Ventos estranhos sopram do Supremo Tribunal Federal para os tribunais de contas

Autor: André Luis Nascimento Parada (*)

 

Na sessão do dia 18 de maio de 2017, o Plenário do STF iniciou a discussão de mérito da ADI 4.421 proposta contra a Lei 2.351/2010 do Estado do Tocantins, que alterou e revogou diversos dispositivos da Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins (Lei 1.284/2001).

O relator, ministro Dias Toffoli, apresentou seu voto fundamentado em jurisprudência do STF na linha de afastar permanentemente do ordenamento jurídico a Lei 2.351/2010, por vício formal de iniciativa, uma vez que o projeto de lei que deu origem à lei atacada foi de autoria de deputado estadual. A lei impugnada já estava com a sua eficácia suspensa por meio de decisão do Plenário do Supremo proferida em 06.10.2010.

Abriu divergência o ministro Marco Aurélio. Segundo o ministro, as cortes de contas são órgãos simplesmente auxiliares do Poder Legislativo, razão pela qual não gozam de autonomia administrativa e financeira. Acrescentou ainda que o artigo 73 da Constituição não remete os tribunais de contas à disciplina do artigo 99 da Constituição, que trata da autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário.

Após o voto do relator, que julgava procedente o pedido de inconstitucionalidade, e o voto da divergência, que o julgava improcedente, o ministro Alexandre de Moraes pediu vista dos autos.

Preliminarmente, ressalta-se que o cerne da questão examinada na ADI 4.421 não era a autonomia administrativa e financeira dos tribunais de contas, mas a iniciativa para deflagrar processo de elaboração, alteração ou revogação de leis que fixem a organização e funcionamento das cortes de contas. Logo, o parâmetro constitucional apto a guiar a análise do tema é o artigo 96 da Constituição, e não o artigo 99, conforme será explicado adiante.

Está disciplinado no texto constitucional, nos artigos 71 a 73, a competência e a composição do Tribunal de Contas da União. Especialmente no artigo 73, há regra de extensão normativa que atribui à corte de contas federal, no que couber, o exercício das competências Judiciárias delineadas no artigo 96 da Carta Política, notadamente aquela que se refere à competência privativa acerca da reserva de iniciativa para iniciar processo de elaboração, alteração ou revogação de leis que fixem a organização e funcionamento do TCU, verbis:

Art. 73. O Tribunal de Contas da União, integrado por nove Ministros, tem sede no Distrito Federal, quadro próprio de pessoal e jurisdição em todo o território nacional, exercendo, no que couber, as atribuições previstas no art. 96.

(…)

Art. 96. Compete privativamente:

I – aos tribunais:

(…)

II – ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao Poder Legislativo respectivo, observado o disposto no art. 169:

(…)

d) a alteração da organização e da divisão judiciárias;

Essas regras de organização, composição e fiscalização previstas para o TCU se aplicam aos tribunais de contas dos estados e do Distrito Federal, por força do que dispõe o artigo 75 da Constituição. Tal dispositivo concretiza o princípio da simetria que, em substância, impõe obrigação de os Estados seguirem as opções de organização e funcionamento acolhidas pela Constituição Federal. O artigo 75 é outra regra constitucional de extensão normativa.

Do bloco normativo formado pelos artigo 73, 75 e 96, inciso II, alínea “d”, da Constituição sobressai a interpretação sistemática de que a iniciativa para deflagrar processo legislativo que tenha o escopo de alterar a organização e o funcionamento dos tribunais de contas pertence privativamente aos correspondentes tribunais.

O magistério jurisprudencial do Supremo dessa linha não destoa. Citam-se, entre outras, a ADI 4.418 (ministro Dias Toffoli, julgado em 15 de dezembro de 2016) e a ADI 4. 643 MC, que resume: “1. As Cortes de Contas do país, conforme reconhecido pela Constituição de 1988 e por esta Suprema Corte, gozam das prerrogativas da autonomia e do autogoverno, o que inclui, essencialmente, a iniciativa reservada para instaurar processo legislativo que pretenda alterar sua organização e seu funcionamento, como resulta da interpretação lógico-sistemática dos artigos 73, 75 e 96, II, ‘d’, CRFB/88.” (ministro Luiz Fux, julgado em 6 de novembro de 2014).

Em julgado de 17 de março de 2016 nos autos da ADI 5.442 MC, acerca de lei que modificava a Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina, o ministro Marco Aurélio, relator, assim proferiu seu voto:

A prerrogativa para instaurar o processo legislativo, conferida ao Tribunal de Contas, tem por finalidade preservar sua autonomia funcional, administrativa e financeira. Os projetos apresentados ao Legislativo consubstanciam o instrumento formal do exercício do poder de iniciativa, consistente na escolha dos interesses a serem juridicamente tutelados.

(…)

Modificações, supressões e acréscimos desprovidos de pertinência temática acabam por solapar, ainda que de forma indireta, a competência para deflagrar o procedimento de produção normativa, atingindo, por conseguinte, a própria autonomia constitucionalmente assegurada.

Diante do voto do ministro Marco Aurélio, o Plenário do STF concluiu pela inconstitucionalidade formal da lei.

A toda evidência, o STF está vinculado aos seus precedentes. Certamente os precedentes podem não ser seguidos no caso de aplicação das técnicas de distinguishing ou de overruling, mas quais seriam as causas de distinção ou superação que diferenciam a ADI 4.421 dos demais precedentes fixados pelo STF? E mais, por que o ministro que abriu divergência não considerou, em 2016, os tribunais de contas órgãos auxiliares do Parlamento, sem autonomia “administrativa e financeira”, quando relatou a ADI 5.442 MC? É possível haver julgamento contra o texto constitucional? Ou seja, a interpretação pode simplesmente desconsiderar o texto? Ou, por fim, pode haver julgamento contra a norma jurídica (norma de interpretação) estabelecida pelo próprio STF, sem qualquer distinguishing ou overruling?

Uma Corte Constitucional precisa ter coesão e coerência argumentativa nas suas decisões, o que se aplica igualmente aos seus ministros (uma espécie de stare decisis horizontal, conforme explica Bruno Torrano[1]). Aliás, o artigo 926 do CPC dispõe que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.

De mais a mais, a tese da divergência não tem sustentação teórica. Rememora-se que a questão principal tratada na ADI 4.421 não se refere à autonomia administrativa e financeira de tribunais (artigo 99 da Constituição), mas a autonomia funcional, independência igualmente funcional e autogoverno dos tribunais de contas. No bojo dessas características (funcionais) está encartada a iniciativa para iniciar processo de elaboração, alteração ou revogação de leis que fixem a organização e funcionamento das cortes de contas, conforme dispõem os artigos 73, 75 e 96, inciso II, alínea “d”, da Constituição.

O artigo 71, caput, da Constituição, ao estabelecer que o controle externo será exercido com auxílio do TCU não está a indicar auxílio no sentido de subordinação hierárquica ou subalternidade orgânica ou funcional do Tribunal de Contas, mas a especificar regime de mútua colaboração entre o Parlamento e a casa de contas, com competências próprias, distintas e bem definidas. Basta compulsar os diversos incisos do artigo 71 da Constituição para verificar que o constituinte originário outorgou ao tribunal de contas competências exclusivas e indelegáveis a qualquer outro Poder da República.

Essas competências são exercitáveis contra qualquer um dos três Poderes, o que afasta a hipótese de submissão hierárquica das cortes de contas ao Parlamento. Na feliz síntese de Hélio Saul Mileski, “o Tribunal de Contas sem ser Poder ficou com poder de fiscalizar o Poder.” [2]

Explica Odete Medauar que a expressão “com auxílio do tribunal de contas” (artigo 71, caput, da Constituição) tem gerado certa confusão, sobretudo no que se refere à ideia de considerar o tribunal de contas subordinado ao Poder Legislativo. Esclarece a autora que se confunde a função com a natureza do órgão, pois “na verdade, a Constituição Federal em nenhum dispositivo utiliza a expressão ‘órgão auxiliar’; dispõe que o controle do Congresso Nacional será exercido com auxílio do tribunal de contas; a sua função, portanto, é de exercer o controle financeiro e orçamentário da Administração, em auxílio, em apoio, ao poder responsável, em última instância, por essa fiscalização.” A escoliasta arremata: “se a sua função é de atuar em auxílio ao Legislativo, sua natureza, em razão das próprias normas da Constituição, é de instituição independente, desvinculada da estrutura de qualquer dos três Poderes. Por conseguinte, o tribunal de contas configura instituição estatal independente.”[3] Como se percebe, as competências atribuídas pela Constituição Federal aos tribunais de contas os qualificam como órgãos autônomos, independentes, que auxiliam o Poder Legislativo na função de controle externo, atuando em regime de cooperação, sem serem subordinados ao aludido Poder, haja vista que detêm competências funcionais próprias, inclusive a de iniciar privativamente processo legislativo com objetivo de alterar sua organização e funcionamento.

Crê-se que esse foi o arranjo jurídico-institucional utilizado pelo constituinte originário para proteger os tribunais de contas de ingerências do Poder Legislativo e do Poder Executivo, obstando que as cortes de contas tenham suas atribuições constitucionais esvaziadas mediante alterações legislativas que modifiquem sua estrutura orgânica.

Por fim, parafraseando expressão reiteradamente utilizada pela divergência, “vivenciamos tempos estranhos”, entende-se que não são os “tempos”, mas “os ventos que sopram do Supremo que são estranhos”. A alusão ao vento é porque se trata de fenômeno natural que, sem qualquer coerência, constantemente muda de direção.


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