Usucapião administrativa e a inconstitucionalidade da Lei 13.465/2017

Autor: Artur César de Souza (*)

 

O artigo 1.071 do CPC/2015 introduziu o artigo 216-A na Lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), criando a figura da usucapião administrativa, que será processada diretamente perante o cartório de registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo.

Dentre os requisitos exigidos pelo novo CPC, para a concessão administrativa de transferência de propriedade imobiliária, havia a exigência de expressa concordância do proprietário do imóvel quanto ao pedido de usucapião, sendo o seu silêncio, após devida notificação, interpretado como discordância à transferência da propriedade (parágrafo 2º do artigo 216-A da Lei 6.015/73, introduzido pelo artigo 1.071 do novo CPC).

Porém, o artigo 7º da Lei 13.465/2017 alterou o parágrafo 2º do artigo 216-A da Lei 6.015/73 para interpretar o silêncio do proprietário do imóvel usucapiendo como concordância à usucapião, ou seja, como concordância à transferência imobiliária.

A Procuradoria-Geral da República ingressou no Supremo Tribunal Federal com a Ação Direita de Inconstitucionalidade 5.771, contra o conteúdo normativo da Lei 13.465/2017.

Diversas questões de inconstitucionalidades foram suscitadas pela Procuradoria-Geral da República na petição inicial da ADI 5.771, a saber:

“A Lei 13.465/2017, além de ser fruto de medida provisória destituída dos requisitos constitucionais de relevância e urgência (art. 62, caput), afronta múltiplos princípios e regras constitucionais, como o direito a moradia (art. 6º), o direito a propriedade e o cumprimento de sua função social (art. 5º, caput e inciso XXIII), a proteção do ambiente (art. 225, caput, § 1º, I, II, III e VII, e §§ 2º e 4º), a política de desenvolvimento urbano (art. 182, caput e §§ 1º e 2º), o dever de compatibilizar a destinação de terras públicas e devolutas com a política agrícola e o plano nacional de reforma agrária (art. 188, caput), os objetivos fundamentais da República (art. 3º, I a III), a proibição de retrocesso, o mínimo existencial e o princípio da proporcionalidade (na faceta de proibição da proteção deficiente), a competência constitucionalmente reservada a lei complementar (art. 62, § 1º, III), a competência da União para legislar sobre Direito Processual Civil (art. 62, I, b), a previsão de que o pagamento de indenizações da reforma agrária será em títulos da dívida agrária (art. 184, caput), a exigência de participação popular no planejamento municipal (art. 29, XII) e as regras constitucionais do usucapião especial urbano e rural (arts. 183 e 191)”.

Lamentavelmente, não se observa no universo das diversas questões de inconstitucionalidade suscitadas na petição inicial da ADI 5.771 nenhuma nota digna de análise da alteração legislativa promovida pelo artigo 7º da Lei 13.465/2017, ou seja, em relação à nova interpretação normativa quanto aos efeitos jurídicos do silêncio do proprietário do imóvel.

Diante da falta de análise de tal questão na inicial da ADI, passa-se a algumas considerações sobre a constitucionalidade do artigo 7º da Lei 13.465/2017 em relação à novel concepção jurídica do silêncio como manifestação de vontade.

O artigo 1.071 do novo CPC, ao instituir a usucapião administrativa, teve a preocupação de não configurar o silêncio do proprietário do imóvel usucapiendo como concordância à postulação administrativa de transferência de propriedade imobiliária.

E por que o legislador no novo CPC não configurou o silêncio como manifestação positiva de vontade? Porque, se assim o fizesse, estaria maculando o disposto no artigo 5º, inciso LIV, da CF: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Parto da presunção que todos sabem o que significa “devido processo legal”.

A questão que proponho nesta reflexão é se a expressão “devido processo legal” inserida no inciso LIV do artigo 5º da CF está restrita ao processo jurisdicional ou se igualmente abrange o processo administrativo instaurado perante o cartório de registro de imóveis.

A resposta a essa indagação está na própria normatização principiológica contida no inciso LIV do artigo 5º da CF.

Como o inciso LIV do artigo 5º da CF faz referência não somente à propriedade, mas também à privação da “liberdade”, tal inserção fez com que o “devido processo legal” mencionado no referido inciso diga respeito tão-somente ao processo jurisdicional, pois não há espaço no Brasil para a privação de liberdade por meio de processo administrativo.

Portanto, por determinação expressa da Constituição Federal, ninguém poderá ser privado de seus bens (e transferência compulsória de propriedade imobiliária é, indubitavelmente, privação de propriedade de bens imóveis) a não ser por meio do “devido processo legal jurisdicional”.

Por isso, agiu com acerto o legislador do CPC/2015 em não dar efeito jurídico ao silêncio do proprietário (representativo de concordância com a transferência de propriedade), uma vez que a transferência compulsória de sua propriedade somente poderia ser concretizada mediante decisão judicial proferida em processo jurisdicional.

É certo que o artigo 111 do Código Civil preconiza que o silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária declaração de vontade expressa.

Sendo o direito de propriedade um direito disponível, o silêncio do proprietário do imóvel usucapiendo poderá ensejar a perda da propriedade.

Porém, para que esse silêncio tenha eficácia de manifestação positiva de vontade, há necessidade que seja manifestado em processo legal de natureza jurisdicional, e não administrativo, tendo em vista a proteção especial outorgada pela Constituição Federal à liberdade e à propriedade dos bens individuais, como direitos fundamentais.

Nessa perspectiva, a revelia ocorrida no âmbito do processo jurisdicional poderá ensejar eficácia jurídica ao silencio manifesto do réu.

 

 

 

Autor: Artur César de Souza  é juiz federal convocado no TRF-4, pós-doutor pela Università Statale di Milano (Itália), Universidad de Valencia (Espanha), Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal) e Universidade Federal de Santa Catarina, doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, doutorando em Filosofia pela Universidade de Barcelona (Espanha), professor da Universidade de Marília e juiz formador da Escola da Magistratura Federal do TRF-4.


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