Videoconferência e tortura

Neste mês de setembro de 2008 veio à tona um caso interessante de aparente erro judiciário. Três réus foram libertados após ficarem presos cerca de dois anos, acusados e pronunciados para serem julgados pelo Tribunal do Júri como autores de crime de estupro e homicídio. É que houve a prisão de outra pessoa, que confessou mais de uma dezena de crimes sexuais seguidos de homicídio na Cidade de Guarulhos, em São Paulo. Os três rapazes, então, revelaram para a imprensa, de forma livre, que foram vítimas de tortura na fase de apuração policial do crime.

Essas notícias levam à indagação do seguinte: se em uma hipótese de ter ocorrido tortura ou alguma outra forma de violação da incolumidade física de um preso, que comparece pessoalmente à presença do Juiz quando do interrogatório, nem sempre é possível de se aferir tal circunstância ou de se conferir se as garantias constitucionais da pessoa humana estão sendo respeitadas, como ficaria se o Congresso Nacional aprovasse o interrogatório por videoconferência ?

Sem dúvida, com a legalização do “interrogatório à distância” ou videoconferência, a atividade fiscalizadora do Poder Judiciário do respeito à incolumidade física do preso ficaria gravemente prejudicada.

Além disso, seria jogar no lixo toda a evolução do Direito Penal, enriquecido com a Psicologia Forense, que reúne conhecimentos de inteligência e de interpretação da linguagem gestual da pessoa inquirida. Também seria um retumbante retrocesso em relação à evolução legislativa que, recentemente, pela Lei 11.719 de 2008, adotou finalmente o princípio da identidade física do juiz criminal (ou seja, o juiz que ouve o réu e as testemunhas deve ser o mesmo que decide).

Igualmente, a videoconferência transforma o remédio constitucional do habeas corpus em mais recurso processual, despojando-o de sua utilidade histórica, desde os tempos de possível origem no Direito Romano na figura do interdictum de homine libero exhibendo, pelo qual não só se garantia o direito de locomoção ao cidadão, mas também garantia a exibição do preso ao magistrado, que podia verificar as condições físicas e psicológicas em que aquele se encontrava.

A apresentação do preso ainda se mantém como prerrogativa do Juiz, em qualquer fase do processo ou instância e foi ratificada pela recente e já citada Lei 11.719 de 2008, que impõe ao poder público o dever de providenciar a apresentação do acusado preso para comparecer ao interrogatório.

A videoconferência, ao meu ver, é ótima e instrumento tecnológico atual a ser utilizado nos mais diversos campos da atividade humana. Mas no processo penal, ela contraria os princípios da Constituição da República e atenta contra as garantias individuais do preso.

Em São Paulo, violando a Constituição da República, o sistema de “teleaudiência” foi implantado pela Lei nº 11.819/2005, com tentativa de explicar a sua constitucionalidade pela invocação do artigo 24, inc. XI, da Constituição Federal (“Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: XI: procedimentos em matéria processual.”).

Porém, acredito que o argumento é equivocado, pois a norma mencionada abre a possibilidade de o Estado legislar sobre procedimentos em matéria processual – e não em matéria processual, como o fez a Lei Paulista.

A regra processual que compreende o ato processual do interrogatório do acusado é prevista nos artigos 185 e seguintes do Código de Processo Penal e submetem o Juiz e as partes a uma dinâmica previamente estabelecida por força de Lei Federal – não compreendendo simples procedimentos, de contornos ordinatórios, que poderia ser objeto de lei estadual.

Para a alteração da regra prevista na lei federal a referida lei estadual não se mostra suficiente, sucumbindo à inconstitucionalidade decorrente de expresso e claro texto do artigo 22, inc. I da Constituição Federal (“Compete privativamente à União legislar sobre: I: direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho”).

O interrogatório, na lição de Tourinho Filho é “um dos atos processuais mais importantes…é meio de defesa; pode “constituir fonte de prova, mas não meio de prova: não está ordenado ad veritatem quaerandam”. Prossegue o mestre: “assim, não se pode ter como válida uma declaração do indiciado ou réu obtida mediante tortura, ameaça, cansaço (interrogatórios realizados durante horas e horas…) ou maus-tratos outros” (Código de Processo Penal Comentado, 10ª ed., pgs. 537/538).

Não é, pois, por acaso, que a toda a evolução do história do Direito conduziu à necessidade legal do réu ser apresentado pessoalmente diante do juiz para ser interrogado.

Sem dúvida que a realização da videoconferência não possibilita ao Magistrado aquilatar todos os sinais de linguagem, verbal e não verbal expostos pelo réu durante o interrogatório.

O interrogatório por videoconferência não permite ao juiz a amplitude de visão e conhecimento tal como o interrogatório presencial fornece.

A presença de advogado para acompanhar a oitiva, no presídio, por mais que seja obrigatória, não me parece que teria o condão de espancar todas as dúvidas quanto a serenidade do ato, notadamente porque, se sofreu o interrogando qualquer modalidade de violência física – e sabidamente há aquelas que não deixam marcas aparentes – e pelo fato de se encontrar depondo no interior do presídio, jamais suscitaria a questão porque em breve estaria novamente à frente de seu algoz.

Sabidamente, o ato realizado na presença do magistrado, pessoalmente, reveste-se de maior segurança, na medida em que permite ao interrogando exercitar seu direito de falar, ou não, ou discorrendo acerca do que entender lhe seja adequado, poderá, inclusive, apontar questões que extra-autos lhe inflige perigo, notadamente pela regra imposta por determinadas facções carcerárias que impõe suas vontades aos seus comandados ou não. É certo que se alguma questão for suscitada fora do presídio, a garantia de sua vida poderia a tempo ser assegurada, situação que não se observa no interior do cárcere, a minutos e a poucos metros do claustro.

Nesse sentido foi muito feliz o Ministro César Peluso, citando Zalusky, no voto proferido nos autos do HC 88914/SP, julgado aos 14/08/2007, invocando Argentieri e Habib, respectivamente:

“Mais do que modo de ver e ouvir, o interrogatório é evento afetivo, no sentido radical da expressão. Assim como em sessão psicanalítica, é fundamental a presença física dos participantes em, ambiente compartilhado. Duras criticas já foram, aliás, desferidas contra a possibilidade de realização de sessões psicanalíticas por telefone, e cuja adoção é também sustentada com base em razões de economia de tempo, de esforço e coisas que tais”.

E prossegue:

“A comunicação não pode prescindir de tudo o que não é verbal mas acompanha o que é dissimulado por palavras. Quanto mais rica a relação “in vivo”, tanto mais eficaz o experimento. A percepção nascida da presença física não se compara à visual, dada a maior possibilidade de participação e o fato de aquela ser, ao menos potencialmente, muito mais ampla”.

Por outro lado, não e pode perder de vista que a realização do interrogatório on line viola o princípio da publicidade, maculando os demais atos processuais. Segundo a lição de Tourinho Filho:

“o interrogatório on line (por videoconferência), a nosso juízo, viola o princípio da publicidade, e, além disso, estando o Juiz a distância, não pode perceber se o interrogando está ou não sofrendo qualquer tipo de pressão. Ele deve ser realizado coram judice, na presença do Juiz”.

É importante ressaltar que o fato de que a videoconferência implicar maior conforto, segurança e economia pela Administração Pública, isso não pode se sobrepor ao comando da Lei Processual que estabeleceu as regras para a audiência pessoal do interrogatório.

Ao Estado cabe prover a segurança e todas as garantias para que se proceda a audiência pessoal do interrogatório, descabendo aqui análise a levantamentos estatísticos acerca de gastos ou emprego de contingente policial para a realização dos traslados, posto que esta operação compreende atividade do Estado e cabe ao Estado realizá-la.

Bandeiras agitadas de celeridade, segurança e presteza na produção da prova, gerando como conseqüência a antecipação do encerramento da instrução e sentença, não se mostram suficientes para subjugar a Constituição e, por ora, a própria lei federal que disciplina o processo penal.

A nulidade de interrogatório feito à distância, para mim, é evidente.

Por fim, acho duvidosa a constitucionalidade do Decreto 5.015, de 12 de março de 2004, que adotou no Brasil a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transacional, conhecida como Convenção de Palermo, admitindo a videoconferência para proteção de testemunhas e a otimização da cooperação internacional para combate à criminalidade organizada.

Finalizo para dizer que, o combate à tortura de preso não se faz à distância, mas com a apresentação do preso ao Juiz, que deve levantar os olhos do processo e olhá-lo cuidadosamente, sem prejuízo do rigor da aplicação da lei.

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Leonel Costa
Desembargador substituto no Tribunal de Justiça de São Paulo

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