Valor da causa não é prioridade para jurisdicionado escolher JEC

Por Ana Raquel Colares dos Santos Linard
Uma das questões que tem ensejado muita polêmica no âmbito dos JECs é a possibilidade de serem aforadas ações cujo valor da causa seja superior ao valor de alçada estabelecido pelo inciso I do artigo 3o. da Lei 9.099/95.

Com efeito, o entendimento dominante aponta para a existência de uma limitação valorativa, delimitada no bojo do inciso I e que se estenderia a todas as causas em tramitação, com exceção daquelas em que não há cobrança de crédito, tais como as derivadas de arrendamento rural ou parceria agrícola.

A polêmica aludida residiria, assim, na possibilidade de serem aforadas, junto aos Juizados Especiais Cíveis, causas que ostentassem valor da causa acima de 40 (quarenta) salários mínimos, por força do disposto no inciso II do artigo 3o da LJE.

Para um melhor exame da questão, vejamos o inteiro teor do artigo mencionado:

Art. 3º. O Juizado Especial Cível tem competência para conciliação, processo e julgamento das causas cíveis de menor complexidade, assim consideradas:
I — as causas cujo valor não exceda a quarenta vezes o salário mínimo;
II — as enumeradas no artigo 275, inciso II, do Código de Processo Civil;
III — a ação de despejo para uso próprio;
IV — as ações possessórias sobre bens imóveis de valor não excedente ao fixado no inciso I deste artigo.
§ 1º. Compete ao Juizado Especial promover a execução:
I — dos seus julgados;
II — dos títulos executivos extrajudiciais, no valor de até quarenta vezes o salário mínimo, observado o disposto no § 1º do artigo 8º desta Lei.
§ 2º. Ficam excluídas da competência do Juizado Especial as causas de natureza alimentar, falimentar, fiscal e de interesse da Fazenda Pública, e também as relativas a acidentes de trabalho, a resíduos e ao estado e capacidade das pessoas, ainda que de cunho patrimonial.
§ 3º. A opção pelo procedimento previsto nesta Lei importará em renúncia ao crédito excedente ao limite estabelecido neste artigo, excetuada a hipótese de conciliação.

De início, percebe-se que o principal critério orientador da competência dos JECs não é o limite valorativo imposto pelo inciso I, mas antes e principalmente a MENOR COMPLEXIDADE, segundo consta a determinação constitucional constante do art. 98, I da CF/88 e que foi reproduzida expressamente pela Lei 9.099/95.

Assim, estabelecido o critério, entendeu por bem o legislador declinar quais seriam as causas que estariam abrangidas pelo referido conceito, arrolando-as nos incisos de I a IV que compõem o artigo 3o.

A meu ver, sendo secundário o critério valorativo, somente poderá ser imposto para as causas onde foi expressamente previsto, como as abrangidas pelo inciso I e IV do aludido artigo 3o., não podendo servir de parâmetro geral de competência.

De fato, quando quis, o legislador estabeleceu a competência utilizando como padrão exclusivo o valor de alçada como se pode perfeitamente verificar do constante do artigo 3o. da Lei 10.259/01, que instituiu os JECCs no âmbito da Justiça Federal:

Art. 3º Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar as suas sentenças.

No âmbito dos Juizados Especiais Cíveis estaduais o que deve preponderar, para fins de delimitação da competência, é, segundo mandamento legal, a menor complexidade que, segundo a experiência forense rapidamente demonstra, não se vincula necessariamente ao valor da causa.

Com efeito, se mostra corriqueira a ocorrência de causas que ostentam complexidade incompatível com o sistema procedimental dos JECs, por demandarem prova pericial especializada, como por exemplo, exame grafotécnico, muito embora apresentem valor abaixo do estipulado pelo inciso I referido, sendo que a situação inversa também sucede freqüentemente, com o aforamento de causas cuja matéria debatida não exibe complexidade, apesar de deter valor da causa acima do estabelecido pelo critério valorativo.

Considerando tal raciocínio, alguns questionamentos daí poderão advir relativamente aos ditames contidos no parágrafo 3o. do artigo 3o. acima referido, bem como nos constantes dos artigos 15 e 39 da mesma Lei 9.099/95.

Art. 15. Os pedidos mencionados no artigo 3º desta Lei poderão ser alternativos ou cumulados; nesta última hipótese, desde que conexos e a soma não ultrapasse o limite fixado naquele dispositivo.

Art. 39. É ineficaz a sentença condenatória na parte que exceder a alçada estabelecida nesta Lei.

Cabe, contudo, salientar que a aplicação de tais ditames se destina especificamente às causas para as quais a Lei prevê a limitação valorativa para a causa, restando, portanto, inaplicáveis para aquelas em que a competência especializada dos JECCs foi estabelecida em razão da matéria.

A jurisprudência, bem como a doutrina especializada, têm confirmado este entendimento através dos julgados que abaixo transcritos:

Ementa

COMPETÊNCIA. INDENIZAÇÃO POR ACIDENTE DE TRÂNSITO DE VALOR SUPERIOR A 40 SALÁRIOS. 1. OS JUIZADOS ESPECIAIS DO DISTRITO FEDERAL TEM EXISTÊNCIA LEGAL DESDE 31/01/96, QUANDO FORAM CRIADOS PELA RESOLUÇÃO N.º 01 DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS. A LEI 9.699/98 RECEPCIONOU ESSA RESOLUÇÃO. 2. AFASTADA A COMPLEXIDADE DA CAUSA, O JUIZADO ESPECIAL É COMPETENTE PARA CONCILIAR, PROCESSAR E JULGAR AS AÇÕES QUE REPARAM DANOS CAUSADOS POR ACIDENTES DE VEÍCULOS TERRESTRES, INDEPENDENTEMENTE DE SEU VALOR (ART.3º/II LEI 9.099/95 E ART.275/II D CPC). 3. O AFORAMENTO DE TAIS AÇÕES NO JUIZADO ESPECIAL NÃO IMPLICA NA RENÚNCIA AO QUE EXCEDER A 40 SALÁRIOS MÍNIMOS.Decisão: REJEITAR A PRELIMINAR. NO MÉRITO, NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO. UNÂNIME. (APELAÇÃO CÍVEL NO JUIZADO ESPECIAL 20000160000169ACJ DF – Registro do Acórdão Número: 131960 – Data de Julgamento : 29/08/2000 – Órgão Julgador : Primeira Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do D.F. – Relator : ANTONINHO LOPES – Publicação no DJU: 21/11/2000 Pág. : 43)

ACIDENTE DE VEÍCULO – Art. 3o., II da Lei 9.099/95 – Não se aplica às causas que têm um fundo em reparação de dano causado em acidente de veículos, a limitação estabelecida no art. 39 da Lei 9.099/95, por força do que dispõe o art. 3o., inciso II, da mesma lei e o art. 275, inciso II, aliena e, do Código de Processo Civil – Recurso conhecido e improvido (Turma Recursal do AMAPÁ, Rec. Civ. 2.948/96, Capital, j. em 04-11-1996, Rel. Raimundo Vales).

“(…) Se se tratar de casos de competência em razão da matéria, os pedidos cumulados, desde que conexos, também podem existir em causas que ultrapassem os quarenta salários mínimos. Isso porque o valor destas causas não encontra limite nos Juizados Especiais Cíveis.” (Silva, Jorge Alberto Quadros de Carvalho, in LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS ANOTADA. Ed. SARAIVA, 2001, pág. 74)

VALOR DA CONDENAÇÃO – Limite de alçada – Não se aplica às causas que têm um fundo de reparação de dano causado em acidente de veículos, a limitação estabelecida no art. 39 da Lei 9.099/95, por força do que dispõe o art. 3o. , inciso II, da mesma lei e o art. 275, II, alínea “e”, do Código de Processo Civil – Recurso conhecido e improvido (Turma Recursal do AMAPÁ, Rec. Civ. 2.948/96, j. em 4-11-1996, Rel. Raimundo Vales.)

O Enunciado nr. 58 do FÓRUM NACIONAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS – FONAJE ostenta idêntico entendimento quando orienta: “AS CAUSAS CÍVEIS ENUMERADAS NO ART. 275,II, DO CPC ADMITEM CONDENAÇÃO SUPERIOR A 40 SALÁRIOS MÍNIMOS E SUA RESPECTIVA EXECUÇÃO, NO PRÓPRIO JUIZADO.”

CONCLUSÃO

Dessa forma, considerados os argumentos acima expendidos, é que ostento entendimento no sentido da inexistência de limitação valorativa para as causas previstas no inciso II do artigo 3o. da Lei 9.099/95, atentando, ainda, para a circunstância de que o critério expressamente adotado pelo legislador constituinte para a competência dos Juizados Especiais Cíveis foi o da menor complexidade e não o valorativo, o qual se apresenta meramente secundário.

Ana Raquel Colares dos Santos Linard é juíza titular do Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca de Juazeiro do Norte (CE).

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