Validade dos acordos de leniência em ações de improbidade

Autor: Francisco Zardo (*)

 

Sob certa ótica, o exame dos acordos em ação de improbidade administrativa poderia ser resumido a uma frase. Afinal, o § 1º do artigo 17 da Lei 8.429/92, a Lei de Improbidade Administrativa (LIA), dispõe: “É vedada a transação, acordo ou conciliação nas ações de que trata o caput”. A lógica subjacente a este dispositivo é a indisponibilidade do interesse público e da pretensão punitiva estatal.

Porém, a passagem de 25 anos desde a edição da LIA e o surgimento de diversas outras leis e institutos relacionados ao combate à corrupção desafiam a compreensão literal e taxativa de que os acordos em ações de improbidade seriam vedados. Evidência disso é a recente Resolução 1, de 15 de maio de 2017, por meio da qual o Conselho Superior do Ministério Público do Estado do Paraná (CSMPPR), de modo pioneiro, estabeleceu parâmetros para composição envolvendo as sanções cominadas aos atos de improbidade administrativa.

A evolução legislativa: da vedação à permissão de acordo em ações de improbidade
Neste tempo em que se clama por respeito à lei e, sobretudo, por segurança jurídica, causa certo estranhamento a admissão de acordos em ação de improbidade diante da vedação expressa no texto legal. Porém, a aplicação da Lei 8.429/92 não pode ser dissociada do seu contexto.

O acordo de leniência foi introduzido no ordenamento jurídico nacional com a promulgação da Lei 10.149/2000, que acrescentou o artigo 35-B à Lei 8.884/94, que dispunha sobre a repressão às infrações contra a ordem econômica.

Em 2013 foi editada a Lei 12.846, conhecida como Lei Anticorrupção. O artigo 16 desta lei expressamente prevê a possibilidade de celebração de “acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos previstos nesta lei que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo”.

Como observa Rogério Pacheco Alves, ao lado da Lei de Improbidade e da Lei 7.347/85 (Lei de Ação Civil Pública), “a nova Lei Anticorrupção passa a integrar o denominado microssistema processual de tutela coletiva da probidade administrativa”. Registre-se que por força da Lei no 13.004, em 2014 foi acrescentado na Lei 7.347/85 o objetivo de defesa do “patrimônio público e social” (artigo 1º, VIII).

Tem-se, portanto, três leis formando um microssistema processual de tutela coletiva da probidade administrativa. Apesar de formarem um microssistema, enquanto as Leis 7.347/85 e Lei 12.846/2013 admitem, respectivamente, a celebração de termo de ajustamento de conduta e acordo de leniência, a Lei 8.429/92 proíbe-os taxativamente.

Tendo em vista a regra da coerência ínsita a qualquer sistema, é necessário eliminar esta antinomia. Caso contrário, corre-se o risco de tornar ineficaz o próprio instituto do acordo de leniência positivado na Lei 12.846/2013. Afinal, não é razoável que uma pessoa jurídica decida celebrar o acordo, admitir sua participação no ilícito e colaborar com as investigações se ela e seus dirigentes permanecerão sujeitos a prováveis condenações em ações penais e de improbidade administrativa.

Daí a compreensão de que o artigo 17, §1º da Lei 8.429/92 foi revogado tacitamente por incompatibilidade com o artigo 16 da Lei 12.846/2013 e, ainda, com o Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), cujo artigo 2º dispõe que “O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos” (§ 2º) e que “A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial” (§ 3º). De acordo com o artigo 2º, §1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, “a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.

Note-se que o fundamento que justificava a vedação contida na LIA, a indisponibilidade da pretensão punitiva estatal, já não mais subsiste, tendo em vista que a Lei Anticorrupção passou a admitir acordos relativamente ao mesmo bem jurídico, qual seja, a probidade administrativa. E não só ela.

A Lei 12.850/2013, que define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal e meios de obtenção de prova, prevê que em qualquer fase da persecução penal será permitida a colaboração premiada (artigo 3º, I). Entre os resultados almejados com a colaboração estão a identificação dos demais coautores, a prevenção de infrações penais, a recuperação do produto do crime e a preservação da integridade da vítima (artigo 4º, I a V). Caso a colaboração seja efetiva, o colaborador poderá ter sua pena reduzida em até 2/3 (dois terços) ou substituída por restritiva de direitos. Poderá ainda receber o perdão judicial ou, eventualmente, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia (artigo 4º, §§2º e 4º).

Ora, se até no Direito Penal, que tradicionalmente deve se encarregar da proteção dos bens jurídicos mais relevantes para a sociedade, a colaboração é admitida, sem que isso afronte a indisponibilidade da pretensão punitiva estatal, não há razão alguma para que subsista a vedação contida no artigo 17, §1º, Lei 8.429/92. Foi o que decidiu a Juíza Federal Giovana Mayer, em ação de improbidade manejada contra a Construtora Camargo Corrêa, que celebrou acordo de leniência.

Em sentido diverso, o desembargador federal Fernando Quadros da Silva, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, entendeu que “carece de amparo legal a eficácia do Acordo de Leniência firmado entre o Ministério Público Federal com a empresa Odebrecht, no âmbito da presente ação de improbidade administrativa”.

Conquanto se entenda, pelas razões já expostas, que tais acordos são, sim, juridicamente válidos, a existência de decisões em sentido diverso mostra que o tema é bastante polêmico, o que apenas reforça o acerto do Conselho Superior do Ministério Público do Paraná em editar a Resolução 1/2017, conferindo maior segurança jurídica aos órgãos, autoridades, advogados e partes envolvidas nestas avenças.

A Resolução 1/2017 do Ministério Público do Paraná
A Resolução 1/2017 visou estabelecer parâmetros procedimentais e materiais a serem observados para a celebração de composição, nas modalidades compromisso de ajustamento de conduta e acordo de leniência, envolvendo as sanções cominadas aos atos de improbidade administrativa e aos atos praticados contra a Administração Pública. Esta norma está em plena consonância com as diretrizes da Resolução 118/2014 do Conselho Nacional do Ministério Público, que “dispõe sobre a Política Nacional de Incentivo à Autocomposição no âmbito do Ministério Público”.

Além de todo o arcabouço normativo já mencionado no presente estudo, um dos elementos que embasou a edição da Resolução 1/2017 e que merece destaque é a compreensão de “que, em qualquer hipótese, preserva-se a indisponibilidade do interesse público, pois as aludidas modalidades condicionadas de composição pressupõem: i) o compromisso de recomposição do dano patrimonial causado; e, ii) a imposição de uma ou mais sanções cominadas ao caso, quando a devolução dos valores recebidos indevidamente ou o ressarcimento do dano não se mostrarem suficientes à repressão e à prevenção”.

De acordo com o seu artigo 2º, os acordos poderão ser celebrados tanto na fase extrajudicial, quanto na fase judicial, com pessoas físicas e jurídicas investigadas por atos de improbidade administrativa ou atos lesivos previstos na Lei Anticorrupção.

As modalidades de acordo previstos na Resolução 1/2017 variam conforme a gravidade dos fatos em apuração. Para os ilícitos de menor potencial ofensivo, prevê-se o compromisso de ajustamento de conduta (artigo 3º). Já o acordo de leniência é o instrumento previsto para as situações em que é exigida colaboração com as investigações (artigo 4º).

São requisitos para a celebração do compromisso de ajustamento de conduta, primeiro, a cessação do ilícito. Outro requisito é que a solução consensual seja suficiente para repressão e prevenção do ilícito praticado, considerada sua gravidade e repercussão social. Afinal, acordos não são atalhos para a impunidade.

Também é requisito o compromisso de reparar o dano e restituir totalmente o produto do ilícito. Conforme a gravidade do ato, a restituição poderá ser cumulada com o pagamento de multa civil, proibição de contratar com a administração pública e receber incentivos fiscais ou empréstimos de instituições controladas pelo poder público.

No tocante ao acordo de leniência, disciplinado no artigo 4º da Resolução 1/2017, além dos requisitos para o compromisso de ajustamento de conduta, deve-se preencher outras condições. A primeira é a admissão do colaborador quanto à participação nos fatos. A segunda é a indicação dos demais envolvidos e a obtenção célere de provas do ilícito.

Tanto na fase extrajudicial quanto judicial, é condição de eficácia do acordo a sua homologação pelo Conselho Superior do Ministério Público. Na fase judicial, além do Conselho Superior o acordo será submetido à homologação do juiz.

O parágrafo único do artigo 3º prevê que os interessados serão cientificados de que a composição celebrada com o Ministério Público não impede a ação de outros legitimados, nem afasta as consequências penais decorrentes do mesmo fato, salvo se houver colaboração premiada nesse sentido, naquela seara.

Assim, para evitar que o acordo seja celebrado e, após, o beneficiário venha a ser condenado pelos mesmos fatos, é fundamental que a pessoa jurídica de direito público lesada figure como interveniente na avença, comprometendo-se a não promover ação, caso o pacto seja integralmente cumprido. Caso o mesmo fato tenha repercussões criminais, é indispensável que o legitimado para a propositura da ação penal participe do acordo, de modo a evitar que a confissão na esfera cível redunde em certeza da condenação na esfera criminal.

Conclusão
A Lei de Improbidade Administrativa veda a celebração de acordos. Porém, a passagem dos anos e o surgimento de novos institutos, tais como a colaboração premiada e os acordos de leniência derrogaram tacitamente tal vedação.

Isso não significa dispor do interesse público. Por vezes, o interesse público residirá justamente na celebração do acordo, quer porque o dano ao erário e a ordem jurídica violada serão reparados de modo mais célere e efetivo, quer porque a colaboração possibilitará a descoberta de ilícitos ainda mais graves.

 

 

 

Autor: Francisco Zardo   é advogado, mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná. Professor de Direito Administrativo em cursos de Pós-Graduação. Diretor do Departamento de Direito Administrativo do Instituto dos Advogados do Paraná. Membro da Comissão de Gestão Pública, Transparência e Controle da OAB/PR.


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