por João José Sady
Chega a ser paradoxal que se possa cogitar de que uma lei promulgada nos EUA venha a ter efeitos em território brasileiro mas, a pura verdade é que, de forma transversal, isto vem a acontecer de modo bastante interessante. Esta lei, de autoria do senador Paul S. Sarbanes e do deputado Michael Oxley, surgiu como reação às pressões da opinião pública americana advindas dos escândalos de fraude corporativa como o tão famoso caso da Enron.
Promulgada em 2002, ela tem como objetivo garantir maior segurança aos investidores, formulando diversas exigências, especialmente, de transparência para que as companhias abertas norte-americanas e estrangeiras possam colocar seus títulos nas bolsas dos EUA. Atualmente, trinta e sete sociedades anônimas brasileiras estão listadas na Bolsa de New York (1), estando sujeitas, portanto, à legislação norte-americana.
A “Basic Sanitation Company of the State of São Paulo — Sabesp” é uma das companhias inscritas naquele mercado. Para estar ali presente, tem que atender, não só às demandas da legislação brasileira, como aos requisitos da Lei Sarbanes-Oxley e, para tanto, envia seus relatórios periódicos, tanto para a CVM — Comissão de Valores Mobiliários brasileira como para a SEC — Securities and Exchange Commissions norte-americana.
As pressões da globalização internacionalizaram a preocupação com os direitos dos acionistas, embutindo na lei mencionada diversos graus de exigência neste sentido. Como conseqüência, no mercado brasileiro, foi gerado um nicho denominado de governança corporativa, no qual as sociedades anônimas de capital aberto têm que atender a exigências além daquelas fixadas na legislação nacional, ou seja, àquelas da legislação ianque.
Este nicho funciona em três segmentos de gradativa adequação àquelas exigências: níveis 1 e 2 e nível de novo mercado. Temos 33 no nível 1, sete no nível 2 e sete no nível de novo mercado, entre estas, por exemplo, a “Basic Sanitation” e a CPFL (2). O “Novo Mercado” tem como características diferenciais principais, que não se pode manter ações preferenciais (ou seja, sem direito a voto) e deve-se manter 25% do capital circulando no mercado (“free float”).
A CPFL, por exemplo, ainda está em fase de adequação porque não providenciou o tal nível de “free float”. Veja-se que a Petrobrás, por outro lado, está na Bolsa de New York mas não é de “novo mercado” porque mantém, ainda, ações votantes e não-votantes.
A caminhada para a “governança corporativa” coloca a empresa a um passo do sistema do “novo mercado” e neste o controle da companhia passa a ter que ser exercido a partir de porcentagens do total do capital porque todo o capital é votante. Veja-se que a Sabesp anunciava à Securities and Exchange Commission, em dezembro de 2003 (3), que o governo do Estado de São Paulo possuía 71,5% das ações e, atualmente, como consta do seu site, o controlador detém, apenas, 50,3% das ações. Assim, qualquer operação de venda de mais ações poderá repassar este controle para mãos não-estatais e, talvez, estrangeiras (4).
O paradoxo nestas novidades “bursáteis” é que a adequação às exigências da lei norte-americana faz com que estas companhias de capital aberto, tragam ao conhecimento público, dados a respeito de suas operações que, além de ser do interesse dos investidores, são de extrema valia nas negociações coletivas. No anteprojeto de reforma sindical elaborado pelo chamado Fórum Nacional do Trabalho, foi incorporada uma das mais antigas e importantes pretensões do sindicalismo: o direito à informação sobre o desempenho da empresa, como fator essencial à negociação coletiva em termos justos.
A adaptação à lei Sarbanes-Oxley, com este desfile de “governança corporativa”, vai desvelando parte deste véu que encobre as operações patronais e que o sindicalismo quer desvendar.
Veja-se, por exemplo, no caso do “Novo Mercado”, que o site da CPFL traz a informação de que os gastos com pessoal aumentaram somente 1,3%, comparando o primeiro trimestre de 2004 com o de 2005 (5). No site da Sabesp, a mesma comparação revela que a empresa gastou no primeiro trimestre de 2005 0,3% a mais com pessoal do que no primeiro trimestre de 2004 (6).
A empresa, dentro destes doze meses, reajustou os salários em 4,72% pelo acordo coletivo de 2004 e passou a cortar pessoal até que, mesmo com tais reajustes, um ano depois, sua massa salarial era somente 0,3% maior do que no ano anterior. Maiores análises dos dados existentes no site (7) mostraram que a empresa, em 1994, gastava 49,02% de sua arrecadação com a folha de salários e, dez anos depois, somente, 23,9%.
Não é novidade que este fenômeno de transferência de renda do capital para o trabalho esteja acontecendo no Brasil. Esta corrida para a produtividade, tem como paradigma o setor automobilístico que produzia 8,72 carros por empregado em 1980, com 133,64 mil empregados e, hoje, produz 26,36 carros por empregado, alocando somente 83,85 mil pessoas (8). O fato é que produzindo seis vezes mais, o setor tornou desnecessários cinco em cada seis empregados.
A História que falta ser contada neste país é o que aconteceu com os outros cinco trabalhadores quando se venceu esta batalha pela “produtividade”. Com efeito, a transferência de renda é um fato sabido mas, dispor da informação concreta sobre a empresa envolvida num conflito coletivo de trabalho, demonstrando cabalmente este fenômeno, é um fator importantíssimo para o processo de negociação coletiva.
Vai se evidenciando o quanto a política empresarial de destruição sistemática de postos de trabalho corrói de forma invisível o processo negocial. Ilumina-se o fato de que o tabuleiro em que se trava a batalha da transferência de renda não é mais a negociação coletiva. Nesta, ocorre dramático confronto em torno de um ganho imediato que irá se liquefazendo de forma discreta no cotidiano dos meses seguintes através da progressiva redução das quantidades de mão de obra. Não é por nada que nos últimos dez anos, o percentual de desemprego no Brasil cresceu 56,2% (9) e 53,9 milhões de brasileiros tem de viver com renda menor que meio salário-mínimo mensal.
Este efeito colateral da internacionalização da legislação norte-americana, vem apresentando vantagens conjunturais na negociação coletiva que podem ser aproveitadas pelos sindicatos. Enquanto o governo federal acena com o anteprojeto de reforma sindical que contem (mais uma vez) a pretensão do direito à informação mas não apresenta a proposta ao Congresso, o jeito é ir utilizando para o bem comum estas fissuras que revelam a razão perversa por detrás das luvas de pelica da negociação patronal.
Notas de rodapé
(1) A respeito destas empresas, veja-se o site daquela Bolsa em http://www.nyse.com/about/listed/sbs.html
(2) Para uma descrição extensiva do sistema, veja-se a revjsta “Desafios” do IPEA, ano 2, n. 7, págs. 54/58
(3) http://www.sabesp.com.br/relacao_investidores/demonstracoes_ financeiras/SEC_2002/Annual_Report_20F_02.pdf
(4) A respeito, veja-se reportagem da revista Carta Capital, ano XI, n. 318, 24 nov. 2004, págs. 24/28 onde se menciona que a companhia Vale do Rio Doce, andou beirando este destino, escapando do “novo mercado” e do controle estrangeiro por causa de uma subscrição de ações pelo BNDE que causou, paradoxalmente, a demissão do então presidente daquele banco.
(5) http://ri.cpfl.com.br/index_port.htm
(6) http://www.sabesp.com.br/financas/cvm/1trim2005/comentario_ desempenho.pdf
(7) apresentadas pela assessoria técnica do TRT02
(8) Folha de São Paulo, 14 de maio de 2005
(9) http://www.estadao.com.br/nacional/noticias/2005/mai/31/227.htm
Fonte: Revista Consultor Jurídico