Fernando Célio de Brito Nogueira
Li, recentemente, no Boletim IBCCrim, interessante artigo de conceituado doutrinador e professor, que me chamou a atenção por pregar a idéia de que nosso Direito Penal, no tocante aos ilícitos praticados por meio do computador, deve ser deixado em paz, pois prevê figuras típicas em princípio bastantes para alcançar comportamentos ilícitos praticados por meio do computador, inclusive na rede mundial de computadores, a internet.
Ouso discordar da bem posta opinião.
É lugar comum entre os operadores do direito a constatação de que o excesso de leis é prejudicial ao sistema jurídico, principalmente por violar princípios inscritos inclusive em nossa Constituição Federal, causando situações de perplexidade que nem mesmo a jurisprudência pode dirimir facilmente. Demonstração maior disso é o que se fez em nossa legislação penal de 1990 aos dias atuais, com a edição sucessiva de leis sem técnica, sem rigor científico e sem maiores indagações no que tange à sua integração ao sistema normativo como um todo, em face de princípios e outras normas pré-existentes, obras de um legislador mais preocupado em atender aos apelos da mídia sensacionalista, em nome de um Direito Penal cada vez mais rigoroso, como se residisse necessariamente aí a solução da grave questão da criminalidade.
Apesar disso, se de um lado o direito positivo é estático, a vida em sociedade sabidamente não é. E a jurisprudência, por mais que vivifique e humanize o direito, conformando e buscando conformar a letra fria da lei ao calor do drama humano que habita os casos concretos, jamais poderá sobrepor-se à lei ou mesmo substituí-la, sob pena de manifesta desvirtuação das funções judicial e legiferante, fenômeno incompatível com o Estado de Direito e com a independência e autonomia que deve haver entre os poderes do Estado, o que surge como garantia do próprio regime democrático.
E o homem, com sua capacidade inventiva infinita, chegou ao computador, um dos mais marcantes inventos de nosso século, que veio para ficar, como a escrita, a eletricidade e a telefonia, ocupando definitivamente seu lugar no trabalho, nas escolas, nos hospitais, nos lares, nos aviões, automóveis, navios etc.
E é essa mesma capacidade inventiva que leva aqueles que são afeitos à ilicitude penal a utilizar o computador como instrumento de crimes mais arrojados, protegidos pelo anonimato que decorre da dificuldade maior – pelo menos até aqui -, de apuração da autoria de determinadas condutas e mesmo de sua comprovação material.
Indago, assim, se a violação da correspondência eletrônica, muito usada hoje em dia por sua praticidade, rapidez e baixo custo, constitui crime previsto em nosso ordenamento jurídico. Abro o Código Penal de 1940 (tempo em que ainda não se falava em computador, salvo em eventuais obras de ficção) e encontro o crime de violação de correspondência, previsto no art. 151 do Código Penal: devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada, dirigida a outrem.
A mensagem de correio eletrônico poderá ser equiparada à correspondência fechada prevista no tipo penal? A resposta é negativa, pois o conceito de correspondência nos é dado pela Lei nº 6.538/78, em seu art. 47 (toda comunicação pessoa a pessoa, por meio de carta, através da via postal ou telegrama). Além disso, o Código Penal referiu-se à correspondência fechada, envelopada ou embrulhada, lacrada, e não a uma mensagem transmitida por meio de computadores ou, como se diria hoje, pela telemática (uso de telefonia + informática), meio de veiculação da internet entre nós.
Na Lei Federal 9.296, de 24 de julho de 1996, que regulamentou o disposto no inciso XII, parte final, do art. 5º, da Constituição Federal, temos no art. 10 o crime de interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática. Interceptar, contudo, não tem necessariamente o sentido de devassar, conhecer, violar o sigilo de, mas o sentido de impedir, deter, conter, cortar a passagem, interromper o curso.
Não existe crime por analogia e nem por integração analógica, sabendo-se que o Direito Penal só admite a analogia para beneficiar o agente, não para puni-lo ou agravar-lhe a punição. Assim, enquanto não houver norma legal específica, a violação pura e simples de correspondência eletrônica, resvalará para a atipicidade penal. Evidente que a forma de utilização ou de divulgação do conteúdo obtido por meio da violação poderá constituir outros crimes, inclusive contra a honra, sem prejuízo da responsabilidade civil.
Desse modo, com o devido respeito à opinião externada por aquele ilustre doutrinador, penso que o Direito Penal não poderá ser deixado em paz por muito tempo diante dos novos comportamentos ilícitos que têm surgido e ainda surgirão com a utilização dessa ferramenta cada vez mais presente chamada computador.
O autor é Promotor de Justiça de Barretos