Os defensores do foro privilegiado apontam que o benefício é necessário para evitar que uma autoridade fique respondendo a processos em diferentes cidades. Nesta terça-feira (1º/4), o Supremo Tribunal Federal decidiu usar o mesmo princípio para favorecer o advogado Ezio Rahal Melillo, que responde a mais de 500 processos criminais.
Os ministros da 1ª Turma não consideraram razoável deixar cada processo tramitando em uma vara diferente. O pedido de unificação foi feito em Habeas Corpus e concedido com base no voto do relator, ministro Menezes Direito. Uma eventual unificação dos processos ficará a critério do juiz responsável pelas ações.
De acordo com os autos, a Polícia Federal apreendeu mais de 500 carteiras de trabalho profissional adulteradas no escritório do advogado. O objetivo, de acordo com a investigação da PF, era fraudar o INSS.
O Ministério Público apresentou uma denúncia para cada uma das carteiras apreendidas, diz o advogado Melillo. Por isso, ele responde hoje a 563 processos criminais. O advogado foi preso em 2004 pelos crimes de falsidade ideológica, uso de documento falso e estelionato.
No STF, pediu a unificação dos processos. O julgamento começou em fevereiro. O relator, ministro Menezes Direito, votou para que os processos ficassem em apenas uma vara. Ele foi acompanhado pela ministra Cármen Lúcia e pelo ministro Ricardo Lewandowski. O ministro Marco Aurélio pediu vista dos autos. Ele votou para que os processos tramitem um uma única vara.
Segundo ele, da forma como está, com mais de 500 processos tramitando em separado, torna-se muito difícil o exercício da defesa. O ministro votou pela concessão da ordem, integralmente, e foi acompanhado pelo ministro Carlos Britto, mas os dois ficaram vencidos.
HC 91.895
Leia o voto do ministro Marco Aurélio
HABEAS CORPUS 91.895-6 SÃO PAULO
RELATOR: MIN. MENEZES DIREITO
PACIENTE(S): EZIO RAHAL MELILLO
IMPETRANTE(S): LUIZ FERNANDO COMEGNO
COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
V O T O V I S T A
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Consta deste processo que, em 7 de julho de 2000, agentes policiais federais realizaram diligência na Comarca de Botucatu, Estado de São Paulo, e apreenderam, no escritório de advocacia do co-réu Francisco Moura, mil carteiras de trabalho e previdência social – CTPS, todas preenchidas com histórico referente a trabalho rural na região. A autoridade policial determinou a abertura de um inquérito para cada documento apreendido.
O paciente, o advogado Ezio Rahal Melillo, elaborara e subscrevera as petições iniciais das ações previdenciárias contra o Instituto Nacional do Seguro Social, ajuizadas no Fórum da Comarca de São Manuel/SP, razão pela qual foi indiciado em mil inquéritos policiais pela suposta prática dos delitos de falsificação de documento público, uso de documento falso e estelionato – artigos 304, 299 e 171, § 3º, do Código Penal.
O Ministério Público Federal apresentou uma denúncia para cada inquérito, de modo que hoje estariam em andamento quinhentas ações penais e quinhentos inquéritos. Relativamente às ações penais, 98% delas tramitam no Juízo da 2ª Vara Federal Criminal; do restante, nove encontram-se em curso no Juízo da 1ª Vara Federal Criminal e duas no Juízo da 3ª Vara Federal Criminal, todas da 8ª Subseção Judiciária da Justiça Federal no Estado de São Paulo – Comarca de São Manuel.
O paciente requereu ao Juízo da 2ª Vara Federal Criminal o reconhecimento da continuidade delitiva e a reunião das ações em uma só. Aduziu ser evidente a existência do instituto da conexão intersubjetiva, tendo em conta o nexo próprio à continuidade prevista na legislação penal – a suposta ocorrência do fato típico no tempo, lugar e modo de execução. O Juízo indeferiu o pedido, sob o argumento de que, se reunidas as ações em andamento, tornar-se-iam mais difíceis o manuseio e a prolação da sentença, dado o grande volume de processos. Por outro lado, ficaria comprometida a objetividade: 150 processos estariam aguardando interrogatório, sendo que estes teriam que abordar 150 fatos distintos, havendo audiência para oitiva de 150 testemunhas de acusação e a possibilidade de a defesa requerer a oitiva de mais de duas mil testemunhas (folha 5326 do apenso 26).
Contra a decisão foi impetrado habeas no Tribunal Regional Federal da 3ª Região. A ordem acabou indeferida, sob o fundamento de que a reunião dos processos não se mostraria viável àquela altura, por se encontrarem em fases distintas. A providência poderia causar tumulto processual. Assentou a Corte que, na via do habeas corpus, não seria possível examinar se estariam presentes os requisitos fáticos necessários à configuração da continuidade delitiva. Apesar da correlação entre os fatos, na verdade, em cada processo, estaria sendo investigada uma conduta criminosa autônoma – a utilização de uma carteira de trabalho e previdência social em particular, de propriedade de segurados distintos. Além disso, as provas eventualmente colhidas, especialmente as testemunhais, seriam diversas (folha 5324 a 5329 do apenso 26).
Ocorreu a interposição de recurso ordinário que veio a ser desprovido pelo Superior Tribunal de Justiça (folha 49 a 54). Na oportunidade, assentou-se que:
a) a verificação dos requisitos do artigo 71 do Código Penal, a fim de se averiguarem a eventual caracterização da continuidade delitiva e a reunião dos diversos processos, não poderia ser procedida na via estreita do habeas por envolver o contexto fático probatório;
b) a junção de ações penais, consoante dispõe o artigo 80 do Código de Processo Penal, deve atender à conveniência, otimizando-se a tramitação processual;
c) o elevado número de processos a que responde o paciente afasta a utilidade da reunião das ações, ainda mais quando evidenciado que os processos respectivos estão em fases distintas;
d) embora exista correlação entre os fatos dos processos-crime, as provas a serem produzidas, especialmente as testemunhais, são diversas, circunstância a inviabilizar o regular andamento processual.
Nesta impetração, articula-se que os pressupostos legais para o reconhecimento da continuidade delitiva estão presentes. Conseqüentemente, em face da conexão subjetiva, mostrar-se-ia admissível a reunião dos processos, até porque as provas colhidas em uma ação serviriam às outras. Além do mais, o elevado número de processos prejudicaria o exercício do direito de defesa.
A Procuradoria Geral da República, à folha 83 à 87, opinou pelo indeferimento da ordem. Citando precedentes, disse do não-cabimento de reapreciação de fatos e provas.
O processo foi distribuído ao ministro Menezes Direito por sucessão. Sua Excelência apresentou-o em mesa, para julgamento, na sessão de 19 de fevereiro deste ano. Pronunciou-se pelo conhecimento parcial da impetração e, nessa parte, pelo deferimento. Sua Excelência consignou a impossibilidade de examinar, em habeas corpus, a presença dos requisitos fáticos caracterizadores da continuidade delitiva, porquanto implicaria revolvimento de provas. Ressaltou que o Superior Tribunal de Justiça não teria adentrado o tema, aspecto a inviabilizar a admissibilidade da impetração nesse ponto. Fez ver que a multiplicidade de ações penais não constitui, por si só, obstáculo ao exercício da ampla defesa e que conclusão nesse sentido somente pode decorrer de análise do caso concreto.
Quanto à conexão probatória, realçou que, embora o fato não implique necessariamente a reunião dos processos, haveria a necessária competência do mesmo Juízo, presente a prevenção. Então, Sua Excelência votou no sentido de determinar a reunião dos processos no Juízo que recebera o primeiro deles.
Na assentada, revelei perplexidade. Eis o que veiculei:
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – Este processo lembra-me um caso de quando eu era Corregedor-Geral da Justiça do Trabalho. Em determinado Tribunal Regional do Trabalho, a certa altura, proibiu-se a distribuição de ações plúrimas com o objetivo de revelar um grande número de demandas e, com isso, pretender-se a criação, à época, de novas juntas de conciliação e julgamento. Precisei atuar visando afastar o que, para mim, mostrou-se algo direcionado apenas a haver base para a proposta de criação de Juntas.
O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO (RELATOR):
Senhor Presidente, neste caso, impressiona-me muito não podermos, pelo menos na minha compreensão, é claro, ultrapassar a disciplina do artigo 80 do Código de Processo Penal.
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – A meu ver, o direito de defesa continua dificultado. Existe até um caso momentoso de ações por danos morais contra jornais, ajuizadas por integrantes de certa religião, que chegará ao Supremo algum dia, sem dúvida alguma, para definir-se a possibilidade de ter-se quase que um verdadeiro terrorismo jurisdicional em termos de propositura de ações.
Preocupo-me porque houve a apreensão de certo número de carteiras e, em vez de se concentrarem o inquérito e a persecução criminal, ocorreu a disseminação, como retratado por Vossa Excelência, chegando-se a cerca de quinhentos inquéritos e mais de quinhentas ações, inviabilizando-se, a meu ver, com transgressão do devido processo legal, a própria defesa.
Como estamos na última trincheira do cidadão, que é o Supremo, permito-me pedir vista.
O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO (RELATOR):
Este caso é muito interessante. Se Vossa Excelência me permite, não tenho essa perspectiva. Nem sempre a última trincheira do cidadão significa que ele tem o direito. A última trincheira é para reconhecer o direito existente, ou, como disse Vossa Excelência muito bem, é o direito posto.
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – Ainda não estou divergindo de Vossa Excelência. Estou, sim, perplexo diante do quadro.
O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO (RELATOR):
Aqui, aconteceu exatamente isto: houve a apreensão de aproximadamente mil carteiras, no escritório do paciente e do co-réu, que deu origem a estes processos.
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – Há praticamente mil inquéritos e, hoje, já estão em curso quinhentos processos revelando ações penais.
O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO (RELATOR):
E foram os processos distribuídos, considerando o Juiz, com base no artigo 80 do Código Penal, que não haveria condições de reuni-los. O citado artigo expressamente autoriza que o Juiz assim considere. E mais do que isso, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, examinando os autos, portanto, já no 2º grau, considerou que essa reunião dos processos, além da justificativa do artigo 80, era inviável diante das fases distintas em que se encontravam. E, afinal, o Superior Tribunal de Justiça, que é um Tribunal Superior, examinando a matéria, confirmou não só esse estado de fato como, também, a interpretação do direito. Mas o pedido de vista de Vossa Excelência será extremamente interessante.
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – Ainda vejo o habeas corpus como uma ação constitucional que não sofre qualquer peia e pode desaguar em saneamento.
O SR. MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI – Senhor Presidente, eu me manifestei no seguinte sentido: uma vez determinada por esta Turma a reunião dos processos por prevenção, entendo que o pedido de reunião, em face de eventual conexão, pode ser reapresentado em primeiro grau, porque a situação se modifica.
O SR. MINISTRO CARLOS BRITTO – Ministro, com a intervenção de Vossa Excelência, também entendi, exatamente, que há uma possibilidade agora, no juízo de primeiro grau, de renovação do próprio pedido.
O SR. MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI – Sim, de renovação do pedido.
O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO (RELATOR):
Ministro Carlos Ayres, há mais: veja que o advogado, da tribuna, com lucidez, teve o cuidado de não pedir a reunião num só processo, ele entendeu que seria possível reuni-los em três, quatro, cinco blocos. Ora, isso será possível se nós determinarmos, como estamos fazendo, por uma interpretação generosa da compreensão do habeas corpus como uma ação constitucional que de fato é, e permitirá que o Juiz avalie, concretamente, de acordo com o estágio em que os processos se encontrem, se será possível ou conveniente, de acordo com o artigo 80, a reunião dos processos. Sendo certo que, de fato, esta decisão não está inviabilizando a reunião dos processos, pelo contrário, está reafirmando os termos da lei no sentido de que o artigo 80 autoriza a faculdade da reunião dos processos ou da sua separação.
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – Não pretendo discutir o tema de fundo porque pedi vista. Mas Vossa Excelência mesmo apontou que há o envolvimento de dois Juízos. Tudo leva a crer que neles, individualmente, já se pretendeu essa reunião, a unificação processual, e não se logrou êxito.
O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO (RELATOR):
Consta dos autos que este é o primeiro pedido de reunião dos processos que seguiu o seu trâmite. Foi pedido ao Juiz, ele o indeferiu, subiu ao Tribunal Regional Federal da 3º Região, que negou provimento, decisão mantida pelo Superior Tribunal de Justiça. Veio aqui e estamos decidindo dessa maneira.
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – A não ser pela reunião dos processos em um único Juízo, continua um quadro que, a meu ver, consideradas as audiências designadas e a multiplicidade de processos, inviabiliza o direito de defesa. A minha preocupação é única.
O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO (RELATOR):
Esse risco não existe, na minha perspectiva. Não li integralmente o voto, Vossa Excelência mesmo pede que, diante do grande volume de processos que chegam aos nossos gabinetes, só hoje são cinqüenta e seis, nós abreviássemos. Da minha parte, faço o possível para resgatar a memória dos feitos que me são distribuídos.
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – Por isso pedi vista: para sacrificar o tempo.
O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO (RELATOR):
Mas, de todos os modos, Vossa Excelência sabe que, na decisão tomada, não existe uma vedação de que essa reunião dos processos, de acordo com a conveniência e com o estágio em que se encontram, possa ser deferida. Não existe inviabilidade, a qualquer momento isso pode ser feito, mutatis mutandis, isso tem a mesma estrutura que a facilitação do direito de defesa sob o ângulo do Código de Defesa do Consumidor, em que os conflitos de competência são dirimidos exatamente, levando em consideração essas circunstâncias.
Enfim, certamente o brilho de Vossa Excelência aplacará a ousadia do voto que acabei de pronunciar.
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – Não Excelência, só quero estar convencido sobre a matéria para poder proferir voto com domínio total.
O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO (RELATOR):
Mas Vossa Excelência sempre o tem, à exaustão.
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – Não é bem assim. Imagina!
Recebi o processo no Gabinete em 5 de março de 2008. Nele lancei visto em 21 subseqüente, designando como data de julgamento a de hoje, 1º de abril de 2008.
Com o exame do processo e reflexão sobre a matéria de fundo, o entendimento que aflorou na assentada anterior está, já agora, robustecido. Em primeiro lugar, ressalto que, sem fato, não há julgamento. Uma coisa é a necessidade de sopesarem-se elementos probatórios para concluir-se desta ou daquela forma. Outra diversa é, presentes fatos incontroversos, caminhar-se no sentido do enquadramento jurídico que a parte venha a reclamar. O habeas possui envergadura maior, não podendo no julgamento respectivo, quando em jogo a liberdade de ir e vir do cidadão, partir-se para ortodoxia ímpar a ponto de colocá-lo em plano secundário. Viável o exame da matéria, deve fazê-lo o órgão julgador, pronunciando-se como entender de direito. Desse modo procederam o Juízo no qual requerida a reunião dos processos, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região e o Superior Tribunal de Justiça. Este último assim deixou ementado o acórdão que proferiu (folha 49):
CRIMINAL. RHC. ESTELIONATO. REUNIÃO DE AÇÕES PENAIS. CONTINUIDADE DELITIVA. VERIFICAÇÃO DE REQUISITOS. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. ELEVADO NÚMERO DE PROCESSOS. JUNÇÃO DOS FEITOS QUE NÃO ATENDE AO JUÍZO DE CONVENIÊNCIA. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. RECURSO DESPROVIDO.
I. A verificação dos requisitos do art. 71 do Código Penal, a fim de se verificar a eventual caracterização da continuidade delitiva e autorizar a reunião dos diversos processos criminais instaurados contra o réu não pode ser procedida na via eleita.
II. O habeas corpus é meio impróprio para essa discussão, na forma como se apresenta o caso dos autos, pois implicaria no (sic) revolvimento do contexto fático-probatório.
III. A teor do art. 80 do Código de Processo Penal, a junção de ações penais deve atender a um juízo de conveniência no tocante à otimização do trâmite processual, da produção de provas, etc.
IV. O elevado número de feitos a que responde o recorrente – quinhentos processos criminais –, afasta a conveniência necessária à reunião das ações, diante da dificuldade da tramitação em conjunto, ainda mais quando evidenciado que os procedimentos estão em fases processuais distintas, tendo sido, inclusive, proferidas duas condenações.
V. Não obstante haja correlação entre os fatos objeto dos processo-crime, as provas a serem produzidas em cada processo, especialmente as testemunhais, são diversas, o que poderá inviabilizar o regular andamento do feito.
VI. Recurso desprovido.
O habeas corpus não sofre qualquer peia, nem mesmo a decorrente de preclusão quanto a título judicial condenatório. Assim, surge com neutralidade absoluta o estágio em que se encontram os processos, dois deles com condenação formalizada. O paciente insurgiu-se contra o quadro, realmente extravagante, revelado neste habeas à primeira hora, buscando a racionalização da atividade processual, com os meios próprios ao exercício do direito de defesa.
Também não cabe dizer que não se enfrentou a matéria de fundo, ou seja, que até aqui não houve pronunciamento sob o ângulo da continuidade delitiva. É este o único tema que já foi suscitado em três esferas – no Juízo, no Tribunal Regional Federal da 3ª Região e no Superior Tribunal de Justiça.
Em bom vernáculo, dispõe o artigo 71 do Código Penal que:
Art. 71. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.
Parágrafo único. Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.
O preceito encerra a continuidade delitiva no que a racionalização indica a necessidade de adotar-se a celeridade e economia processuais, possibilitando-se o direito de defesa. Trata-se de instituto que, a um só tempo, atende à otimização da atividade judicante e aos interesses do agente. O instituto da continuidade delitiva não pressupõe a mesma vítima.
Pois bem, mediante diligência voltada à busca e apreensão, chegou-se às carteiras de trabalho que se apontam com anotações fraudulentas. Em vez de ser instaurado inquérito único, procedeu-se à individualização. Assim, apreendidas mil carteiras, mil inquéritos vieram à balha, contemplando-se, de forma inexcedível, a estatística. Costumo dizer que o que começa de modo errôneo tende a provocar distorções, complicando-se o quadro a cada passo. Mil inquéritos formalizados, a que se seguiram mil denúncias confeccionadas pelo Ministério Público, surgindo, então, um sem-número de ações penais a inviabilizar, sem dúvida alguma, defesa a tempo e a hora. Basta que se considerem, para tanto, as diversas fases asseguradas em lei com audiências e peças distintas.
A situação é realmente emblemática, razão pela qual tenho certeza que se mostra merecedora de estudos acadêmicos, para revelar, justamente, o que não devem fazer a autoridades que personificam o Estado. As premissas constantes do voto condutor do julgamento realizado no Tribunal Regional Federal da 3ª Região são realmente estarrecedoras no que se veio a referendar a visão do Juízo segundo a qual:
[…] se reunidos os processos que já estão em andamento, o manuseio e sentenciamento de um feito com mais de 180 mil páginas certamente comprometeria um mínimo de objetividade na fase de sentença e, se reunidos os 150 processos que aguardam interrogatório, os interrogatórios teriam que abordar 150 fatos distintos, ter-se-ia que aguardar pela oitiva de, no mínimo, 150 testemunhas de acusação, com todos os percalços da colheita da prova oral e, ainda, a possibilidade da defesa arrolar mais de duas mil testemunhas.
Esses números estarão ligados, estarão geometricamente aumentados, ante o desmembramento verificado, se vierem à balha as mil ações, referentes às mil carteiras de trabalho apreendidas – das quais contariam lançamentos de vínculos empregatícios fictícios, sendo utilizadas para obtenção de benefícios previdenciários, mediante fraude, tendo como instrumental ações judiciais propostas pelo paciente e pelo sócio. E tudo se dará mesmo havendo a possibilidade de reunir as práticas em processo único, em denúncia única a ser formalizada pelo Ministério Público.
Nada justifica a perpetuação da multiplicidade de ações aventadas, inviabilizando-se, sob todos os títulos, o direito de defesa e chegando-se alfim, se comprovada a culpa dos envolvidos, a sentença que suplantará, considerados os anos alusivos às penas, a vida mais projetada no tempo. A reunião dos processos em um mesmo Juízo não afastará os percalços decorrentes da prática que tenho como inusitada. Cumpre o saneamento do quadro, concluindo-se pela insubsistência das múltiplas ações.
Concedo a ordem em maior extensão, para fulminar os processos em curso e assentar que um só há de merecer a seqüência cabível, imputando-se os crimes que hoje encerram mais de quinhentas denúncias, sendo que outras tantas, em idêntico número, tudo indica, virão à balha, presentes os quinhentos inquéritos que ainda estão a aguardar a oferta de denúncias considerada a prática anteriormente observada. É como voto na espécie.
Revista Consultor Jurídico