Por Richard Paes Lyra Junior
“Não me parece que o Brasil seja conhecido por seus juristas, mas sim por suas dançarinas” (Deputado Ettore Pirovano)
A infeliz e inverídica frase que abre este ensaio traduz com fidelidade a estremecida relação entre as embaixadas de Brasil e Itália, antes linear e amistosa, fruto da negativa brasileira em extraditar um “refugiado da justiça italiana”, condenado por quatro homicídios em seu país na década de 70.
O Brasil justifica tal negativa invocando a soberania nacional, mais precisamente, in casu, com fulcro no inciso X, artigo 4º da Carta Magna, cujo dispor prescreve a concessão de asilo político como um dos princípios que regem o país em suas relações internacionais. A seu turno, a Itália repudia a postura diplomática brasileira, considerando incabível a concessão do asilo político face a natureza dos crimes cometidos pelo refugiado.
Ao contemplar tais argumentos, imprescindível as seguintes ponderações: (i) o referido cidadão italiano enquadra-se, efetivamente, no conceito de refugiado?; (ii) os crimes por ele praticados, com trânsito em julgado, subsumem-se as prescrições constantes na Carta Magna brasileira?
A priori, antes de adentrar ao mérito das questões acima suscitadas, convém consignar que a condição de refugiado está prevista no artigo 6.A.II da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, corolário do princípio da concessão de asilo político, ora recepcionado e vertido em norma no Brasil por intermédio da Lei 9.474/97.
Segundo esta, entende-se por refugiado todo indivíduo que (a) devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; (b) não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; (c) devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país (art. 1º, I a III).
Destarte, o governo brasileiro sustenta a não extradição por entender que o integrante do grupo dos proletários armados para o comunismo (organização de extrema esquerda contrária ao governo da época e acusada de diversos atos terroristas na Itália) é vítima de perseguição, em razão de suas opiniões políticas.
Data maxima venia, discordo frontalmente da premissa acima estabelecida. Tendo em vista o trânsito em julgado e o caráter soberano das decisões proferidas pela Justiça italiana, não há que se falar em perseguição por motivos políticos, já que se trata de decisum proferido por órgão jurisdicional legítimo e competente. Em outras linhas, o caso em tela não retrata a “perseguição política” de um Estado contra um indivíduo, mas de execução de uma ordem judicial emanada por autoridade competente para tal.
A proteção albergada pela Lei 9.476/97 afigura-se deveras salutar a democracia de um país, eis que assegura o direito de opiniões políticas contrárias a todo e qualquer cidadão nele residente, contudo, o episódio em comento faz alusão a atitudes que exacerbam a simples opinião política do indivíduo, eis que contempla atitudes terroristas que culminaram em mortes, eventos já reconhecidos pelo Judiciário italiano.
De tal sorte, a mera alegação de perseguição por opiniões políticas não é suficiente para atribuir a condição de refugiado, haja vista o processo judicial referir-se a fatos típicos e apenados conforme a legislação pátria, afastando, por óbvio, a pretensa condição de refugiado. Logo, afigura-se uma impropriedade jurídica inominável analisar o caso sob a ótica da perseguição por motivos de opiniões políticas e, consequentemente, reputar este cidadão como sendo um refugiado político.
Não bastasse a interpretação equivocada do artigo 1º, I, da Lei 9.474/97, a diplomacia brasileira parece desprezar o teor que embasa a decisão da Justiça italiana, bem como as disposições do artigo 3º, III do mesmo diploma legal e 4º, VIII, da Carta Magna, cujo teor peço venia para transcrever, consecutivamente, in verbis:
Art. 3º Não se beneficiarão da condição de refugiado os indivíduos que:
III — tenham cometido crime contra a paz, crime de guerra, crime contra a humanidade, crime hediondo, participado de atos terroristas ou tráfico de drogas;
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
VIII — repúdio ao terrorismo e ao racismo; (grifo nosso).
Notem, a referida sentença condenatória, proferida pela Justiça italiana, reconhece a autoria e materialidade delitiva atinente a quatro homicídios decorrentes de atos terroristas praticados pelo acusado. Ora, uma vez reconhecida a prática de atos terroristas, a concessão de refúgio pelo governo brasileiro cai por terra ante a exclusão descrita no artigo 3º, III do diploma legal supracitado e a notória contrariedade ao princípio de repúdio ao terrorismo estatuído na Constituição brasileira de 1988.
Nem se alegue que a postura diplomática atende a soberania do Estado brasileiro, isto porque, tal decisão, vai de encontro à própria Constituição Federal, tornando deveras vazia e insubsistente a posição adotada pelo governo brasileiro. Considerando, portanto, a soberana decisão judicial que reconhece homicídios provenientes de atitudes terroristas e o princípio constitucional do repúdio ao terrorismo, desaparece o direito de concessão de refúgio implícito no artigo 4º, X, da Carta Magna.
Desta forma, reputa-se, a nosso sentir, equivocada a interpretação do governo brasileiro no tocante ao instituto do refúgio descrito na Lei 9.474/97 e implícito na Constituição da República Federativa do Brasil, razão pela qual deve a diplomacia brasileira rever o caso e, enfim, autorizar a extradição do acusado, sob pena de estremecer ainda mais as relações entre os países.