Autor: Lúcio Delfino (*)
Garth Ennis é um destacado roteirista norte-irlandês da nona arte, com trabalhos veiculados especialmente em revistas das gigantes DC Comics eMarvel Comics. Brilhante, ácido e politicamente incorreto, ídolo da culturanerd, suas histórias exploram temas sobre guerra, sexo, conservadorismo social e religião, com forte carga de violência, sarcasmo e — sua marca registrada — humor negro da melhor qualidade. Seu talento já beneficiou inúmeros personagens conhecidos: Juiz Dredd, Batman, Justiceiro, Motoqueiro Fantasma, Darkness e Hellblazer. Além disso, escreveu inúmeras séries e minisséries, a exemplo de Hitman (uma das minhas preferidas),Crossed, Goddess, Wormwood, War Stories, Battlefields, Trooper e, sua mais premiada obra, The Preacher. Sem dúvida, um gênio dos quadrinhos!
Para a reflexão que ora se pretende, traz-se a lume The Boys, um dos trabalhos mais recentes de Garth Ennis, ilustrado por Darick Robertson, forjado em 72 edições, acrescidas e incrementadas pela minissérieHerogasm (6 edições), cuja ilustração coube a John McCrea, publicadas entre 2006 e 2012, com os selos DC Comics (linha editorial Wildstorm) e Dynamite Entertainment. O enredo está relacionado a um mundo onde super-heróis são reais. Ocorre que muitos deles, embriagados pela popularidade e infectados pela arrogância, assumem comportamentos irresponsáveis excedendo-se no uso de drogas e bebidas, envoltos em farras que fariam inveja a Calígula. Outros, por sua própria natureza, são depravados, prepotentes, insanos e megalomaníacos. Pouco ou quase nada treinados para a prática heroica, não dominam seus poderes e os utilizam de maneira desproporcional, causando com frequência prejuízos materiais e dilacerando a vida de inocentes (em uma passagem emblemática Patriota, o mais poderoso de todos os heróis, por mero regozijo, destrói com sua visão laser um enorme avião em segundos e assassina centenas de pessoas). Para assegurar a ordem, um esquadrão da CIA, informalmente conhecido comoThe Boys (Açougueiro, Mulher, Filhinho da Mamãe, Francês, Hughie Mijão e o cão Terror; alguns episódios contam com a participação do extraordinário Linguiça do Amor), atua como contramedida, monitorando os super-heróis, mantendo-os na linha e, se necessário, eliminando aqueles mais rebeldes. SeSuperman ou Capitão América, os queridinhos dos gibis, vivessem ali e fizessem besteira não escapariam de umas boas botinadas!
Mas que diabos tudo isso tem a ver com Direito, atividade jurisdicional e democracia? Na verdade, tudo. É que se pode tomar The Boys de empréstimo para explicar a realidade jurídica naquilo que diz respeito aos direitos fundamentais e à feição contramajoritária da jurisdição no Estado Constitucional. Eliminados os excessos caricaturais, a analogia é quase perfeita: a solução encontrada e explorada nos quadrinhos é a mesma utilizada pelo sistema jurídico. A ideia central nos dois cenários (ficcional e real) envolve heróis e anti-heróis, ambos institucionalmente legitimados e cuja atuação contraposta assegura o porvir de uma sociedade que se almeja democrática e republicana.
Heróis são todos aqueles, pessoas e instituições (legalizadas ou não), que ambicionam a todo custo alterar o status quo, para o bem ou para o mal, sustentando várias bandeiras cuja moralidade ou ideologia é variante de grupo para grupo. Querem deixar sua assinatura para a posteridade. Arvoram-se nos âmbitos políticos, sociais, institucionais e econômicos, buscam ganhar espaço, conquistar seus ideais ou apenas obter nichos de poder. Os exemplos não acabam: líderes de bancadas políticas e religiosas, partidos políticos, pessoas mobilizadas em protestos públicos, associações, instituições de representação profissional e a própria mídia.
Nada há de errado com heróis numa democracia. Muito pelo contrário, são indispensáveis para a sua evolução. Hoje não é possível aceitar como sendo papel do Direito a mera função de atribuir a cada qual aquilo que lhe pertence (algo próximo aos ensinamentos de Aristóteles). Tampouco é adequada uma visão restrita à manutenção da ordem social. Com a sua lucidez rotineira, Ronaldo Cunha Campos lecionava, no final da década de 1970, que o Direito é verdadeiramente um projeto estatal, meio de assegurar a sua própria realização tornando previsíveis e necessárias as condutas humanas direcionadas ao seu fim. A lei assegura a efetivação de uma transformação, dirige o sentido de um movimento que é inevitável.[1] Similarmente, Lenio Streck afirma que, para além do escopo de ordenação, o Direito assume hodiernamente função transformadora da realidade social: a Constituição encarna um contrato social, é a norma diretiva fundamental que obriga e condiciona poderes públicos e particulares de tal maneira que afiança a realização dos valores constitucionais. Há um conteúdo material da Constituição que aponta para a mudança do status quo da sociedade. [2]
Se o Direito transforma, e ele efetivamente o faz, nada mais correto em uma sociedade democrática que o exercício de direitos políticos via grupos de pressão, clamores populares (inclusive pelo uso de redes sociais) e protestos, o incentivo à livre manifestação do pensamento, liberdade de imprensa e associação para fins lícitos, e mesmo a prática cidadã por intermédio de mecanismos institucionalizados (sufrágio, plebiscito, referendo, ações populares, ações coletivas etc.). Tudo isso tem por finalidade provocar mudanças nos rumos políticos e atuações estatais segundo miradas particulares. Não há democracia que se sustente e amadureça sem a atuação de seus heróis. No mundo real, afinal, a prática heroica encontra respaldo na externalização plena da cidadania.
Acontece que os brados em prol de transformações podem ou não se apresentar constitucionalmente legítimos. É aqui precisamente que reside o risco. Lê-se dia a dia, em informativos jornalísticos, notícias sobre grupos armados invadindo propriedades privadas, práticas de trabalho escravo, agressões contra homossexuais, movimentos a favor do aborto, da pena de morte e da redução da maioridade penal. Constata-se, além disso, um mal-estar que a muitos incomoda, relacionado às garantias processuais constitucionais, vale dizer, instituições, mídia, agentes públicos e populares defendendo a admissão de provas ilícitas, a manutenção do estado de arte da (má)fundamentação das decisões judiciais, a abertura para o (teratológico) conceito de parcialidade positiva do juiz, restrições ao contraditório, enfim a tendência de situar o processo na condição apendicular de mero instrumento da atividade jurisdicional. O rol não tem fim e renova-se com regularidade. Ainda pior, há casos nos quais alaridos inconstitucionais ganham forma legal, ingressam no território jurídico-pragmático e causam toda sorte de estragos. Por detrás de tudo isso está também a atuação de heróis, cuja fome de mudanças desborda as possibilidades do possível, que insistem em avançar para além daquilo permitido pela ordem jurídica, munidos de armas retóricas que ganham prestígio sobretudo em momentos de instabilidade.
Entretanto, há uma pergunta habitual em olhares mais atentos: quem, por Deus, nos protegerá da bondade dos bons? [3] Essa a indagação fulcral, que deve estar arraigada na mente do jurista, a surgir por força do instinto como um tilintar doído sinalizando perigo em circunstâncias cujo cenário se anuncie com coloridos progressivos e consequencialistas. Não se pode descuidar do óbvio. A construção da democracia parte de algo já dado. Há um alicerce sedimentado pelo constituinte. Não à toa que a Constituição bloqueia deliberações sobre propostas de emenda constitucional tendentes a abolir a forma federativa de Estado, o voto (direto, secreto, universal e periódico), a separação de poderes e os direitos e garantias constitucionais (CF, artigo 60, §§ 4º). Não por acaso que Dworkin encara os direitos fundamentais como “trunfos” contra a maioria, porquanto a importância deles sobressai de tal maneira a ponto de não ser possível deixá-los sob o arbítrio de quem quer que seja. São cláusulas pétreas e representam fundações sobre as quais todo o edifício democrático está sendo construído, funcionando como balizas à atuação de todos os atores sociais (públicos e privado). A imagem é boa e dá conta do problema: a construção de andares que extrapolem a capacidade de sustentação das fundações revela empreitada de risco e que poderá comprometer toda a solidez da obra. [4]
Nominem como quiserem, mas ninguém pode negar que a metáfora utilizada aqui é uma resposta elegante: contra heróis abusados, trapalhões e superpoderosos a solução está no agir de anti-heróis. Embora não sejam poucos, frequentemente atuam em menor número, e seu prestígio nem sempre está em alta. Não é incomum o herói de hoje tornar-se o anti-herói de amanhã. Tudo muda a depender da conjectura. Mas o que realmente precisa ficar claro é que o papel-mor de anti-herói cabe ao Poder Judiciário, cuja feição hodierna é inegavelmente contramajoritária. Ser juiz não é tarefa fácil, exige responsabilidade política, coragem e reflexão destinadas a sustentar uma personalidade impermeável às ingerências das maiorias e de suas paixões (momentâneas ou não). É aquilo de suspender preconceitos, “bater no peito” e dizer, alto e bom som, que se está a julgar contra a opinião popular como medida indispensável à manutenção das fundações do Estado Democrático de Direito. [5] Pois ao fim e ao cabo significa isso nada menos que garantir a vontade soberana do povo determinada em Assembleia Nacional Constituinte.
Daí por que é preocupante verificar certo pendor pela adoção de uma justiça espetaculosa, modelo segundo o qual — parafraseando o magistrado Rubens Casara — juiz e Ministério Público assumem os papéis principais, a defesa é um figurante tolerado, o acusado um bode expiatório de culpas coletivas, e a mídia arroga para si a incumbência de produzir e divulgar o show. O juiz especialmente transveste-se em órgão de segurança pública, encarna espécie de obsessão punitiva, torna-se investigador dos fatos (junto com a polícia) e produz provas (junto com o MP) atuando como eficiente instrumento de repressão penal, e não como órgão garantidor dos direitos humanos do acusado — instituídos para limitar o poder punitivo do Estado —, tudo em prejuízo do sistema acusatório moderno e da imparcialidade (lembro aqui de Eduardo José da Fonseca Costa),[6] nota característica da jurisdição. (ler aqui) [7]
Estamos muito mal quando nossos juízes, anti-heróis por excelência, decidem tornar-se também heróis.
Autor: Lúcio Delfino é advogado, pós-doutor em Direito (UNISINOS) e doutor em Direito (PUC-SP). Membro-fundador da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).