Visão limitada impede fortalecimento de Justiça do Timor Leste

por Priscila Akemi Beltrame

Escrevo este artigo para dividir com os colegas uma experiência extremamente rica dentro do mundo jurídico e que tem tido por cenário um lugar que não está mais conhecido das rotas daquilo que temos por nosso mundo e tem como beneficiárias pessoas quase esquecidas pelo mundo, não houvesse sido o sofrimento que se perpetrou por aqui.

Já acompanhava a situação de Timor Leste quando eclodiu a guerra em 1999 e seu povo pedia a separação da Indonésia, massacrados por um regime autoritário cuja mão pesava ainda mais sobre a cabeça das etnias, mais propensas a se revoltar.

Isso eu fazia indo para a faculdade, naqueles anos corridos em que temos que estar às aulas, estagiar ou, no meu caso, bater o cartão de ponto no João Mendes, e encerrar a jornada atravessando de volta a cidade.

Formei-me na turma de 1997 na Faculdade de Direito da USP e exerci a advocacia nos anos seguintes, experiência que é a base de tudo que faço deste outro lado do mundo. Não fossem as fichas dos casos, os andamentos, o atendimento de clientes, o afinco dos advogados às suas causas, o contínuo aperfeiçoamento que se busca, poderia achar que o que se vive na Justiça aqui em Timor Leste é algo quase normal.

O que vi, no entanto, é mais grave. E aprendi que temos de nos despojar da obviedade, que é para nós que viemos de um sistema plenamente em funcionamento uma amarra, para entender o que se passa num canto do mundo tão longe e primário, quando a prática prescinde de rotinas tão arraigadas à nossa atuação, a publicação de decisão, protocolo, intimação, julgamento antecipado (aqui tudo se decide ao final), procuração.

Tudo virou formal para se dar valor ao que é substancial, chegar a uma decisão justa. Mas as exigências dos processos que conhecemos não tendem a ser as garantias para levar a uma decisão justa? Outro dia vi num inquérito policial as fotos circunstanciadas do local do acidente, folheando, folheando, moto, automóvel, local, croqui e depois fotos do velório, do corpo no caixão, da mãe da vítima. Disse que não podia ser!

Voltando ao relato. A missão das Nações Unidas começou aqui em 1999 buscando organizar de início a consulta popular em relação à independência. Tendo-se vencido a opção pela independência, as Nações Unidas passaram a administrar o país.

Foi, junto com a missão no Kosovo, a única em que a gestão integral do país passou às suas mãos e ainda temos diplomas em vigor assinados pelo saudoso Sérgio Vieira de Melo. Falo isso para dizer-lhes da primeira curiosidade que me apanhou: qual a lei subsidiária em vigor em Timor, uma vez que são poucos os diplomas legais publicados até então?

A Corte Superior vinha decidindo reiteradamente, com base num regulamento assinado por Vieira de Melo, que dizia que aplicava-se a lei que vinha sendo aplicada em Timor Leste até sua independência, que esta lei subsidiária seria a portuguesa, uma vez que a invasão da Indonésia em Timor Leste, logo após a independência, em 1975, não havia sido reconhecida pela comunidade internacional, nomeadamente pelas Nações Unidas.

Isso provocou muita revolta na comunidade jurídica, que foi toda formada na língua e sistema indonésio, até que, para arrepio do meu entendimento, o Parlamento Nacional votou na sua última sessão do ano passado a lei sobre a interpretação de leis estabelecendo que a lei subsidiária aplicável, desde que não contrarie a Constituição e leis vigentes, é a indonésia.

Em função da divisão de poderes que vigora nos Estados modernos, cabe ao Poder Judiciário, no exercício de sua soberania, interpretar e aplicar as leis. Armou-se e desarmou-se a confusão. Independentemente da opção pela lei indonésia, o governo continua não aceitando juristas indonésios aqui, haja visto o peso da história. Além disso, a cooperação portuguesa e as missões internacionais têm dado boa acolhida aos juristas de língua portuguesa, pela sua formação numa das línguas oficiais e civilista.

A revoada de juristas de todos os cantos do mundo e até uma tradição indonésia fez mesclar neste terreno o sistema de common law com o sistema civilista, e acabou-se por privilegiar as defesas orais e tudo se realiza em audiência, recebimento de petições, leitura, decisão.

A dominação de um povo consiste em mater durante o maior tempo possível a qualificação mais baixa e àquelas de mais alto escalão reservar aos seus escolhidos, que irão colaborar com ordem. Foi assim que a Indonésia conduziu seu mando em Timor, mantendo grande parte do povo sem qualificação, fazendo pouco uso da mão da obra local em cargos decisórios.

Foram pouco governados por si, por governantes comprometidos com este povo e, por decorrência, com pouca prática em governar. Quando houve a guerra em Timor, 75% da mão de obra qualificada fugiu para a Indonésia, restando muito pouco na área jurídica, a grande maioria sem experiência.

Uma vez garantida a segurança no país, com a presença de contingentes de diversos países, inclusive com competentes militares brasileiros, a próxima fase é de capacitação dos diversos setores do governo. E tudo isso é mais difícil do que se parece, pois mais que pessoas, é a história que capacita e as gerações que formam professores.

Minha missão aqui começou com a ONG “Avocats Sans Frontières”, da Bélgica, com fundos da Comissão Européia e do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Na época, fui recrutada para implementar o programa para capacitação dos defensores públicos do país junto com o Ministério da Justiça local.
Depois de seis meses, fui recrutada diretamente pelo PNUD, organização para a qual trabalho até agora, com o mesmo programa. Agora, no entanto, faço interface com a capacitação dos funcionários e magistrados da justiça, especialmente dos juízes e procuradores.

Conseguimos ainda redigir a lei orgânica da defensoria pública, tendo participado ainda da redação de outros diplomas legais. A codificação do direito está ocorrendo de maneira progressiva e dependendo até muito mais da colaboração dos assessores internacionais do que da participação local. Se eles ainda não estão prontos para redigir diplomas legais, estariam para aplicá-los? Ou mais crucial ainda, quem redige sabe da aplicabilidade do que redige?

Quando cheguei, minha prioridade foi aprender o tétum, o que fez com que em quatro meses eu já me comunicasse bem com os defensores em sua própria língua. Todas as pessoas são mais competentes em sua língua e também mais seguros nela. Era nesse ambiente que eu queria trabalhar para valorizar as capacidades que eles já tinham e com sensibilidade inserir aquelas que para mim fossem mais cruciais.

Alguns esforços ainda não deram conta de mudanças. Os juristas ainda tendem a pensar com a cabeça de juiz, ou seja, não exercitar o raciocínio que beneficia a parte e já julgam de imediato seu cliente.

Tampouco têm a prática de orientar os clientes nas declarações. Existe muita inocência ainda no espírito das pessoas, tanto dos profissionais quanto das pessoas nas suas relações comuns. Por seu caráter, as pessoas não conseguem mentir, nem de brincadeira.

Isso faz com que logo o suspeito confesse o crime no interrogatório, prejudicando a construção da defesa. Quando o suspeito não confessa, então, uso o raciocínio ao contrário, pois se a regra de quem comete o crime é confessar, se não confessou é porque não cometeu. E temos tido decisões do tribunal de recursos favoráveis às apelações que fazemos.

Erros grosseiros são corriqueiros. Os juízes, como ficam incomodados que se recorra de suas decisões, impedem que os defensores façam cópias, guardam os processos, viajam, restringem o acesso aos autos (mas os autos não são públicos, oras?).

A corte, em um caso, decidiu deportar um timorense (mas a constituição não proíbe a deportação de nacionais?). Um estrangeiro em Timor foi preso quando ia de barco a uma ilha local sob acusação de pirataria e tentativa de imigração ilegal a Austrália (pirataria? Isso não seria um crime cometido no mar, com fins econômicos? E não seria a Austrália quem deveria perseguir um crime de tentativa de imigração ilegal em seu território?). Qualquer que seja a situação do judiciário no Brasil, não se pode comparar.

O raciocínio abstrato é outro tema interessante, pois aqui é extremamente difícil ensinar algo com profundidade teórica, metáforas, comparações. E isso eu vim a saber mais tarde o por quê. Os profissionais locais têm dificuldade em apreender os conceitos de forma abstrata, por deficiência própria na sua formação educacional, pois nunca leram um livro de ficção na vida. De fato, vejo-os todos os dias com livros, mas só jurídicos de caráter prático, nunca um de literatura ou de teoria geral do direito.

O PNUD agora está engajado no estabelecimento de um programa de formação e estágio para qualificar a todos os profissionais da justiça e selecionar aqueles que continuarão em funções. Está sendo criado um sistema que seja uniforme para as carreiras de forma organizada, estabelecendo-se um critério e uma norma igual para todos. Sou uma das formadoras neste programa, que privilegia num primeiro estágio noções gerais de direito e uma adaptação à linguagem jurídica.

A língua será por muito tempo uma questão em debate neste país pois não existe língua legal uniforme, que funcione em todos os distritos. Isso porque as tribos eram organizadas em comunidades e isoladas umas das outras — até o interligamento por estradas não havia comunicação entre elas.

Existem mais de 30 dialetos no país, que tem pouco mais de 800 mil habitantes. Em virtude da dominação indonésia, com a imposição de sua língua, a única língua mais ou menos uniforme é a Indonésia. Mas o Estado reconhece apenas o português, que, ensinado no país e utilizado pelo governo, é a língua das reuniões oficiais, do Conselho de Ministros, embora alguns sejam ainda pouco fluentes.

O Tribunal recentemente aprovou um regulamento que determina o uso exclusivo das línguas oficiais, uma vez que todos os juristas vinham utilizando o indonésio. O tétum terá então que se desenvolver e valer-se de muitos empréstimos para dar conta da precisão da terminologia técnica.

Enfrentamos muita resistência em aspectos procedimentais, quando incorporar uma mudança implica alterar a rotina. Esta resistência frustra grande parte dos projetos. Não se trata de aplicar coisas que no exterior funcionem e que aqui não fariam sentido. São sistemas necessários para garantir a qualidade do serviço prestado pelos órgãos da justiça, orientados pela segurança, competência, pró-atividade, que visem atender melhor aos beneficiários.

Viemos para ensinar, sem arrogância, mas quem aprende mais somos nós próprios. Enquanto não houver um raciocínio critico, uma vontade de olhar para fora, comparar, e em atitude em buscar melhorar, pouco aprendizado poderá haver.

A missão é grande, mas maior ainda é o fato de que o povo timorense merece que o espírito não seja mais o da subsistência, mas o de uma vida cultural e socialmente rica, para sair de uma estagnação enorme. A missão das Nações Unidas vai terminar e a história vai ser devolvida aos timorenses.

Priscila Akemi Beltrame é assessora do PNUD para a Defensoria Pública no programa de Fortalecimento do Sistema Judiciário em Timor Leste

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