Violência invisível contra mulher exige mais atenção

Autor: Jones Figueirêdo Alves (*)

 

A vitimização da mulher sob o elevado espectro de uma lei penal de regência (Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha) que alcança uma década de vigência, deve começar a ser observada, urgentemente, a partir de um grave elenco de suas invisibilidades. Ou seja, mais atenção ao círculo de situações onde a mulher sofre violências despercebidas, subjacentes a uma relação de dominação e que exigem resposta adequada.

Assim se apresentam as violências invisíveis, quando (i) a dependência econômica a submete a uma violência psicológica, colocando-a em passividade e com tolerâncias desconformes; ou quando (ii) a violência patrimonial a sujeita assistir, por exemplo, nos conflitos intraconjugais, bens materiais e objetos pessoais serem destruídos.

No ponto, Mário Delgado em seu artigo A Violência patrimonial contra a mulher nos litígios de família, destaca que a retenção indevida de patrimônio ”nos casos de separação de fato, no afã de coagir a mulher a retomar ou a manter-se na convivência conjugal” constitui prática comum de violência patrimonial. Mais. Diz ele que a violência patrimonial pode ser engendrada por formas mais sutis, a exemplo de quando o marido subtrai ou faz uso exclusivo dos bens comuns ou quando o devedor de alimentos retém o pagamento da verba devida ao ex-cônjuge. São invisibilidades que devem ser trabalhadas de forma objetiva, nas áreas preventiva, inibitória e repressiva.

Agora, em São Paulo, a jornalista Nana Queiroz, autora do livro Presos que menstruam (Editora Record), desenvolve projeto abordando as mais diversas “invisibilidades femininas”, a partir de uma séria constatação: mulheres presas no tráfico de drogas não são criminosas. Na realidade, são elas vítimas de seus cônjuges e companheiros que as obrigam vender drogas para eles. Exsurge, portanto, a notável importância de um tratamento penal diferenciado, a elidir essa violência de mando, mediante estudos psicossociais acerca do ingresso da mulher no crime, por indução imperativa do parceiro e a necessidade de política criminal suficiente a distingui-la como vítima.

No contexto familiar, impõe-se refletir, ainda, determinadas invisibilidades. Uma delas é assim referida:

“Parece ser uma evidência: com o aumento do divórcio, há cada vez mais mulheres sós e pobres, há (não só por isso, mas também por isso) cada vez mais famílias monoparentais”, diz-nos o magistrado e jurista português Pedro Vaz Patto. E acrescenta: “O cônjuge mais fraco, normalmente a mulher, é também, com frequência, o cônjuge que é vítima da violação de deveres conjugais de que o outro cônjuge é responsável”.

Nessa latitude, há de se considerar, de logo, acerca dos chamados alimentos compensatórios. Anota-se, na hipótese, que os alimentos compensatórios buscam estabelecer um reequilibro patrimonial entre os cônjuges, após desfeita a união e dissolvida pelo divórcio. Têm eles natureza de prestação compensatória, com finalidade indenizatória em favor do cônjuge que, separado, coloca-se em desvantagem, sob uma abrupta redução dos padrões socioeconômicos. Os alimentos compensatórios prestam-se a corrigir o desequilíbrio patrimonial, em prol do cônjuge que, diante da partilha, fica privado de determinados bens, com desvantagem econômica em relação ao consorte, tudo a evitar enriquecimento sem causa (artigo 884, Código Civil).

A propósito, o Superior Tribunal de Justiça em lapidar julgamento da relatoria do ministro Antonio Carlos Ferreira admitiu a aplicação dos alimentos compensatórios, como mecanismo de correção do reportado desequilíbrio provocado pela separação. Acentuou, ademais, o relator que “na ação de alimentos a sentença não se subordina ao princípio da adstrição judicial à pretensão”. De fato. Alimentos significam segurança de vida, servidos em exatidão das necessidades indicadas à superação do que a ruptura conjugal venha, com gravames, provocar. No seu expressivo conteúdo, são alimentos resilientes. Ademais, na seara do direito alimentar, impõe-se discutir acerca de determinados impactos de ruptura conjugal, em densidade da clausula “alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social”, contida no artigo 1.694 do Código Civil. Desse modo, tem-se uma invisibilidade de vitimização feminina resulta destacada, quando não se aprontam, nesse contexto, soluções adequadas.

Mais ainda outra reflexão: a vulneração ao regular exercício de poder familiar, com a proibição de visitas aos filhos, imposta pelo marido separado, configura prática de violência contra a mulher mãe, para além de outras situações postas sob invisibilidades. Em ser assim, a vitimização da mulher a coloca em algemas invisíveis.

A servidão da mulher, por abuso emocional do parceiro, que a faz vitima sob o controle permanente a que se submete, introduz um dos capítulos mais graves na violência de gênero. São algemas invisíveis, que escravizam a mulher, esposa ou companheira, por liberdade limitada imposta a suas vidas, em privação de direitos ou de opções. Algemas que as tornam reféns absolutas, mesmo que, aparentemente, exibam em público a ideia de autonomia, autodeterminação pessoal, liberdades de agir, ir e vir.

São “grilhões psicológicos”, na expressão de Andrew Wallis (2013), quando se referiu ao “caso Lambeth”, no sul de Londres, onde três mulheres foram resgatadas de uma casa (25.10.2013); depois de trinta anos de dominação por um casal estrangeiro, “isoladas do mundo exterior”, nada obstante ali não estivessem em cárcere privado, dispondo de acesso por transitarem em público. Em bom rigor, escravas de controle emocional dominante, em situações análogas aos controles das dominações de gênero ou dos “casamentos forçados”, estes ainda praticados em alguns países.

Essa escravidão contemporânea é invisível, a despeito da própria origem da palavra “escravo”, quando tamanhas foram as visibilidades das condições manifestas de servidão que serviram aptas na etimologia. Explica-se, na lição de Kevin Bales (2000):

“Escravo” é palavra que deriva de “sklávos”, do grego bizantino, sendo certo que “eslavo”, também derivado de “sklavinós” (“esclavo”), tem fonte em “slovnin”, família de povos eslavos, “vítima do tráfico escravista no oriente medieval”. As guerras de Carlos Magno (sec. IX) capturaram tantos eslavos, postos, ao depois, como serviçais, que “eslavo” passou a significar “escravo”, denominando todos aqueles encontrados em visíveis e “mesmas condições de servidão”.

Há um interessante estudo (2011) sob o título O domínio da vítima como forma de violência, de Gustavo José Correia Vieira (Nuria Fabris Editora, Porto Alegre), que trata da escravidão contemporânea. Esta é assinalada, aliás, em três vertentes da relação de poder, como ele menciona, segundo análise de David Bell:

(i) a social, observada no uso da violência ou de ameaças, como forma de controle;

(ii) a psicológica, verificada na “capacidade de persuadir a outra pessoa para modificar a forma em que esta percebe seus interesses e suas circunstâncias”;

(iii) a cultural, precisamente o aspecto cultural da autoridade; “(…) ou seja, a maneira de transformar a violência em um direito e a obediência em um dever”.

Pois bem. No trato da violência de gênero, mais que a violência física, a violência psicológica revela-se, à evidência, como a mais ocorrente, vulnerando a mulher em sua dignidade, com sérios danos existenciais perpetrados, vida a fora, à medida de tratar-se de uma violência continuada e permanente.

A mulher obediente e submissa, como dever inerente, fica reservada, no tempo, a uma sociedade vetusta e patriarcal. No fomento de uma cultura igualitária de gênero, onde a mulher possa exercitar sua dignidade, em plenitude, com todas as suas potencialidades, Flávia Piovesan (2009), assinala, de passagem, que “uma ética transformadora dos direitos humanos demanda transformação social”.

Não há negar, portanto, que a dominação psicológica também se situa como um problema cultural, onde as políticas públicas não devam se exaurir, portanto, no ditado da lei. Antes, atuando como fatores inibidores de revitimização, políticas públicas deverão estar ancoradas em programas incentivadores de convivência de casal, no desiderato de maiores embasamentos de unidade dos parceiros; ou em gestões pré ou pós-conflituais, com assistência interdisciplinar à recomposição existencial da família.

O largo espectro da violência psicológica é narrado, precisamente, pelo inciso II do artigo 7º da Lei 11.340, de 7.8.2006 (Lei Maria da Penha), ao dispor a norma que essa espécie de violência deve ser “entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”.

De ver que a cláusula “qualquer outro meio”, contida no dispositivo, implica em referir situações não taxativamente previstas, uma delas podendo ser considerada a própria dependência econômica da mulher, que sirva de causa eficiente e deliberada para a dominação psicológica.

No viés, é também causa determinante de dominação a que se submete a mulher por insegurança quanto à manutenção de sua própria subsistência.

Nesse contexto, a violência aparece, “culturalmente”, como que “legitimada”, ou “causa de desculpação”, pelo feudo do “senhor chefe de família”. Vai daí que a ameaça do cônjuge pelo não provimento alimentar, em caso de separação, se reveste, por igual, de notável violência da espécie.

É interessante anotar que a tutela dos bens jurídicos e dos interesses da vítima de violência psicológica, exige e deve compreender uma moldura jurídica específica, para o seu exato alcance; pena de não dispor de capacidade dissuasória ao agressor ou de não prevenir ou efetivar os direitos da mulher vitimizada.

No ponto, ressalta-se que a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) não elenca tipos penais próprios, destinados à violência de gênero; apenas circunstâncias qualificadoras ou agravantes. Significa dizer que é remetida essa violência de gênero aos crimes comuns, contemplados na ordem jurídico-penal ordinária. Curioso que assim seja, porque, desse modo, a lei se tornou, em seus fins, hipossuficiente, tal a própria mulher vítima da violência doméstica. A jurisprudência, ao seu modo, tem procurado superar algumas limitações da lei, a exemplo de admitir as relações íntimas de afeto, sem coabitação, como base para a incidência legal; entre outras hipóteses.

A mulher aprisionada, em seu íntimo, por violações silenciosas na indústria do tratamento algoz, pelo parceiro que a considera inferior e a desumaniza por desconstruções verbais, é a escrava de hoje. Chega a ser vítima do “viejismo”, expressão cunhada por Robert Buther (1982) que significa, como bem caracterizou o psicanalista argentino Eduardo Aducci (2003), “uma série de atitudes e atribuições depreciativas, compartilhadas pelo próprio adulto sobre si mesmo no âmago da família e do social”. Ou seja, violência psicológica que tanto vitimiza a mulher, ao extremo de impor-lhe uma baixa autoestima.

A violência psicológica é a maior vitimização experienciada pela mulher, que com suas algemas invisíveis, reclama, afinal, uma nova e maior libertação.

É tempo de as invisibilidades serem desfeitas para o mais efetivo combate às violências contra a mulher.

 

 

Autor: Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), onde coordena a Comissão de Magistratura de Família.


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