PROJETO DO ESTATUTO
Em obediência à determinação constitucional, o legislador infraconstitucional procedeu à regulamentação da união estável, de maneira, a nosso aviso, demasiadamente abrangente, data vênia.
O diploma legal vigente – lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996 – como toda obra humana, não está imune a críticas.
Sem embargo, a nosso sentir, melhorou a regulamentação da matéria em diversos pontos em que o ato legislativo revogado pecava (lei nº 8.971/94).
Em seu artigo primeiro, a lei de 1996, no nosso entendimento, de forma escorreita, preceitua:
Art. 1º – É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família..
Em breve leitura nota-se que, comparada ao direito anterior, o atual diploma legal evoluiu no sentido de deixar ao crivo do Promotor de Justiça e do Juiz de Direito a análise da constituição ou não da união estável, sem que existam parâmetros legais onde se determinam o prazo de cinco anos para que possua a união estável de um homem e uma mulher sem prole efeitos jurídicos.
Não passou o antigo regime – lei nº 8.971 – incólume às críticas da doutrina, quando esta se perguntava se existiria realmente um prazo determinado para que se pudesse aferir a existência de união estável ou não.
Infelizmente, o projeto em tramitação no Congresso Nacional, regrediu ao dispor que:
Art. 1º – É reconhecida como união estável a convivência, por período superior a cinco anos, sob o mesmo teto, como se casados fossem, entre um homem e uma mulher, não impedidos de realizar matrimônio ou separados de direito ou de fato dos respectivos cônjuges.
Parágrafo Único. O prazo previsto no caput deste artigo poderá ser reduzido a dois anos quando houver filho comum.
Do novo texto, que provavelmente será aprovado no Parlamento, poderíamos vislumbrar, como dito, várias regressões em comparação ao direito vigente.
Como cogitado adredemente, o prazo de cinco anos – que pelo projeto deverá ser superior – volta a ser medida para apreciação da existência ou não da união estável pelos operadores do Direito no caso concreto.
Mais.
Existindo filhos, o prazo poderá ser reduzido para aqueles efeitos.
No nosso modo de pensar, não existe, a despeito de autorizados entendimentos em contrário, limites matemáticos que possam medir os sentimentos humanos de solidariedade, companheirismo, cooperação, assistência mútua e respeito que imperam efetivamente na união estável e que, por conseguinte, a caracterizam.
Dessa forma, quid iuris se ex-convivente tencionar recorrer ao Judiciário para demandar em face do outro, inobstante terem convivido como se casados fossem por quatro anos e seis meses? Não haverá proteção jurídica para os direitos que daí surjam? Ou seremos obrigados a encarar tal relação novamente sob o ponto de vista societário à míngua de solução jurídica mais justa?
Lamentável, portanto.
Lado outro, exige o projeto ainda em seu artigo primeiro, para a configuração da nova entidade familiar, convivência sob o mesmo teto.
Estamos que neste ponto situa-se mais uma volta ao já esquecido passado.
Antes mesmo do advento da Carta de Intenções promulgada em 1988, o Excelso Pretório editou a súmula nº 382 onde assevera ser dispensável, para caracterização da união estável, a convivência sob mesmo teto.
SÚMULA Nº 382
A vida em comum sob o mesmo teto “more uxório”, não é indispensável à caracterização do concubinato.
Assim, o E. Supremo Tribunal Federal, sensível à realidade das coisas, vislumbrando que o fato de os companheiros – na época concubinos – não residirem sob o mesmo teto não poderia ensejar injustiças, editou referida súmula que foi simplesmente olvidada pelo projeto em tramitação no Parlamento.
Ademais, na vida moderna, e, inobstante texto legal expresso (art. 36, parágrafo único do CC), mesmo as famílias constituídas pelo casamento têm seus protagonistas, muitas vezes, residindo em locais distintos, por força das contingências do cotidiano.
Ora, se casados poderão os indivíduos viverem em lugares diversos, por que impor aos conviventes a obrigação de residirem no mesmo ambiente?
É de se aceitar, não obstante, que tal opção legislativa, sob o ponto de vista das provas, possui a vantagem de facilitar a labuta do Ministério Público e do Judiciário, eis que os conviventes coabitando o mesmo local, facilmente se provará a união estável.
Sem embargo, tal não é o único meio de prova admitido em direito, obviamente.
O projeto ora em comento distanciou-se, neste particular, do que preconiza doutrina e jurisprudência pátrias e até mesmo da Lei Magna, no momento em que esta não exige tal requisito, sendo, portanto, de duvidosa constitucionalidade aludido dispositivo, em se transformando em lei.
A outro giro e sendo coerente com a teoria do direito de família mínimo no tocante à união estável, estamos que pecou, como os anteriores diplomas legais, o projeto ao regrar que:
Art. 2º – Decorrem da união estável os seguintes direitos e deveres para ambos os companheiros, um em relação ao outro:
I – lealdade;
II – respeito e consideração;
III – assistência moral e material.
Com o respeito devido, entendemos que aí precisamente reside o excesso de ingerência estatal na união estável.
De efeito, o Estado, ao regulamentar o casamento, o faz de forma rígida, por meio de normas de ordem pública segundo as quais a vontade das partes sucumbe aos interesses públicos envolvidos, tendo por presunção que daí surgirá uma relação de afeto, respeito, consideração e assistência, de ordem moral e material, mútua, pôr imposição estatal, por mais incrível que posse parecer, já que constitui deveres dos cônjuges todas essas condutas.
Indubitavelmente, o legislador ordinário quis dar aos protagonistas da união estável os mesmos deveres.
Neste particular, habita-se, no nosso entender, a razão do insucesso das legislações anteriores, que surge também no projeto.
Não pode o Estado obrigar aqueles que optaram por uma relação natural, e até mesmo, sob determinado ponto de vista, libertária, a terem os mesmos deveres das pessoas casadas, por imposição legal.
Afinal, para lembrarmos os ensinamentos aristotélicos, que obtiveram o aplauso de Ruy, devemos sempre tratar os iguais igualmente, e os desiguais, desigualmente.
Por conseqüência, não podemos igualar institutos que se distinguem, até mesmo por determinação constitucional (art. 226, § 3º, In fine).
Tais deveres, na união estável, existem, e isso é de fácil constatação.
Entretanto, existem, não em razão da vontade estatal, todavia por estarem ínsitos na espécie humana o dever geral de solidariedade.
Trata-se a união estável de fenômeno natural que governante algum fará deixar de existir, por mais subversiva que possa parecer a alguns, consubstanciada exatamente naqueles sentimentos que a lei obrigatoriamente impõe aos cônjuges, valores de, tal como descrito no projeto, lealdade, respeito consideração e assistência moral e material.
Se tivermos em mente que tais valores são a base que deverá ser construída para que a relação entre homem e mulher possua um alicerce sólido, poderíamos dizer que o casamento é o ponto de partida, por imposição legal, desta construção, presumindo o legislador que lá chegarão os cônjuges, tendo em vista o dever de obediência à lei e a intenção dos sujeitos envolvidos, e, de outra banda, que a união estável é ponto de chegada para um relacionamento maduro, cuja certeza de ter logrado alcançar aqueles escopos é visível, daí surgindo efeitos jurídicos.
Trata-se, dessarte, de divergência temporal sobre a constituição da família, resultado da adição daqueles valores suso referidos.
Cabe anotar, ainda, que, quanto à união estável, sua realização por si só faz com que se constitua a família, de forma natural e legal, já que reunidos aqueles valores. No que diz respeito ao casamento, a família poderá estar constituída ex vi legis, porém, não factualmente, eis que existirá família legalmente considerada por todo o lapso temporal em que cônjuges não estiverem separados, podendo não ter existido em um só momento de forma real, posto que ausentes os sentimentos fulcro da comunhão de vida.
Referido dispositivo, a nosso aviso, portanto, é totalmente despiciendo, no concernente à união estável.
V. ALIMENTOS
No concernente à prestação alimentícia, mesmo em se tratando de cônjuges, com a mesma razão se se cogitar de conviventes, comungamos do entendimento daqueles que asseveram ser ônus de quem necessita da verba alimentícia não só provar sua necessidade material à percepção da verba alimentícia, mas também a impossibilidade de prover seu sustento por força própria. E assim pensamos tendo em vista que a verba alimentícia não pode transformar-se em incentivo ao ócio para aquelas pessoas que não possuem obstáculo de qualquer ordem para o trabalho honesto.
No que se refere ao diploma legal que rege a matéria no âmbito da união estável, pensamos que, não obstante a falta de técnica, agiu bem o legislador em abandonar a culpa.
Dessa forma, determina que:
Art. 7º – Dissolvida a união estável por rescisão, a assistência material prevista nesta Lei será prestada por um dos conviventes ao que dela necessitar, a título de alimentos.
Como bem observou Paulo Martins de Carvalho Filho: “(mais preciso seria o termo ‘resolução’)…”.
Sem embargo, o diploma legislativo não previu a culpa do convivente como obstáculo à percepção de alimentos, quando da ruptura da vida em comum, ressalvando, por óbvio, a constituição de outra família, seja pela união estável ou casamento, por parte do necessitado, o que por si só desobrigaria o devedor.
Ponto ainda controvertido situa-se no fato de se saber se um simples namoro do alimentado extinguiria a obrigação do alimentante.
O ilustre Juiz de Direito Paulo Martins de Carvalho Filho assim se posiciona sobre o assunto:
“Neste passo, cumpre realçar que a simples mancebia da ex-mulher, mesmo sem os contornos do concubinato, enseja ver-se o ex-marido liberado da pensão a que esteja obrigado; assim é porque, segundo tem entendido predominantemente a jurisprudência (RT 485/206, acórdão do STF), basta a ligação amorosa da ex-mulher a outro homem para se ter por quebrada a condição (implícita) da obrigação alimentar; a orientação deverá se estender, no tema dos alimentos, aos ex-conviventes…”
Data vênia, ousamos discordar do ínclito magistrado.
Inicialmente cabe anotar que somos partidários da corrente que entende que alimentos tem por fundamento a solidariedade humana, e, não, a culpa na dissolução da sociedade conjugal ou do vínculo matrimonial.
Não obstante minoritário tal entendimento, assim entendemos em razão de ser incompreensível, mesmo nas relações jurídicas criadas pelo casamento, poder determinado instituto jurídico ter por supedâneo o comportamento moral do ex-cônjuge quando em jogo está a própria sobrevivência do mesmo.
Tal raciocínio, a fortiori, deverá estar presente nas relações factuais, haja vista a menor segurança jurídica imposta à convivente ou ao convivente em virtude mesmo da natureza da união estável.
Ao fazer comentário sobre o fundamento do direito a alimentos, assim se expressa o Des. Cezar Peluso:
“Já tentei demonstrar, como relator de caso submetido à E. 2ª Câm., que o direito de alimentos não constitui prêmio a pessoas bem comportadas, segundo juízo ético do devedor, como a mulher que, depois da separação, não se envolva com outro homem. O direito de crédito alimentar é previsto como o único recurso que o ordenamento encontra para salvar a vida e, portanto, seu fundamento é a solidariedade humana, não ética duvidosa do comportamento.(…) A um filho não se recusam alimentos sob pretexto de ser libertino ou devasso, marginal ou samaritano. Resgatar a vida é condição prévia e absoluta de qualquer elucubração ética ou jurídica.” (in Paulo Martins de Carvalho Filho, artigo cit.)
O escólio transcrito adequa-se perfeitamente no tocante à união estável, mormente se levarmos em consideração que a lei vigente sobre a matéria omite-se no trato da culpa como fato ensejador do não recebimento da prestação alimentícia.
O projeto, entretanto, caminhou em direção contrária ao entendimento que tem como fundamento da obrigação alimentícia a solidariedade humana, infelizmente.
Com efeito, assim preceitua:
Art. 6º – Dissolvida a união estável, o Juiz poderá, considerando o disposto no artigo 2º e demais circunstâncias, determinar sejam prestados alimentos por um dos companheiros ao outro, que deles necessitar, nos termos da lei nº 5.478, de 25 de julho de 1968, enquanto o credor não constituir nova entidade familiar de direito ou de fato.
Vislumbra-se pelo teor do texto transcrito que o projeto vincula, mais uma vez, o direito a percepção de alimentos à inexistência de culpa por parte do companheiro necessitado ao fazer expressa remissão ao artigo segundo do mesmo diploma, numa desinibida referência à quebra do dever de lealdade, respeito e assistência moral e material.
Ao nosso sentir, constitui o posicionamento assumido no projeto um retrocesso tendo em vista as argumentações expendidas.
Sem embargo e por outro lado, dissipou, de forma definitiva, a controvérsia sobre a aplicabilidade ou não da lei especial de alimentos quando se trate de relações de fato.
VI. O RELACIONAMENTO HOMOSSEXUAL
Em tramitação também no Parlamento o projeto de lei nº 1.151, de 1995, que regula os efeitos jurídicos das uniões entre pessoas do mesmo sexo.
A despeito de não ser matéria ligada diretamente a esta pesquisa, faremos pequena cogitação sobre o assunto, tendo em vista a polêmica suscitada, bem como ter esta relação feições societárias, antiga forma de aceitação da união estável pelos pretórios no afã de minimizar as injustiças do caso concreto.
De início, cabe ressaltar que qualquer tentativa do Poder legiferante de introduzir esta espécie de relacionamento no âmbito do Direito de Família, com características de entidade familiar, entendemos, estará eivada de flagrante inconstitucionalidade, posto que a Lei Maior é expressa no sentido de proibir qualquer tipo de entidade familiar, senão com a participação de sexos distintos:
Art. 226 – A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 3º – Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.(g.n.)
Como se pode observar, somente o relacionamento entre pessoas de sexo diverso terá proteção do Estado como entidade familiar.
Daí surge a seguinte conclusão: em virtude de óbice constitucional, o relacionamento de pessoas do mesmo sexo está fadado, sob o ponto de vista jurídico, à submissão ao regime jurídico das sociedades civis, tal como era o regramento jurídico da união estável antes do advento da Constituição da República.
Lado outro, entendermos que o ser humano, através do estudo, da pesquisa, enfim, do desenvolvimento intelectual, com o escopo de atingir a perfeição, deverá primeiramente livrar-se dos preconceitos raciais, sociais, econômicos, etc. Este seria, dessarte, o primeiro passo a ser dado por aqueles que almejam ser pessoas dignas, puras, respeitada por todos dentro no seu grupo social, libertando-se, por conseguinte, da mesquinhez, vaidade, individualismo, presunção cotidianos e toda espécie de subdesenvolvimento cultural, social, e moral, que possa desvirtuar o fim precípuo do pensador social: o bem estar da sociedade em que vive; chegando-se, assim, mais perto do Criador.
Lamentavelmente, ainda não logramos atingir tão ambicionado desiderato.
Em virtude, portanto, deste preconceito ainda arraigado, não conseguimos vislumbrar uma entidade familiar constituída por pessoas do mesmo sexo.
E tal atrofia intelectual, admitimos, nos leva a não aceitar nem mesmo o relacionamento em comento sob o ponto de vista sociológico, excluindo-se, por conseqüência, o âmbito jurídico.
De efeito, consideramos a opção legislativa de considerar, para os efeitos jurídicos, tal relacionamento uma sociedade civil excelente idéia, eis que, somente por subdesenvolvimento intelectual – confortando-nos o fato de não sermos os únicos a possuí-lo – não poderíamos deixar à margem da lei seres humanos como todos nós.
Neste passo se dirigiu o projeto nº 1.151, de 1995 ao determinar que:
Art. 3º – O contrato de união civil será lavrado em Ofício de Notas, sendo livremente pactuado.
No dispositivo transcrito reside a aparência contratualista que dará ensejo ao surgimento da sociedade civil entre pessoas do mesmo sexo.
VII. CONCLUSÃO
De todo o exposto, podemos concluir que o projeto distanciou-se em pontos cruciais que a doutrina, bem como a jurisprudência, já assentaram, v.g., a necessidade de os conviventes habitarem o mesmo teto para só assim caracterizar-se a união estável.
A despeito disso, reflete mais uma tentativa do Estado de regular a conduta dos membros da sociedade, onde esta conduta não poderá ser regulada senão por um mínimo exigível tendo-se por escopo tão-somente as injustiças ocorrentes no caso concreto, em virtude de sua natureza mesma.
Não obstante, presta-se esta pequena pesquisa para tão-só levantar a polêmica.
À consideração dos doutos.
RENATO FRANCO DE ALMEIDA
VIII. BIBLIOGRAFIA
– Sálvio Figueiredo Teixeira – Direitos de Família e Do Menor, Ed. Del Rey, 1993.
– Rodrigo da Cunha Pereira – Concubinato e União Estável, Ed. Del Rey, 1997.
– Constituição da República Federativa do Brasil, Ed. Saraiva.
Belmiro Pedro Welter – Alimentos na União Estável, Ed. Síntese, 1998.
– Paulo Martins de Carvalho Filho – Lei 9.278 (De 10 de maio de 1996), A união Estável, RT 734/16.
– Projeto de Lei nº 2.686/96, em tramitação no Congresso Nacional.
IX. Notas
1. instituição, no particular, recebe no texto o sentido de organização.
Renato Franco de Almeida é Promotor de Justiça, Pós-graduado em Direito Público e Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino