Ativismo judiciário – Em uma democracia os fins nunca justificam os meios

por Eduardo Appio

A mais recente Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal, a de número 13, editada em 21 de agosto de 2008, tem como finalidade principal erradicar a prática do nepotismo nas três esferas da Administração Pública do Brasil. Com este sentido, a súmula dispõe, basicamente, que a prática do nepotismo no serviço público viola a Constituição da República. Em caso de descumprimento da determinação constante da súmula, caberá a propositura de reclamação constitucional diretamente ao Supremo em Brasília.

O presente artigo não tem como objetivo discutir o mérito da decisão da mais alta Corte do país, até porque já existe um elevado grau de consenso acerca do acerto intrínseco da medida. Pretendo, tão somente, trazer à discussão um fenômeno bastante recente da história do Supremo Tribunal brasileiro, o que me levou à conclusão de que temos, hoje no país, a Suprema Corte mais ativista de todo mundo. Se os resultado do Brasil nas olimpíadas da China foi bastante discreto, o mesmo não se pode dizer sobre a atuação do STF em termos mundiais.

O ativismo judiciário significa, em breve síntese, que juízes não eleitos diretamente pela população trazem para si a incumbência de decidir questões tradicionalmente afetas aos demais Poderes da República. Assim, o fenômeno da “judicialização da política” traz em seu interior a possibilidade de que decisões sobre políticas públicas sejam tomadas por aqueles que não foram eleitos para esta importante missão. Em meio a um processo eleitoral nacional, o tema é assaz relevante.

Nos Estados Unidos, o ativismo judiciário foi o responsável pelos maiores acertos — e também pelos maiores erros — históricos da Suprema Corte. No início do século XX (Lochner v. New York – 1905) a Suprema Corte dos Estados Unidos, à revelia dos ramos eleitos pela população, ainda durante a Era Roosevelt, declarou inconstitucionais reformas sociais que se mostravam indispensáveis à recuperação econômica do país, após a quebra da Bolsa de NY. Para muitos, esta (ativista) decisão da Suprema Corte foi um dos maiores erros judiciários da história do país.

Já em 1954 (Brown v. Board of Education) a mesma Suprema Corte colocou um fim à segregação racial nas escolas públicas estaduais do país, também através de uma decisão ativista, naquele que é considerado um verdadeiro ícone da boa interpretação constitucional. Graças à decisão tomada em Brown, a Suprema Corte dos Estados Unidos teve as condições políticas necessárias para decidir casos altamente polêmicos, como a regulação do aborto no país e a proteção das mulheres no mercado-de-trabalho. O ativismo judicial pode assumir um colorido progressista ou conservador.

No caso brasileiro, recentes decisões do Supremo Tribunal já indicavam um crescente ativismo judicial, derivado – segundo alguns – da própria erosão de credibilidade política sofrida pelo Congresso Nacional após o episódio do chamado “mensalão”. Assim, no Mandado de Injunção 758 o Supremo Tribunal decidiu ser possível regular, desde logo, matéria originalmente afeta ao Congresso Nacional, reacendendo o debate em torno das possibilidades do instrumento.

Também em sede de políticas públicas, o STF vinha decidindo ser possível, ao Poder Judiciário, interferir no processo de sua formulação, inclusive em se tratando da concessão judicial de medicamentos de alto custo pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o que vinha trazendo severos prejuízos para a Administração Pública. Todavia, o enunciado da Súmula Vinculante 13 do STF rompe, por completo, com uma saudável tradição de harmonia entre os Poderes constituídos na República, uma vez que cria deveres jurídicos para os Administradores Públicos, inovando primariamente na ordem jurídica do país, sem que se observe o princípio constitucional da legalidade (ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei).

A súmula foi editada como resultado do julgamento do Recurso Extraordinário 579.951-4. Resulta claro que a Súmula Vinculante 13 não corresponde ao que foi decidido neste recurso extraordinário, já que sua eficácia se estende em relação aos demais Poderes da República, quando é certo que o próprio voto do relator do RE, Ministro Lewandowski, dizia claramente que o STF não poderia atuar como “legislador positivo”, tendo negado o pedido do Ministério Público para que se determinasse ao recorrido a abstenção de novas contratações de parentes no futuro.

Diz o voto que “o provimento integral do RE, com efeito, revelaria extravasamento de competências, com ofensa ao princípio constitucional da separação dos Poderes” (litteris). A edição da súmula, por conseguinte, rompeu com o princípio da inércia da jurisdição e converteu em norma genérica, com eficácia vinculante idêntica a da lei formal, aquilo que o acórdão condenou como verdadeira invasão de competências políticas.

Em segundo lugar, importa notar que a vedação ao nepotismo se originou de uma interpretação que o STF deu a um dos princípios mais abertos e controvertidos de toda a Carta da República, o princípio da moralidade. Muito embora o voto do relator no RE – Ministro Lewandowski — faça alusão aos princípios (artigo 37 da Constituição Federal) da eficiência e da impessoalidade na Administração Pública, é a moralidade administrativa que irá servir como principal fundamento para a decisão que declarou constitucional a regra do CNJ que proscreve o nepotismo na Magistratura.

Como, então, criar deveres concretos para o Administrador, limitando sua liberdade, sem que aprovada lei pelo Congresso Nacional eleito para tanto? Note-se, por fim, que a própria Constituição Federal estabelece que o provimento destes cargos comissionados — em número crescente durante a gestão do atual Presidente da República — se dá com plena liberdade em favor do Administrador Público. Esta limitação, por conseguinte, somente poderia derivar de emenda à Constituição ou, pelo menos, lei federal aprovada pelo Congresso Nacional, mas nunca por decisão unilateral da mais alta Corte do país, ansiosa por regular o tema.

A aceitação da idéia de que o STF possa criar deveres concretos para os cidadãos e para a Administração Pública, sem a precedência do debate político em um Congresso Nacional eleito para tanto, significa uma verdadeira revolução da doutrina da interpretação constitucional no Brasil, sempre limitada pelo princípio da separação entre os Poderes.

O STF passa a aceitar a incumbência de regular os mais importantes temas da agenda política do país, exercendo verdadeira atividade legislativa (positiva), convertendo-se, doravante, na Corte Constitucional mais ativista do mundo ocidental e principal Casa Legislativa do país. O resultado da súmula, muito embora correto do ponto de vista da ética política, é conseqüência do uso indevido de um instrumento normativo que deveria estar reservado para os casos de revisão da atividade política dos demais Poderes da República. Em uma democracia, os fins — mesmo que nobres — nunca justificam os meios.

Revista Consultor Jurídico

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