Autor: Roberto Wanderley Nogueira (*)
A deputada Mara Gabrilli, notável protagonista da inclusão social em nosso país, esteve corretíssima na tribuna da Câmara dos Deputados quando de sua indignação contra estranhos vetos à Lei Brasileira da Inclusão/Estatuto das Pessoas com Deficiência (Lei 13.146/2015 — LBI). Por artes de uma mesma política (em muitos casos, eufemismo de desonestidade intelectual), estranhamente o Congresso Nacional acabou confirmando essas autênticas antinomias jurídicas (vetos presidenciais à LBI).
Parece induvidoso que o governo dá na forma e retira ou nada faz em substância na matéria dos direitos fundamentais das pessoas com deficiência. Suas políticas associadas parecem fachada, apenas. Todos os dias nos chegam demandas sobre a disparidade entre a plataforma normativa vigente e sua efetivação no plano dos fatos sociais, sobretudo das Instituições Públicas e da falta de fiscalização quanto à ordem nas relações privadas.
Os vetos contra a Lei Brasileira da Inclusão, norma que em grande medida repete princípios constitucionais insertos na Ordem Constitucional desde o advento na qualidade de emenda constitucional da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto Legislativo 186/2008 e Decreto 6949/2009), a bem da verdade, são atentatórios à autoridade da própria Constituição Federal e, como tal, geram, só por isso, em tese, a possibilidade de um processo de impeachment de seu autor, quiçá mal assessorado, muito embora no momento a classe política só tenha olhos e se preocupe de fato com a chamada operação “lava jato”, como se o mundo girasse em torno de um assunto só, nada obstante a magnitude das repercussões dessa investigação oficial.
O enquadramento alhures é objetivo e não encontra defesa eficaz, conforme o que estabelece o artigo 4º, inciso III, da Lei 1.079/1950 (devidamente recepcionada pela Constituição Federal de 1988). A presidente da República, sabendo de sã consciência ou não, empreendeu as suas prerrogativas para atentar contra cláusulas pétreas estimadas na Carta Política da Nação, violando descerimoniosamente a princípios de Direitos Humanos e de garantias fundamentais do cidadão com deficiência, como quando relativizou a observância do princípio “desenho universal” nas construções da casa própria pelo sistema Minha Casa, Minha Vida. Um completo non-sense se estabeleceu, então. Realmente, não parece fazer o menor sentido que tantos juristas desconheçam esse histórico recente. Alguns, inclusive, se deram ao trabalho de se deslocar até Brasília para, reunidos publicamente, lançar uma manifestação de solidariedade contra o procedimento em curso.
Desse modo, quem julgasse que o Direito fosse neutro, teórico, passou a perscrutar se ele tem lado. De Direito Positivo, todavia, é que esses juristas de nomeada de fato não cogitaram quando partiram para a defesa abstrata e ideológica da presidente da República. Poderiam e podem fazê-lo, certamente, mas não de modo a insinuarem coro com as instituições jurídicas do nosso país apenas para defender a autoridade mencionada contra o que consideram politicamente inaceitável (luta pelo poder no curso de mandato eletivo).
E podem menos ainda, noutros termos, se escorar preconceituosamente nas pessoas com algum tipo de deficiência, arrotando conhecimento que simplesmente não têm ou não são capazes de demonstrar no momento sobre um assunto ou outro. O nível de nossos operadores jurídicos continua a deixar a dever à Nação, perplexa e desassistida de fato.
Inclusão social, outrossim, é argumento raro mesmo entre os juristas nacionais e até mesmo nos tribunais da República. Basta dizer que não se respeita a política de cotas para pessoas com deficiência no âmbito dos programas de pós-graduação do qual fazem parte alguns desses professores que fizeram questão de ir ao Palácio para defender o mandato da atual presidente da República, deixando suas cátedras e assumindo posição político-partidária clara. Os tribunais também não costumam reservar vagas para pessoas com deficiência em seus quadros de magistrado (fazem-no apenas para funções auxiliares da Justiça).
Os juristas podem, todavia, fazer a defesa que bem entendam, sem dúvida alguma, mas não na pretensão de representarem, ainda que implicitamente, as instituições jurídicas do país, tampouco a academia a que pertençam sem delegação de atribuições para isso. Aliás, observou-se até mesmo a presença de contumazes candidatos ao posto de ministro do STF, além de outros postos da República que correm à caneta e à simpatia presidencial. O Brasil vai mostrando a sua cara, conforme uma linha comum que agrega gente de todos os segmentos e que pouco ou nada dizem com o desenvolvimento da democracia participativa nacional. É um jogo midiático apenas. E trágico!
Veja-se o absurdo. “Jurista” que não sabe o que significa a Síndrome do Espectro Autista e banaliza, inventa ou caricaturiza, pelo desconhecimento preconceituoso, os seus sintomas clínicos e/ou os seus efeitos sociais, não pode se dizer jurista. Está deslocado do plano da realidade e age por impulso de algum propósito interior diverso da ética dos valores tradicionais. A ignorância não pode conduzir os destinos da Nação, da organização social.
Como dito, podem-se divisar naquele meio candidatos ao STF e a outros cargos da República, além de advogados do capital e de grandes empreiteiros, carreiristas de todos os níveis, partidaristas de carteirinha, prosélitos, fisiocratas e outros “bichos” ferozes que habitam a floresta do patrimonialismo cartorial e corporativista das castas de juristas do Brasil (subproduto histórico do bacharelismo coimbrão), além de um ou outro ingênuo, outros tantos aduladores contumazes, os quais não hesitam em colocar seus eventuais talentos a serviço do oportunismo, de gravitarem em torno do poder, seja quem for que o exerça no momento, e desancam, alguns deles, a vituperar a dignidade alheia sem nenhum conhecimento de causa, caso da adjudicação do termo “autista” para designar o que uma pessoa com a Síndrome do Espectro Autista simplesmente não é.
O curioso é que, bem ou mal, o procedimento de impeachment atualmente levado a efeito pela Câmara dos Deputados é perfeitamente legal, à parte o insólito ativismo judicial empreendido nos últimos tempos pela Suprema Corte que insiste, sem forma e/ou figura jurídicas, em adjudicar para si funções constituintes fora da perspectiva dos Mandados de Injunção. O expediente político-legislativo do impeachment, ademais, atende fielmente às prescrições constitucionais da espécie e ninguém o ignora, salvo quem não estiver interessado em respondê-lo em seu mérito. É grande o esforço, por vezes desesperado, de se estabelecer um julgamento fluido sobre o mérito da imputação em foco, atitude midiática à frente das câmeras, não raro, justo às pressas e com base apenas em elucubrações unilaterais, quiçá sectárias e só de momento. Manifestações toscas, antiepistemológicas, de quem deveria produzir ciência ou conhecimento abalizado, distante dos objetos da própria abordagem, não são difíceis de se constatar nos dias que correm.
Se fosse para considerar os vetos à LBI, além do mais, o procedimento deimpeachment já deveria ter sido instaurado há mais tempo, porque presidente algum atenta contra a Constituição da República para não sujeitar-se às consequências desse tipo de infração política grave contra o Estado de Direito. Tampouco se negligencia um quarto da população brasileira com algum tipo de deficiência impunemente (conforme Censo 2010/IBGE).
Desse modo, se há “golpe” a cogitar na espécie em causa, entre os protagonistas do impeachment presidencial e os seus resistentes, logo se verifica que o propósito desse azáfama argumentativo é justamente corroborá-lo e não reprimi-lo, porque as polaridades ali foram caprichosamente invertidas, naturalmente por motivos ideológicos que não devem contaminar os esforços de composição do quadro institucional que tanta perturbação vem atraindo à Nação e à estabilidade das relações do Estado brasileiro.
Nada obstante, ainda vamos assistir ao desfile de outras tantas bizarrias tupiniquins até o desfecho desse processo. Começou o controle judicial das normas regimentais do Congresso da República. Resta saber se esse experimentalismo vai se consolidar no sistema constitucional brasileiro, à revelia de suas próprias normas e dos princípios jurídicos ativos na Carta Política (alopoiese).
O Supremo Tribunal Federal, que não é um laboratório de pesquisas empíricas ou sequer lógico-formais (simuladas), porque apenas confere corporeidade à Ordem Normativa vigente, não foi idealizado para isso no Estado de Direito.
Autor: Roberto Wanderley Nogueira é juiz federal em Recife, doutor em Direito pela UFPE, professor da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).