Vinculação dos árbitros aos precedentes judiciais

Autor: Guilherme Rizzo Amaral (*)

 

Em recente Congresso realizado pelo Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr), discutiu-se o tema da vinculação dos árbitros aos precedentes judiciais, tendo o professor Francisco José Cahali proferido brilhante palestra sobre o tema.

O objetivo deste breve artigo não é tratar do tema de modo abrangente, o que foi feito em obra específica, na qual concluímos pela vinculação dos árbitros a determinados precedentes judiciais. Pretendo tão somente dialogar com algumas ideias que foram apresentadas pelo ilustre palestrante.

Cahali iniciou sua exposição partindo de um problema hipotético, consistente na decisão do árbitro que ignora uma reforma legislativa e decide julgar com base no texto da lei revogada. Estaria o árbitro autorizado a fazê-lo? No entender de Cahali, não. O árbitro deve julgar conforme o direito vigente, salvo quando autorizado pelas partes a deixar de fazê-lo.

Seguiu-se a exposição, afirmando-se que, da mesma forma que o árbitro deve observar o direito legislado, deve também observar os precedentes judiciais que, com o novo CPC, passariam a constituir fonte normativa. A inobservância dos precedentes pelo árbitro estimularia a imprevisibilidade e a insegurança jurídica.

Ao final, contudo, concluiu Cahali que a sentença arbitral que deixa de aplicar o precedente não estará sujeita a anulação com base no artigo 32, IV, da LArb, sendo os precedentes persuasivos e devendo os árbitros agir com bom-senso na sua aplicação.

Observo que, reconhecido o dever do árbitro de seguir o precedente, a licença para o uso do bom-senso nada mais é do que um apelo ao senso de justiça do julgador. Trata-se, aqui, de franquear ao árbitro a possibilidade de avaliar a conveniência de reproduzir o mesmo entendimento da corte de precedentes ou de, dele, se desgarrar.

Esse apelo ao senso de justiça ou conveniência do árbitro, contudo, confunde-se com a ideia de julgamento por equidade, como reconhece a doutrina arbitral. Julgamentos por equidade — que não se confundem com julgamentos com equidade — são exceção, somente legitimados quando autorizados expressamente pelas partes. Isso porque a autorização de julgamento por equidade implica autorização para julgar contra legem, ou ainda a própria derrogação do direito positivo. A necessidade de expressa autorização das partes, nesses casos, erige-se em princípio largamente reconhecido na arbitragem internacional e doméstica. Decisões que ignoram o direito e são proferidas com base exclusivamente no senso de justiça do árbitro são extravagantes e, assim, passíveis de anulação, como reconhecem as cortes de diferentes países.

A arbitragem doméstica brasileira não destoa desse princípio. O Brasil adota em sua lei de arbitragem (Lei 9.307/96 – LArb, artigo 11) a orientação da Lei Modelo de Arbitragem da UNCITRAL, segundo a qual o tribunal somente poderá decidir por equidade se expressamente autorizado pelas partes (artigo 28-3). Nisso se alinha com a orientação da ampla maioria das legislações nacionais e das regras institucionais, sendo honrosa exceção o direito arbitral argentino, que prevê, na ausência de manifestação expressa das partes, estar o árbitro autorizado a agir como amiable compositeur(Código Procesal Civil y Comercial, artigo 766).

No Brasil, quando o árbitro decide por equidade sem autorização das partes, está decidindo fora dos limites da convenção de arbitragem, atraindo a sanção de nulidade para sua sentença, nos termos do artigo 32, IV, da LArb. Como afirma Cahali em festejada obra, “vedado na convenção o julgamento por equidade, mesmo nas hipóteses em que a lei material eventualmente autoriza tal método, o árbitro estará adstrito à vontade das partes, e assim, caso a sentença venha a decidir o conflito fundamentando-se na equidade, será nula, na forma prevista no inciso em exame”.

Facilmente se vê, portanto, que se Cahali reconhece o dever dos árbitros em julgar conforme os precedentes judiciais e vê, nestes, fonte de direito tal qual a lei emanada do parlamento, deveria coerentemente reconhecer a anulabilidade da sentença arbitral que desconsidera o precedente.

O reconhecimento do precedente judicial vinculante como fonte de direito não deve ser visto como algo extravagante. Já a ideia de que o árbitro poderia aplicar ordenamento jurídico distinto daquele aplicado pelo juiz, esta sim, deve ser vista como extravagante, na medida em que confunde diferentes sistemas de resolução de conflito (judicial e arbitral) com diferentes ordens jurídicas.

O árbitro vincula-se aos precedentes judiciais na medida em que as partes elegem arbitragem de direito e que os precedentes judiciais vinculantes integram o Direito brasileiro. É dizer: não está o árbitro vinculado aos precedentes por conta da (inexistente) aplicação direta de dispositivos do CPC à arbitragem, mas pela vontade das partes que deram ao árbitro a missão de julgar conforme o direito.

Essa constatação não implica fragilização da definitividade da sentença arbitral. Pelo contrário, legitima-a como ato consentâneo com o interesse das partes que, aliás, podem muito bem optar por arbitragem por equidade ou, ainda, por expressamente excluir, no compromisso arbitral, a aplicação de precedentes. O que não se pode é presumir tal escolha quando as partes assim não dispuserem expressamente.

Além disso, é preciso aquilatar o impacto real dessa conclusão.

Estudos sobre arbitragem internacional apontam que 60% a 70% dos casos são decididos com base na prova e não em controvérsias sobre a interpretação de normas jurídicas. Nestes casos, precedentes não teriam impacto algum. Como se não bastasse, quando a controvérsia diz respeito a questões de direito, não raro diz respeito à interpretação de cláusulas contratuais, hipótese em que, também, precedentes dificilmente exercerão algum papel, mormente aqueles das Cortes Superiores (os únicos que, no meu sentir, são vinculantes para os árbitros).

Restaria, assim, um reduzidíssimo número de arbitragens em que se controverteria sobre interpretação de leis ou dos próprios precedentes. Ainda aqui, serão extremamente raros os casos em que decisões de tribunais superiores exercerão algum papel. Ocorre que não é possível extrair precedente de toda e qualquer decisão judicial. Como já ressaltamos, o precedente não se confunde com a decisão judicial do qual emana. Ele deve ser dela extraído por quem o aplicará subsequentemente a partir da ratio decidendi. Na clássica definição de Salmond, “o precedente é uma decisão judicial que contém em si mesma um princípio. O princípio subjacente que forma seu elemento de autoridade é geralmente chamado de ratio decidendi”. Pode-se dizer que o precedente reside fundamentalmente na ratio decidendi de uma decisão judicial, ou seja, nos motivos determinantes e generalizáveis que podem ser aplicados no processo decisório de outros casos semelhantes.

É fácil ver, portanto, que para uma decisão judicial gerar precedente vinculante para o árbitro, será preciso nela identificar motivos determinantes generalizáveis e deles extrair uma ratio decidendi capaz de ser aplicada ao substrato fático análogo de um conflito arbitral.

Digamos, contudo, que uma tal hipótese ocorra. Poderá a sentença arbitral ser anulada simplesmente se aplicado erroneamente o precedente? É claro que não. Tal qual ocorre nos julgamentos por equidade, não é porque o árbitro errou ao interpretar a lei que a sentença estará viciada. O que gera o vício e a possibilidade de anulação é o julgamento expressa e conscientemente contra legem. Nele se reconhece a existência de lei ou do precedente vinculante mas se deixa de aplicá-los por entender, o árbitro, ser capaz de encontrar solução mais justa do que encontrou o legislador ou a corte de precedente. É assim, por exemplo, nos Estados Unidos, que limita as hipóteses de revisão judicial do mérito da decisão ao manifest ou conscious disregard of the law, e também na Inglaterra, cujo appeal on point of lawnão autoriza o Judiciário a corrigir a aplicação do direito pelo árbitro, mas apenas a escolha do direito, seja ele oriundo do parlamento (statutory law) ou do judiciário (precedent).

Assim, se o árbitro reconhecer o precedente mas fizer o distinguishingequivocadamente, sua sentença não será passível de anulação. Se, por outro lado, o árbitro reconhecer o precedente mas decidir julgar contrariamente a ele por entender estar errada a corte de precedentes, a sentença arbitral será passível de anulação na medida em que o árbitro estará julgando exclusivamente conforme seu senso de justiça. É dizer, estará julgando por equidade, contrariando a vontade das partes que escolheram arbitragem de direito. Se, por fim, o árbitro for provocado a se manifestar sobre o precedente e deixar de fazê-lo, a sentença será passível de anulação por falta de fundamentação (LArb – artigo 32, III, combinado com 26, II).

 

 

 

 

Autor: Guilherme Rizzo Amaral é doutor em Direito pela UFRGS, mestre em Direito pela PUCRS. Autor de Comentários às Alterações do Novo CPC (Ed. Revista dos Tribunais, 2016, 2ª ed.) e sócio de Souto, Correa, Cesa, Lummertz & Amaral Advogados. Visiting Scholar na Queen Mary University of London – Centre for Commercial Law Studies.


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