Magistrada aceitou a tese da defesa no sentido de que acusado não tinha intenção de roubar, mas teria se sentido solidário com amigo, que fez um programa sexual com a vítima e não receberia o valor combinado.
A Juíza da 4ª Vara Criminal de Vitória, Gisele Souza de Oliveira, ao analisar uma denúncia feita pelo Ministério Público Estadual (MPES), entendeu que travesti que usou um canivete para ameaçar um cliente que se recusava a pagar por programa realizado por seu amigo, deve ser desqualificado do crime de roubo com emprego de arma. Para magistrada, o réu cometeu outro crime: o de “exercício arbitrário das próprias razões”.
Com a sentença da juíza, o processo será encaminhado aos Juizados Especiais Criminais de Vitória, competente para julgar crimes de menor potencial ofensivo.
Segundo os autos, para o MPES, o acusado e um amigo roubaram R$ 329,00 do taxista, mediante grave ameaça, tentando se evadir do local.
A defesa, no entanto, pediu a desclassificação do delito de roubo para o de exercício arbitrário das próprias razões.
Para a magistrada, está comprovado nos autos, por meio das declarações prestadas, que a vítima teria combinado um programa sexual, com o amigo do acusado, e não queria pagar o serviço prestado por este. Ao prever que o amigo ficaria sem o seu pagamento, o acusado, então, teria apontado o canivete para a vítima e exigido que esta entregasse todo o dinheiro que tinha em mãos.
Segundo a juíza, no íntimo, o acusado se sentiu lesado e solidário com o seu amigo, também travesti, que fez um programa sexual e que estava prestes a ficar sem o seu pagamento.
“Portanto, verifica-se que o móvel do acusado não foi subtrair coisa alheia, mediante ameaça, mas sim viabilizar o ressarcimento ao seu amigo pelos serviços sexuais prestados à vítima.”, ressalta a magistrada.
Ainda segundo a sentença, não se pode ignorar que os profissionais do sexo estão inseridos em um contexto de vulnerabilidade social tão grande que é comum agirem para se defender como também defenderem uns aos outros. “Fato é que a sociedade os inseriu em um espaço de marginalização e exclusão, de forma que merecem uma atenção humanizada”, destaca.
Por essas razões, a juíza entendeu, ao contrário do que sustentou o Ministério Público Estadual, que o crime cometido pelo acusado não foi roubo majorado pelo emprego de arma e concurso de pessoas (art. 157, § 2º, I e II do CP), e sim o de exercício arbitrário das próprias razões, previsto no art. 345 do Código Penal.
“Art. 345 – Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite: Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à
violência.”
A juíza citou, ainda, em sua sentença, voto do Ministro Rogério Schietti Cruz, no julgamento do Habeas Corpus nº 211.888/TO, que destaca que não se pode negar proteção jurídica àqueles que oferecem serviços de natureza sexual em troca de remuneração, desde que essa troca não envolva incapazes, menores e pessoas de algum modo vulneráveis, desde que o ato sexual seja de livre vontade dos participantes e não implique uso de violência
O Ministro destaca, ainda, em seu voto:
“(…) Em verdade, de acordo com o Código Brasileiro de Ocupações de 2002, regulamentado pela Portaria do Ministério do Trabalho n. 397, de 9 de outubro de 2002, os (ou as) profissionais do sexo são expressamente mencionados no item 5198 como uma categoria de profissionais, o que, conquanto ainda dependa de regulamentação quanto a direitos que eventualmente essas pessoas possam exercer, evidencia o reconhecimento, pelo Estado brasileiro, de que a atividade relacionada ao comércio sexual do próprio corpo não é ilícita e que, portanto, é passível de proteção jurídica. (…)
Segundo a juíza, “nota-se – sem nenhuma pretensão de se fazer qualquer tipo de apologia ao comércio sexual do corpo – que a cobrança, na Justiça, em decorrência de descumprimento da contraprestação nos casos de serviços sexuais prestados por profissionais do sexo, é perfeitamente cabível.”
Quanto ao fato de que o valor entregue pelo taxista (R$ 329) era superior ao valor cobrado pelo serviço (R$40), a juíza entendeu que, na situação narrada nos autos, não seria razoável exigir do acusado que ele soubesse o valor exato que havia na mão da vítima. Além disso, segundo a magistrada, a quantia de R$329 foi devidamente restituída à vítima.
“Ante o exposto, julgo parcialmente procedente a pretensão punitiva estatal para DESCLASSIFICAR a conduta imputada ao acusado para aquela tipificada no artigo 345 do Código Penal, concluiu a magistrada”, determinado que os autos sejam remetidos, por distribuição, a um dos Juizados Especiais Criminais de Vitória, acompanhado de eventuais objetos apreendidos.
Processo nº: 0038491-83.2015.8.08.0024
Fonte: TJ/ES