Visão formalista sobre fato tributário não é razoável

Por Antonio Carlos de Moura Campos

Tem o presente trabalho o objetivo de abordar o crescente influxo da teoria da boa-fé subjetiva nos tribunais judiciais, aplicada ao contribuinte adquirente de mercadorias que se apropria de créditos do ICMS lastreados em documentos fiscais posteriormente declarados inidôneos pelo Fisco.

Para tanto, serão considerados, de forma crítica, os procedimentos de fiscalização historicamente praticados pelo Fisco de São Paulo, à luz da legislação de regência, inclusive das inovações trazidas pela Lei 13.918, de 22 de dezembro de 2009. No desenvolvimento do tema serão igualmente considerados precedentes firmados pelo Tribunal de Impostos e Taxas da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, assim como os principais lineamentos presentes na jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Visão reducionista
O pensamento dos meios fazendários a respeito do tema é dominado, há décadas, por uma visão reducionista do fato infracional tributário. Considera-se o creditamento indevido nas operações de aquisição de mercadorias como um ilícito isolado do contexto fático onde se plasmou a sua gênese; em outros termos, como um fato infracional autônomo a ser apenado independentemente da ocorrência, em seu entorno, de outros fatos infracionais de muito maior gravidade e relevância na perspectiva da lei tributária como um todo.

Com efeito, esta visão unifocal do fato infracional recusa-se a ampliar seus horizon-tes na direção do aspecto nuclear do Direito Tributário, representado pela obrigação tributária e pelo fato gerador que a ela deu origem. Como consequência, a atenção do agente aplicador do Di-reito se concentra não no sujeito vinculado a fato que gerou a obrigação tributária mas no efeito que lhe é próprio: a apropriação, pelo adquirente de mercadorias, do crédito relativo ao imposto destacado no documento que deu cobertura à transação comercial. Deste modo, se esta apropriação se fez com fulcro em documento emitido por contribuinte em situação irregular, importa, tão-só, impugnar o valor correspondente a tal crédito, como se nenhuma relevância houvesse na apuração e responsabilização do sujeito passivo que praticou o fato gerador que deu origem à obrigação principal.

O que o Fisco costuma fazer, em tal perspectiva de abordagem do fenômeno infra-cional, é uma espécie de recorte epistemológico da realidade, firme no intento de pinçar, do todo, apenas a parte que lhe interessa a fim de aplicar as sanções de caráter penal-tributário previstas na legislação. Bem de ver que, no limitado contexto em que inserida, esta aplicação não se entremostra eivada de qualquer ilegalidade. Afinal, se comprovado pelo Fisco que o emitente do documento questionado se encontrava em situação irregular, segue-se, por decorrência lógica, que o crédito emergente da operação também não poderia ser tido por regular.

Mas a aplicação do direito ao fato não é apenas uma questão de lógica. Se é “lógico” inquinar o crédito de indevido, não menos lógico é reconhecer que este representa decorrência ou efeito de um fato “ontológico”, isto é, de um evento real, ocorrido no mundo fenomênico, do qual irrompeu a obrigação de pagar tributo devido em face da materialização da hipótese de incidência do tributo; e, ainda, que esta obrigação, por expressa determinação de lei complementar e ordinária, deve ser imputada àquele que mantém relação pessoal e direta com esse evento.
Nos julgamentos ocorridos no âmbito do Tribunal de Impostos e Taxas foram já re-gistradas decisões memoráveis, onde realmente os julgadores conseguiram romper com as amarras do formalismo jurídico, sempre tão estreito e enviesado no tratamento das infrações tributárias.

Foram momentos de elevada inspiração jurídica, em que se passou ao largo do rigor literal que apenas disfarça a insegurança de quem aplica a sanção legal, a fim de compor a solução da lide sob horizontes mais amplos e na plena compreensão do fato jurídico tributário.

Um desses momentos ocorreu no contexto da chamada Operação Soja-Papel, de-sencadeada ao final de 2004, em que apreciava a procedência de penalidades regulamentares, im-postas por descumprimento de obrigações acessórias. Em auto de infração lavrado em apartado, haviam já sido reclamados imposto e multa por creditamento indevido do imposto, em face do caráter fictício das operações. As multas regulamentares, nos lançamentos sob exame, foram impostas em razão da prática de infrações instrumentais, como emissão de documentos fiscais não correspondentes a efetivas saídas de mercadorias. Na ocasião, as acusações foram repelidas sob o argumento de que o imposto sonegado e a respectiva penalidade tinham sido objeto de outra autuação fiscal, aplicando-se, na seara tributária, a figura da absorção da conduta-meio pela conduta-fim, típica do Direito Penal.

Um dos processos nesse sentido foi o DRT-14-666.969/2005, no qual o contribuinte foi acusado de emitir nota fiscal com destino à exportação, a qual não teria correspondido a uma efetiva saída. Por entender que a infração em questão havia representado “apenas um dos elementos do esquema ou ‘produto’ adquirido pela autuada”, José Roberto Rosa, o relator, concluiu que o fato não poderia ser analisado de forma isolada, mas no contexto de um esquema de evasão fiscal “cujo objetivo era o crédito e não uma simulação de exportação”, como se vê de sua conclusão decisória:

“5.16 – Pelo exposto, entendo que a emissão da nota fiscal com destino a exporta-ção é apenas um dos elementos do ‘pacote’ adquirido pela empresa autuada, com o objetivo de lucrar com o crédito do ICMS. A escrituração das notas da suposta a-quisição, a emissão das notas fiscais de remessa para industrialização e a emissão das notas fiscais para exportação foram partes do mesmo todo, que foi o crédito in-devido. A se manter o segundo auto de infração (emissão das notas para exporta-ção), haveria que se perguntar por que não autuar também a emissão das notas para remessa para industrialização, visto que as notas foram emitidas, mas as operações, segundo o fisco, também não ocorreram.

5.17 – Assim, sou pelo cancelamento do Auto de Infração, conexo ao presente, com penalidade regulamentar por emissão de nota fiscal com destino a exportação e que não correspondeu a saída de mercadoria do estabelecimento.”
Do mesmo modo, em decisões das décadas de 80 e 90, o Tribunal de Impostos e Taxas igualmente havia afastado postura de viés fiscalista análoga ao caso comentado. Cuidava-se de autos de infração originários da região de Campinas, em que a fiscalização fora orientada a a-crescentar, à acusação de crédito indevido decorrente de imposto destacado em documento fiscal inidôneo, uma segunda acusação: a de escrituração de documento inidôneo. Em todos os feitos fiscais da espécie esta segunda acusação acabou sendo declarada improcedente.
Sujeito passivo no creditamento indevido .

Dir-se-á que a impugnação pura e simples do crédito tido por irregular, independentemente de qualquer outra cogitação, encontra seu fundamento de validade no princípio constitucional da não-cumulatividade do ICMS, na medida em que a validade do crédito fica condicionada à possibilida-de de cobrança do imposto na etapa anterior do processo de circulação de mercadorias. É de ver, todavia, que os próprios termos em que formulado o referido princípio no inciso I do parágrafo 2º do artigo 155 da Carta Magna, remetem justamente “ao montante cobrado nas (operações) anterio-res do processo de circulação de mercadorias” .
Claro está, portanto, que o dever do Fisco deve consistir, por primeiro, em buscar assegurar a cobrança do imposto nas operações que antecedem e fundamentam a apropriação do crédito pelo adquirente. Sua missão maior, nos contornos do artigo 142 do Código Tributário Na-cional, é constituir o crédito pelo lançamento, por meio de procedimento administrativo “tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, (…)”

Este o primordial dever de ofício da autoridade fiscal, repita-se: verificar a ocorrên-cia do fato gerador da obrigação tributária, até porque não há fato gerador do crédito imposto, apenas da obrigação tributária.

Este último argumento tem sido amiúde invocado pelos representantes da Fazenda do Estado no Tribunal de Impostos e Taxas a fim de justificar a não aplicação, para o cálculo do prazo decadencial nas hipóteses das infrações relativas ao crédito do imposto, do parágrafo 4° do artigo 150 de CTN, que prevê a contagem desse prazo a partir da data da ocorrência do fato gera-dor do tributo. Ante a inexistência de fato gerador do crédito, não haveria como situar o marco inicial da decadência a partir da data em que o adquirente teria feito a apropriação, em seu livro Registro de Entradas, do valor do imposto incidente na operação.

Se este raciocínio é de ser tido por perfeitamente aceitável, lícito seria esperar que a fiscalização tributária, coerente com este pressuposto doutrinário, também não deixasse de apro-fundar sua atividade tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária, com a finalidade de promover a cobrança do imposto de quem realmente praticou esse fato. Afinal, nos termos do inciso I do artigo 121 do Código Tributário Nacional, o sujeito passivo da obrigação principal diz-se “contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador”.

Não se compreende como, em se tratando de crédito indevido, ainda insista a fisca-lização, como regra, em cortar o cordão umbilical que vincula o fato gerador da obrigação tributária à pessoa física ou jurídica que a este deu causa, preferindo a via cômoda de reclamar o tributo do destinatário – justamente daquele que não praticou fato gerador nenhum!

Com efeito, nenhum nexo causal há que vincule a ação do destinatário, limitada ao puro e simples recebimento da mercadoria, ao fato praticado pelo remetente, que fez surgir aquela “situação definida em lei como necessária e suficiente à ocorrência do respectivo fato gerador”, nos termos da definição levada ao artigo 114 do Código Tributário Nacional. Por isso, não pode ele, a não ser por exceção fundada em inequívoco conjunto probatório, ser responsabilizado por um imposto ao qual não está legalmente obrigado.

Obrigações do adquirente de mercadorias
A legislação do ICMS não é, em realidade, muito específica ao firmar as obrigações do contribu-inte adquirente de mercadorias no momento em que ajustada a realização de operação ou presta-ção com outro contribuinte. Confira-se, a propósito, a dicção do artigo 31 do RICMS/00, que ter por fundamento legal o artigo 22 da Lei 6374/89:

“Artigo 31 – O contribuinte, por si ou seus prepostos, sempre que ajustar a reali-zação de operação ou prestação com outro contribuinte, fica obrigado a comprovar a sua regularidade perante o Fisco, de acordo com o item 4 do parágrafo 1º do artigo 59, e, também, a exigir o mesmo procedimento da outra parte, quer esta fi-gure como remetente da mercadoria ou prestador do serviço, quer como destinatá-rio ou tomador.”
Por seu turno, o parágrafo 1º do artigo 59 assim estabelece:
“parágrafo 1º – Para efeito deste artigo, considera-se:
1 – imposto devido, o resultante da aplicação da alíquota sobre a base de cálculo de cada operação ou prestação sujeita à cobrança do tributo;
2 – imposto anteriormente cobrado, a importância calculada nos termos do item pre-cedente e destacada em documento fiscal hábil;
3 – documento fiscal hábil, o que atenda a todas as exigências da legislação perti-nente, seja emitido por contribuinte em situação regular perante o fisco e esteja a-companhado, quando exigido, de comprovante do recolhimento do imposto;
4 – situação regular perante o fisco, a do contribuinte que, à data da operação ou prestação, esteja inscrito na repartição fiscal competente, se encontre em atividade no local indicado e possibilite a comprovação da autenticidade dos demais dados cadastrais apontados ao fisco.”

Embora o artigo 59 defina com precisão o que se deve entender por contribuinte “em situação regular perante o fisco”, o artigo 31 não especifica quais os procedimentos a serem adotados pelo adquirente com vistas a comprovar, em relação ao remetente, sua “situação regular perante o fisco”. Esta omissão autoriza a conclusão de que o adquirente não teria como ir além da ação de exigir os documentos comprobatórios da regularidade cadastral da empresa remetente da mercadoria ou prestadora de serviços, até porque, como reiteradamente argumentado nas peças recursais da espécie, não dispõe ele de meios a que têm alcance apenas os agentes públicos dotados de poder de polícia.

Assim, se a legislação é genérica e parcimoniosa em relação aos deveres do adquirente, não se haverá de inculpá-lo por não ter ido além do que a lei define como sendo sua obrigação, mesmo porque ninguém está obrigado a fazer aquilo que a lei não determina.

Ao invés de ter deixado a questão em aberto, limitando-se a prescrever, genericamente, a obrigação do adquirente no sentido de comprovar a regularidade do remetente perante o Fisco, o legislador poderia ter estabelecido alguns requisitos mais específicos, como a qualificação da pessoa ou pessoas que representaram a empresa vendedora nos contatos comerciais preliminares, bem como do transportador da mercadoria na hipótese de entrega a cargo do remetente. E isso sem prejuízo de instar o remetente a apresentar ao adquirente – ou simplesmente manter à disposição do Fisco ao qual se vincula o adquirente -, elementos comprobatórios da regularida-de do cumprimento da obrigação principal e de obrigações acessórias.

Isto feito, ter-se-ia um contexto propício a que se possa presumir legalmente, salvo prova em contrário, a boa-fé do adquirente. Nessa hipótese, longe de constituir-se em mera alegação postada no vazio, a boa-fé estará suportada em ações concretas e bem definidas pela norma legal, as quais permitirão ao Fisco identificar e autuar, sendo o caso, o contribuinte do imposto, enquanto titular da obrigação nascida da prática do respectivo do fato gerador.
Jurisprudência do STJ sobre boa-fé.

Em 14 de abril de 2010, o Superior Tribunal de Justiça avaliou a questão da boa-fé do adquirente à luz da legislação processual referente aos recursos repetitivos, tendo produzido decisão que repercutiu e vem ainda repercutindo fortemente em todos os tribunais do país, até porque dotada da força típica dos recursos da espécie, conforme o artigo 345-C do Código de Processo Civil, introduzido pela Lei 11.672, de 8 de maio de 2008.

Cuidava-se do Recurso Especial Repetitivo 1.148.444-MG, relatado pelo ministro Luiz Fux e assim ementado:

PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO 543-C, DO CPC. TRIBUTÁRIO. CRÉDITOS DE ICMS. APROVEITAMENTO (PRINCÍPIO DA NÃO-CUMULATIVI-DADE). NOTAS FISCAIS POSTERIORMENTE DECLARADAS INIDÔNEAS. ADQUIRENTE DE BOA-FÉ.
1. O comerciante de boa-fé que adquire mercadoria, cuja nota fiscal (emitida pela empresa vendedora) posteriormente seja declarada inidônea, pode engendrar o a-proveitamento do crédito do ICMS pelo princípio da não-cumulatividade, uma vez demonstrada a veracidade da compra e venda efetuada, porquanto o ato de-claratório da inidoneidade somente produz efeitos a partir de sua publicação (…).
2. A responsabilidade do adquirente de boa-fé reside na exigência, no momento da celebração do negócio jurídico, da documentação pertinente à assunção da regulari-dade do alienante, cuja verificação de idoneidade incumbe ao Fisco, razão pela qual não incide, à espécie, o artigo 136, do CTN, segundo o qual “salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato” (norma aplicável, in casu, ao alienante).
3. In casu, o Tribunal de origem consignou que:
“(…) os demais atos de declaração de inidoneidade foram publicados após a realiza-ção das operações (f. 272/282), sendo que as notas fiscais declaradas inidôneas têm aparência de regularidade, havendo o destaque do ICMS devido, tendo sido escrituradas no livro de registro de entradas (f. 35/162). No que toca à prova do pagamento, há, nos autos, comprovantes de pagamento às empresas cujas notas fiscais foram declaradas inidôneas (f. 163, 182, 183, 191, 204), sendo a matéria incontroversa, como admite o fisco e entende o Conselho de Contribuintes.”
4. A boa-fé do adquirente em relação às notas fiscais declaradas inidôneas após a celebração do negócio jurídico (o qual fora efetivamente realizado), uma vez carac-terizada, legitima o aproveitamento dos créditos de ICMS.
5. O óbice da Súmula 7/STJ não incide à espécie, uma vez que a insurgência especial fazendária reside na tese de que o reconhecimento, na seara administrativa, da inidoneidade das notas fiscais opera efeitos ex tunc, o que afastaria a boa-fé do ter-ceiro adquirente, máxime tendo em vista o teor do artigo 136, do CTN.
6. Recurso especial desprovido. Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008.

Nos termos em que formulada, a decisão do STJ compõe-se dos seguintes elementos dispositivos:

• O adquirente de boa-fé faz jus ao crédito do ICMS em face do princípio da não-cumulatividade, mesmo que posteriormente a nota fiscal de aquisição venha a ser declarada inidônea pelo Fisco;

• É imprescindível que tenha sido demonstrada pelo contribuinte adquirente a veraci-dade e a efetiva realização da compra e venda;

• No momento da celebração do negócio, a única responsabilidade do adquirente de boa-fé consiste na exigência de documentação comprobatória da regularidade fiscal da empresa vendedora;

• A boa-fé do adquirente deve estar caracterizada nos autos do procedimento fiscal para que se legitime o aproveitamento dos créditos do imposto;
• Cabe ao Fisco (e não ao contribuinte adquirente) a verificação da inidoneidade dos documentos.

Analisando tais elementos à luz do inteiro teor do voto do ministro Luiz Fux, no qual se fazem referências a decisões anteriores do STJ a respeito, tem-se que, para a caracterização de sua boa-fé, incumbe ao adquirente implementar dois requisitos essenciais:

(i) a exigir a documentação comprobatória da regularidade fiscal da empresa vendedora; e
(ii) comprovar, por meio de registros contábeis, que a operação comercial efetiva-mente se realizou, “incumbindo-lhe, pois, o ônus da prova, não se podendo transferir ao Fisco tal encargo.”

Exatamente estas as duas exigências a serem observadas pelo contribuinte adquiren-te, nos termos do voto e acórdão subscritos pelo ministro Ari Pargendler, do STJ, referentes ao Agravo Regimental 173.817/RJ, em julgamento realizado em 19 de março de 1998:

TRIBUTÁRIO. ICMS. CRÉDITO DECORRENTE DE NOTA FISCAL EMI-TIDA POR EMPRESA CUJA INSCRIÇÃO FOI DECLARADA INIDÔNEA. Para aproveitar os créditos de ICMS embutidos no valor das mercadorias que entram no seu estabelecimento, o comprador não depende da prova de que o vendedor pagou o tributo; só se exige do comprador a comprovação de que a nota fiscal corresponde a um negócio efetivamente realizado e de que o vendedor estava regularmente inscrito na repartição fazendária como contribuinte do tributo.

Note-se que este último requisito consta já da legislação tributária, enquanto o primeiro representa construção jurisprudencial do STJ, inclusive ao atribuir ao contribuinte adquirente o ônus de provar a efetividade da operação, mediante exibição dos registros contábeis.

Ao Fisco incumbe, como não poderia deixar de ser – e ainda nos termos da decisão do STJ -, a produção da prova da inidoneidade dos documentos que acobertaram a operação e, sendo o caso – seja acrescentado por relevante -, desconstituir a alegação de boa-fé subjetiva do adquirente mediante prova em sentido contrário.
Nem teria sido necessário que o julgado sob exame mencionasse expressamente esta última possibilidade. Pois não se haverá de admitir a boa-fé do adquirente se o Fisco viesse a comprovar, por exemplo, que este teria participado como autor, co-autor ou beneficiário de esquema de evasão fiscal, tendo por núcleo empresa-ponte constituída com a finalidade de possibilitar a transmissão de créditos espúrios e ou o desvio de recursos financeiros em favor de fraudadores do erário. Assim, se o contribuinte tinha ciência inequívoca da fraude ou dela participou não se dirá, por evidente, que teria se portado com boa-fé nas operações.

Por aí se vê que, além dos requisitos fixados pela legislação e pela jurisprudência, é imprescindível que a conduta do contribuinte frente às operações de que participou tenha sido absolutamente escorreita, no sentido de excluir até mesmo o agir culposo. Eis por que não se terá por escorreita a conduta de contribuinte que tenha se portado com inequívoca negligência por ocasião da celebração do negócio de compra e venda, ou que, uma vez apurada a irregularidade da situação fiscal do estabelecimento emitente dos documentos dados por inidôneos, tenha se recusado a colaborar com Fisco com vistas à elucidação dos fatos comerciais ocorridos.

Em suma, comprovado o cumprimento dos dois citados requisitos estabelecidos como deveres do contribuinte, e não demonstrado pelo Fisco seu agir doloso ou culposo, é de se presumir a boa-fé subjetiva do adquirente e a legitimidade dos créditos por ele apropriados. Vale dizer, então, que, não demonstrada a má-fé do adquirente, impõe-se a presunção de sua boa-fé.

Como regra, as decisões do Superior Tribunal de Justiça têm prestigiado a perspectiva acima descrita e a tendência é que venham a ser declaradas improcedentes todas as autuações motivadas por creditamento indevido do imposto suportado em documentos fiscais dados por inidôneos sempre que, verificada a efetiva ocorrência das operações questionadas e a regularidade da situação fiscal do emitente, não tiverem sido levantados pelo Fisco elementos comprobatórios do agir doloso ou culposo do adquirente.

Mas se, ao revés, o STJ entender não caracterizada a boa-fé subjetiva do contribuin-te adquirente – logicamente com base nos elementos constantes da instrução procedimental, a decisão será pela manutenção do lançamento que lhe impugnou os créditos apropriados. Recente deci-são, exarada pelo Ministro Arnaldo Esteves Lima em 1º de setembro de 2011, no Agravo Regi-mental no Agravo de Instrumento 1.239.942/SP, ilustra bem esta outra face da questão discutida. Após reproduzir o voto de lavra do ministro Luiz Fux, o magistrado houve por bem negar provimento ao recurso do contribuinte por julgar não caracterizada sua boa-fé, nos termos da decisão recorrida:

Da leitura do julgado, depreende-se que deve estar caracterizada a boa-fé do adqui-rente das mercadorias em relação às notas fiscais declaradas inidôneas após a cele-bração do negócio jurídico, para fins de legitimar o aproveitamento dos créditos de ICMS. No caso, todavia, a boa-fé não remanesceu caracterizada, consoante se de-preende do seguinte excerto do acórdão recorrido (…)
(…)
Assim, como bem salientei na decisão agravada, não caracterizada a boa-fé da agra-vante, conforme o acórdão recorrido, para decisão em sentido contrário seria neces-sário o reexame do contexto fático-probatório, o que é inviável em sede de recurso especial, a teor da Súmula 7/STJ: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”. Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental.

Jurisprudência do TJ-SP
As decisões do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo vêm guardando estreita pertinência com as do Superior Tribunal de Justiça. Todavia, nas situações em que configurada a boa-fé do adquirente, ainda que em função da mera ausência de prova em sentido contrário, as decisões sempre pendem em favor do contribuinte adquirente, como na Apelação Cível 0030966-80.2009.8.26.0405, julgada em 29 de agosto de 2011 pela 6ª Câmara de Direito Público. Tomem-se alguns excertos do voto do relator, desembargador Sidney Romano dos Reis:

No mais, a efetividade das operações mercantis restou suficientemente demonstrada pela autora através dos documentos acostados com a inicial. Restou incontroverso, ainda, que a referida sociedade empresária tinha sua situação perante o Fisco cons-tando como regular à época. Inequívoca a orientação do Colendo Superior Tribunal de Justiça no sentido de que “… as operações realizadas com empresa posteriormente declarada inidônea pelo Fisco devem ser consideradas válidas, não se podendo penalizar a empresa adquirente que agiu de boa-fé”.
(…)
No caso em tela, a autora juntou aos autos os comprovantes dos pagamentos efetua-dos à empresa vendedora, referentes às notas fiscais emitidas por esta. Tais compras foram efetuadas mais de um ano antes da declaração de inidoneidade da documen-tação fiscal. Diante desse quadro, presente a boa-fé da devedora (presumida e sem prova em contrário), não há como refutar os questionados créditos. Considerados legítimos esses, caem por terra todas as demais exigências, multas e encargos. De rigor, portanto, o provimento do apelo para julgar procedente a ação anulatória para desconstituir o lançamento tributário e a imposição de multa.

No mesmo sentido é o voto do Desembargador Osni de Souza, da 8ª Câmara de Direito Público, na Apelação Cível 0091966-69.2008.8.26.0000, de 29 de junho de 2011, assim ementado:

Apelação Cível. Ação anulatória de débito fiscal. Auto de Infração e Imposição de Multa. Creditamento de ICMS relativo à entrada de mercadorias no estabelecimen-to, reputado indevido, porque baseado em documentação inidônea. Autuação fiscal, todavia, fundada em declaração de inidoneidade posterior aos fatos. Efeitos que não podem retroagir, notadamente com relação aos terceiros de boa-fé. Fraude que não se presume. Precedentes. Direito de aproveitamento dos créditos tributários quando revestida de veracidade as operações mercantis realizadas. Ônus probatório do qual não se desincumbiu o Fisco. Sentença de procedência mantida. Recurso improvido.

Note-se, a propósito, que neste último caso o recurso foi decidido favoravelmente ao contribuinte ante a expressa consideração de que o Fisco não se desincumbira do ônus probató-rio que lhe era de mister exercitar. Afinal, sendo o fisco quem aparelha a acusação e exige prestações pecuniárias do contribuinte, é seu dever inafastável produzir a prova que lhe fundamenta a pretensão impositiva.

Esta mesma perspectiva aparece em outras recentes decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo, como estas:

8ª CÂMARA DE DIREITO PÚBLICO – 27/07/2011
APELAÇÃO nº 994.06.091413-0 – 27/07/2011
ICMS. Ação anulatória de débito fiscal. Aproveitamento de créditos decorrentes de operações de compra realizadas com empresa que, posteriormente, foi declarada i-nidônea. Operações de creditamento que foram realizadas anteriormente à divulga-ção da inidoneidade das notas fiscais emitidas pela empresa cedente. Ausência de demonstração, pelo Fisco, de que a apelada não procedeu com a diligência necessá-ria. Sentença de procedência mantida. Recurso desprovido. (grifos acrescentados)
1ª CÂMERA DE DIREITO PÚBLICO – 10/05/2011
APELAÇÃO COM REVISÃO nº 0112214-62.2006.8.26.053
DIREITO TRIBUTÁRIO – CRÉDITO TRIBUTÁRIO – ICMS.
O terceiro de boa-fé não pode ser atingido, em seus direitos garantidos por legisla-ção em vigor, por atos fraudulentos cometidos por empresas outras com as quais te-nha mantido relações comerciais em momento anterior à declaração de inidoneida-de, se não provada sua ciência inequívoca ou participação na infração. A eficácia da declaração de inidoneidade gera efeitos “ex nunc” e a partir de sua publicação. Re-curso ao qual se nega provimento. Decisão mantida.

Por outro lado, os julgamentos do TJ-SP que prestigiaram as autuações fiscais por crédito indevido e repeliram a alegação de boa-fé por parte dos adquirentes, fizeram-no com fundamento em evidências de desídia ou culpa destes últimos.

Tome-se, por exemplo, a Apelação 9000098-24.1999.8.26.0014, julgada em 29 de agosto de 2011 pela 7ª Câmara de Direito Público. Citando a preocupação do magistrado a quo no sentido de apurar se teria sido realmente proceden-te a alegação de boa-fé manifestada pelo adquirente, a ponto de determinar perícias adicionais, o desembargador Luiz Sérgio Fernandes de Souza assim se expressa na parte final de seu voto:

(…) a embargante insiste no argumento de que a maior prova da existência da em-presa fornecedora seria o fato de contar com inscrição estadual. Ocorre que, feita a inscrição, em 07/06/90 (fls. 524), constatou-se, de imediato, que a empresa não e-xistia (fls. 103). Vale dizer, os dados apresentados para a abertura da Vegetable Oil Comércio de Óleos Vegetais Ltda. eram fraudulentos (idem). Como a empresa in-sistisse na sua boa fé, o magistrado, de maneira percuciente, determinou que o peri-to, complementando o laudo, respondesse a alguns quesitos específicos, um deles relativo à existência de eventuais antecedentes da executada (fls. 550). E, de fato, consta que, em outras ocasiões, creditara-se de ICMS destacado em outras notas fis-cais inidôneas (fls. 564 e 566), tudo a confirmar que o descaso com que se conduzia era indicativo de culpa grave, vizinha do dolo. E nem se venha dizer que teria havi-do cerceamento de defesa, pois a instrução foi até longe demais. O laudo pericial já dera por certa a existência de prejuízo à Fazenda do Estado, insistindo o magistrado, para bem firmar o seu convencimento, na complementação da perícia em busca da prova indiciária de má fé. E não consta que o embargante tivesse manifestado interesse em ouvir o perito diante do juízo, razão por que desnecessária mesmo a realização de audiência.

Oportuno repisar as duas razões pelas quais a sentença da 7ª Câmara de Direito Pú-blico houve por bem não acolher a alegação de boa-fé:
(i) verificação do comportamento fiscal pregresso do contribuinte adquirente, ponti-lhado de autuações decorrentes da mesma prática infracional;
(ii) negligência reveladora de culpa grave, “vizinha do dolo”.

Assim, para que ao contribuinte se possa atribuir o status de “adquirente de boa-fé”, nenhuma nódoa lhe deve arranhar a conduta, valendo acrescentar, por outro lado, que, em face da ausência de elementos comprobatórios de comportamento negligente ou doloso, sua boa-fé é de ser necessariamente presumida.

Precedente do Tribunal de Impostos e Taxas
Também no Tribunal de Impostos e Taxas diversas decisões perfilham o mesmo en-tendimento. Dentre estas, merecem particular destaque os julgados decorrentes de uma ação fiscal levada a efeito ao final da década de 1980, quando foram autuados diversos estabelecimentos de uma rede de supermercados, a maior parte dos quais localizados na Baixada Santista.

Por anos a rede havia adquirido roupas esportivas para revenda fabricadas por firma intitulada “Fred’s Sports Indústria e Comércio Ltda.”. Num dado momento, a empresa vendedora compareceu ao Posto Fiscal de Santos em junho de 1983 e efetuou o cancelamento da inscrição estadual. No entanto, transferiu-se fisicamente para outro local não inscrito, onde continuou a de-dicar-se à mesma atividade. Para acobertar suas operações de venda à referida rede, valeu-se da emissão de documentos fiscais inidôneos. O Fisco efetuou diligências no local, tendo constatado que o contribuinte continuava operando, ainda que irregularmente. Considerando que os lançamen-tos a crédito efetuados pelo adquirente tinham sido “despidos de má-fé” , a maior parte das câma-ras julgadores decidiu pelo cancelamento das exigências fiscais.

Em 6 de novembro de 1991 teve lugar o primeiro julgamento do caso pelas Câmaras Reunidas do TIT, em sede pedido de revisão aparelhado pela Fazenda do Estado nos autos do Processo DRT-2-0632/86. A juíza relatora conheceu do recurso – àquela altura era já patente o dissídio entre as câmaras julgadoras – mas no mérito deu integral provimento ao apelo fazendário, sob o singelo entendimento de que, “se o débito não foi cobrado na operação anterior não pode gerar créditos para o adquirente”.

Proferido o voto da relatora, seguiu-se a votação pelos demais integrantes do cole-giado presentes à sessão, num total de 36 julgadores. Os primeiros votos subscreveram a conclusão da relatora, à exceção de Walter Gasch, que não conheceu o recurso sob o argumento de que não teria ocorrido discrepância no critério de julgar, mas adiantando que, na hipótese de ser vencido nesta preliminar, negaria provimento ao recurso da Fazenda.

Até que o processo chegasse às mãos do consultor que subscreve o presente traba-lho, que participava da sessão na qualidade de integrante da 5ª Câmara Efetiva, haviam votado 11 juízes, sendo dez votos a favor da manutenção do Auto de Infração e Imposição de Multa e um voto pelo não conhecimento do recurso, já referido. Ante a constatação de que o Fisco havia identificado, mas não autuado a empresa vendedora das mercadorias, este consultor votou com esclare-cimentos, no seguinte sentido:

“É de ser conhecido o recurso, eis que as situações fáticas em todos os processos são idênticas. Quanto ao mérito, permito-me observar que o emitente dos documentos fiscais, conforme se verifica, era tradicional fornecedor do contribuinte autuado. Num dado momento, providenciou o cancelamento de sua inscrição junto à reparti-ção fiscal, mas continuou em plena atividade, razão pela qual deveria a reclamação do fisco ser promovida contra ele – contribuinte irregular – e não contra o adquirente. Isto posto, NEGO PROVIMENTO ao apelo da TIT-13.”

A partir daí operou-se a reversão da votação nas Câmaras Reunidas. Dos demais 25 julgadores, 18 acompanharam este consultor, seis votaram com a relatora, a favor da Fazenda, e um acompanhou Walter Gasch, pelo não conhecimento. Eis o resultado final:

• Negado provimento ao pedido de revisão da Fazenda: 19 votos
• Provido o pedido de revisão da Fazenda: 16 votos
• Não conhecido o pedido de revisão da Fazenda: dois votos

Em razão da pequena maioria obtida – 56,7% dos votos – a decisão teve de ser leva-da à homologação do Coordenador da Administração Tributária, nos termos do parágrafo 1º do artigo 622 do RICMS/91, vigente à época, tendo sido reconhecida sua eficácia em relação ao caso julgado.

Mas o melhor ainda estava por vir. Cerca de oito meses depois, aportou nas Câmaras Reunidas outro feito fiscal originado da mesma situação fática: o Processo DRT-1-7389/86. Neste, o pedido de revisão havia sido interposto pelo próprio contribuinte autuado. Realizada a votação, 100% dos juízes presentes à sessão deram provimento ao recurso, declarando cancelada a autuação fiscal. Dentre estes, contavam-se diversos julgadores que, na primeira votação, haviam votado a favor da Fazenda. Como se vê, a tese parcialmente vencedora na primeira votação tornou-se unânime na segunda.

À vista de todo o exposto, não parece razoável que o operador do Direito possa se furtar a uma visão compreensiva do fato jurídico tributário, preferindo adotar a visão formalista que privilegia a parte em detrimento do todo, agindo como o médico que cuida apenas da febre sem perscrutar as causas da enfermidade.

Oxalá as recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo concernentes à questão da boa-fé do adquirente levem o Fisco à compre-ensão de que os procedimentos previstos na sistemática instituída pela Administração Tributária, como no Ofício Circular DEAT.G série “O&M” 6, de 1994, partem, invariavelmente, de um pressuposto fundamental: o de que não teria sido possível, por razões diversas – devidamente deduzi-das em processo investigativo regular – identificar a pessoa física ou jurídica que deu causa ao fato gerador do tributo. Nessa hipótese – e apenas nessa hipótese – caberá a autuação fiscal do destinatário, à guisa de aplicação de pressuposto de sanção.

Seria este o caso, por exemplo, de documento viciado de inequívoca falsidade, por não ter existido o emitente nem autorizada sua confecção. Ou, de igual modo, quando o destinatário refoge ao dever de colaborar com o Fisco, sonegando informações sobre as circunstâncias em que ocorridas as operações questionadas.
No entanto, se o Fisco tiver conhecimento, ainda que de modo indiciário, de fatos e circunstâncias concernentes à autoria do ilícito fiscal, como resultado de investigações próprias ou de informações trazidas pelo adquirente ou por terceiros, não lhe assiste o direito de promover a cobrança do tributo daquele que figura, tão somente, como recebedor de boa-fé.
Antonio Carlos de Moura Campos é diretor adjunto da Administração Tributária da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo

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