Ato involuntário – Flatulência não é motivo para demissão, diz TRT-SP

por Daniel Roncaglia

Um funcionário que tenha o hábito de soltar gases durante o expediente pode ser demitido por justa causa? A sonora dúvida mereceu a atenção dos juízes da 4ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (São Paulo) em uma reclamação trabalhista julgada em dezembro de 2007.

A espirituosa resposta do juiz Ricardo Artur Costa e Trigueiros (relator) mostrou que, mesmo não seguindo as regras do bom costume, a flatulência é um ato que independe da vontade da pessoa e, por isso, não pode ter reflexos sobre o contrato de trabalho.

“A eliminação involuntária, conquanto possa gerar constrangimentos e, até mesmo, piadas e brincadeiras, não há de ter reflexo para a vida contratual. Desse modo, não se tem como presumir má-fé por parte da empregada, quanto ao ocorrido, restando insubsistente, por injusta e abusiva, a advertência pespegada, e bem assim, a justa causa que lhe sobreveio”, argumentou Trigueiros. E completou: “o organismo tem que expelir os flatos, e é de experiência comum a todos que, nem sempre pode haver controle da pessoa sobre tais emanações”.

O juiz Trigueiros explicou que “a flatulência constitui uma reação orgânica natural à ingestão de ar e de determinados alimentos com alto teor de fermentação, os quais, combinados com elementos diversos, presentes no corpo humano, resultam em gases que se acumulam no tubo digestivo e necessitam ser expelidos, via oral ou anal, respectivamente sob a forma de eructação (arroto) e flatos (ventosidade, pum)”.

Apesar de sua tolerante posição, o juiz faz uma ressalta. Em algumas hipóteses, flatos barulhentos e intencionais podem ensejar em uma justa causa. “Sua propulsão só pode ser debitada aos responsáveis quando comprovadamente provocada, ultrapassando assim o limite do razoável. A imposição deliberada aos circunstantes, dos ardores da flora intestinal, pode configurar, no limite, incontinência de conduta, passível de punição pelo empregador”, ensina o juiz.

Para embasar cientificamente seu voto, Trigueiros faz um estudo sobre o tema. Recorre a artigo do médico Dráuzio Varella para mostrar que a flatulência não significa doença. Segundo o médico, um adulto pode soltar gases vinte vezes por dia. “Expelir gases é algo absolutamente natural e, ainda por cima, ocorre mais vezes em pessoas que adotam dietas mais saudáveis. Desse modo a flatulência tanto pode estar associada à reação de organismos sadios, sendo sinal de saúde”, argumenta o juiz.

O juiz cita, inclusive, uma passagem do livro “O Xangô de Baker Street”, do humorista Jô Soares, para afirmar que os gases nem sempre são tolerados pelas convenções sociais. No livro, uma comprometedora flatulência de Dom Pedro II é assumida prontamente pelo personagem Rodrigo Modesto Tavares. Pelo heroísmo do súdito, o imperador lhe concede o título de Visconde de Ibituaçu (Vento Grande, em tupi-guarani).

A irrelevância da questão é comentada pelo próprio juiz no início de seu voto. Ele lembra que a Justiça não pode se ocupar de “miuçalhas” (de minimis non curat pretor). No entanto, ele justifica seu trabalho afirmando que, nas relações de emprego, pequenas arbitrariedades podem se tornar precedentes perigosos.

O voto demonstra que a questão da flatulência não é o único problema entre a empregada e a empresa. Ela foi acusada de conversar imoralidades com uma colega de trabalho. Mas o fato não foi comprovado. “A prova oral colhida demonstrou que a reclamante conversava sobre problemas pessoais da colega com a filha e o namorado desta, estando a autora a aconselhá-la”, anotou o juiz.

Segundo os autos, a empregadora tratava a funcionária com excesso de autoritarismo, lembrado os ambientes militares. “Através da oitiva de suas testemunhas trazidas a Juízo, as quais confirmaram que havia animosidades contra a reclamante, tanto por parte da sócia como da superior hierárquica, que tratavam-na com excessivo rigor.” A atitude da empresa valeu à funcionária uma indenização por danos morais de R$ 10 mil.

Processo 0.129.020.052.420.200-9

4ª. TURMA PROCESSO TRT/SP

RECURSO: ORDINÁRIO

RECORRENTE: xxxx

RECORRIDO: xxxx

ORIGEM: 2 ª VT DE COTIA

EMENTA: PENA DISCIPLINAR. FLATULÊNCIA NO LOCAL DE TRABALHO. Por princípio, a Justiça não deve ocupar-se de miuçalhas (de minimis non curat pretor). Na vida contratual, todavia, pequenas faltas podem acumular-se como precedentes curriculares negativos, pavimentando o caminho para a justa causa, como ocorreu in casu. Daí porque, a atenção dispensada à inusitada advertência que precedeu a dispensa da reclamante.

Impossível validar a aplicação de punição por flatulência no local de trabalho, vez que se trata de reação orgânica natural à ingestão de alimentos e ar, os quais, combinados com outros elementos presentes no corpo humano, resultam em gases que se acumulam no tubo digestivo, que o organismo necessita expelir, via oral ou anal.

Abusiva a presunção patronal de que tal ocorrência configura conduta social a ser reprimida, por atentatória à disciplina contratual e aos bons costumes. Agride a razoabilidade a pretensão de submeter o organismo humano ao jus variandi, punindo indiscretas manifestações da flora intestinal sobre as quais empregado e empregador não têm pleno domínio.

Estrepitosos ou sutis, os flatos nem sempre são indulgentes com as nossas pobres convenções sociais. Disparos históricos têm esfumaçado as mais ilustres biografias. Verdade ou engenho literário, em “O Xangô de Baker Street” Jô Soares relata comprometedora ventosidade de D. Pedro II, prontamente assumida por Rodrigo Modesto Tavares, que por seu heroísmo veio a ser regalado pelo monarca com o pomposo título de Visconde de Ibituaçu (vento grande em tupi-guarani).

Apesar de as regras de boas maneiras e elevado convívio social pedirem um maior controle desses fogos interiores, sua propulsão só pode ser debitada aos responsáveis quando deliberadamente provocada. A imposição dolosa, aos circunstantes, dos ardores da flora intestinal, pode configurar, no limite, incontinência de conduta, passível de punição pelo empregador. Já a eliminação involuntária, conquanto possa gerar constrangimentos e, até mesmo, piadas e brincadeiras, não há de ter reflexo para a vida contratual. Desse modo, não se tem como presumir má-fé por parte da empregada, quanto ao ocorrido, restando insubsistente, por injusta e abusiva, a advertência pespegada, e bem assim, a justa causa que lhe sobreveio.

Contra a respeitável sentença de fls.67/75, que julgou parcialmente procedentes os pedidos, complementada pela decisão de embargos declaratórios de fl.78, recorre, ordinariamente, a reclamada (fls.80/102), alegando nulidade por suspeição de testemunha, por cerceamento de defesa e insurge-se quanto à justa causa, saldo de salário, danos morais, piso da categoria e desvio de função, horas extras.

Contra-razões fls.122/127.

É o relatório.

VOTO

Conheço porque presentes os pressupostos de admissibilidade.

NULIDADE SOB ALEGAÇÃO DE SUSPEIÇÃO DA TESTEMUNHA

A recorrente ofertou contradita à oitiva da primeira testemunha da reclamante, Sra. Maria de Lourdes Silva Aguiar (fl.47), sob alegação de inimizade com os sócios da reclamada, porque fez lavrar, inclusive, boletim de ocorrência em face da ré, que levou à instauração de inquérito. A contradita restou indeferida pelo Juízo primário, ante as declarações prestadas pela testemunha em tela, no sentido de que não possui ressentimentos nem mágoa contra a ré e que lavrou o BO, por ter permanecido um dia presa numa sala na empresa, passando mal e “nada foi feito”.

Nas razões recursais, a ré ora acrescenta que o procedimento criminal instaurado pela testemunha foi arquivado, razão pela qual a reclamada ingressou com pedido de instauração de inquérito para apuração do crime de denunciação caluniosa.

Entende configurada a inimizade da testemunha, pretendendo a nulidade do julgado.

Sem razão.

A iniciativa da testemunha em lavrar boletim de ocorrência em face dos fatos ocorridos configura regular exercício de direito, dentro de seus estreitos limites e, portanto, não caracteriza ato lícito, nem retira a isenção de ânimo para depor.

O inquérito policial trata-se de procedimento administrativo prévio, para apuração de infrações penais, com vistas a fundamentar a denúncia ou queixa, de modo que possui natureza investigatória inquisitiva, não sujeita ao contraditório. Desse modo, as informações constantes do procedimento criminal anexado às fls.51/116, por si só, não têm o condão de comprovar a alegada inimizade da autora em face dos sócios da ré, constituindo resultado da apuração da notícia crime levada ao conhecimento da autoridade policial no regular exercício de direito da testemunha.

Não havendo provas cabais da alegada inimizade, ônus que incumbia à reclamada, válido o depoimento prestado, restando afastada a nulidade argüida.

Rejeito.

NULIDADE POR CERCEAMENTO DE DEFESA

Pretende a decretação de nulidade por cerceamento de defesa, em face do indeferimento de perguntas endereçadas às testemunhas, consoante rol informado à fl.86 do apelo, alegando serem necessárias à comprovação de sua tese defensiva.

Sem razão.

Convém a transcrição das perguntas indeferidas (fl.48):

“Indeferidas as seguintes perguntas formuladas pelo patrono da reclamada: ‘Em que consistem os serviços de manobrista? Se as funcionárias guiavam os carros para manobrá-las? e Se possuem habilitação? Se a Sra. Daniela foi agredida fisicamente pela Sra. Márcia Torres”

Em suma, as questões seriam direcionadas com vistas à comprovação da versão de defesa de que as punições endereçadas à autora foram regulares, pretendendo a validação da justa causa aplicada e a improcedência do pleito de danos morais.

Resumidamente, a reclamante, na inicial, alegou ser submetida a tratamento severo e desrespeitoso pela ré, incluindo punições, no intuito de forçá-la a pedir demissão ou aplicar-lhe justa causa. Em defesa, a reclamada confirmou as punições em face de insubordinação da autora, as quais foram corretamente aplicadas, culminando em sua dispensa justa.

Pois bem. As perguntas indeferidas, segundo a versão da ré, teriam por objetivo comprovar as ações irregulares da reclamante, no intuito de validar a regularidade das punições aplicadas e de sua dispensa justa, pelo que entende ter havido cerceamento de defesa.

Entretanto, não tem razão a reclamada, tendo em vista serem incontroversos, nos autos, os motivos ensejadores das punições aplicadas, tanto na inicial e defesa quanto na prova oral colhida, em especial, o depoimento pessoal das partes, quais sejam: (1) o fato de a reclamante ter soltado gases intestinais em dada oportunidade e (2) por ter-se retirado da sala, sem autorização, para ligar o ar condicionado a pedido de uma cliente.

Em que pese remanescer alguma controvérsia a ser analisada em relação às ofensas proferidas no episódio relacionado com o deslocamento da reclamante para ir ligar o ar condicionado, os principais fatos controvertidos nos autos foram satisfatoriamente elucidados e as perguntas indeferidas pelo Juízo primário não seriam imprescindíveis ao esclarecimento de qualquer controvérsia existente nos autos.

É bem verdade que todas as perguntas indeferidas foram direcionadas a esclarecer a ocorrência de insubordinação da autora, de modo a justificar a aplicação de punições e a dispensa justa. Todavia, os fatos ensejadores das punições são incontroversos, nada mais havendo a ser esclarecido a tal respeito.

O cerne, o âmago da questão posta nos autos é analisar se as punições aplicadas, em relação aos fatos, conforme relatados na inicial e defesa, foram regulares ou praticadas de forma abusiva e, portanto, injusta. Portanto, remanesce a valoração dos fatos relatados para se extrair a justiça ou injusta das penalidades aplicadas, sendo certo que tal juízo de valor é reservado ao juiz, na análise do conjunto probatório, nada havendo a ser acrescentado por testemunhas nesse sentido, que se limitam à comprovação dos episódios presenciados.

Desta forma, tenho que não houve cerceamento de defesa, mas apenas indeferimento de inquirição de testemunha sobre fatos incontroversos, ou seja, já provados por confissão da parte, em consonância com as disposições dos arts.400, I, e 334, II e III, ambos do CPC:

“Art.400. A prova testemunhal é sempre admissível, não dispondo a lei de modo diverso. O juiz indeferirá a inquirição de testemunhas sobre fatos:

I – já provados por documento ou confissão da parte

Art. 334. Não dependem de prova os fatos:

II – afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária;

admitidos, no processo, como incontroversos;

Pelo exposto, rejeito.

DA JUSTA CAUSA

Pugna a recorrente pela validade da justa causa imputada à autora.

Sem razão.

Como já salientado no tópico anterior, o cerne da questão é se os fatos ocorridos são autorizadores das punições aplicadas à autora ou não.

Afastam-se os argumentos da recorrente relativos ao ambiente harmonioso existente na reclamada, tanto física como espiritualmente, que afirma estar estampado nas fotos anexadas no volume em apartado, vez que o que se discute, nos presentes autos, é se as punições foram ou não corretamente aplicadas à reclamante. Ademais, a existência de instalações agradáveis e de momentos harmoniosos e festivos nas empresas nem sempre refletem a atmosfera laboral existente, que pode mostrar-se muito diversa, no dia-a-dia. Neste aspecto, as fotos fazem prova tão-somente dos bons momentos ali retratados, não socorrendo a reclamada em relação às questões sub judice.

Primeiramente, ao alegar justa causa para dispensa da autora, a reclamada atraiu para si o ônus probatório de suas alegações, nos termos do art.333, II, do CPC c/c art.818 da CLT, não se desincumbindo satisfatoriamente de seu encargo, vez que não trouxe qualquer testemunha a Juízo com vistas a corroborar sua versão defensiva (fls.45/48).

As provas documentais trazidas aos autos, consistentes em uma advertência e uma suspensão, por se tratarem de documentos particulares, geram presunção de veracidade juris tantum, cabendo prova em contrário, de modo que, com a inversão da atribuição do ônus à ré, em face da justa causa, incumbia-lhe a produção de provas que corroborassem seu conteúdo. A demandada não trouxe testemunhas que corroborassem a validade das punições aplicadas e sua versão defensiva quanto aos fatos que as ensejaram.

Além disso, a reclamada, em depoimento pessoal, informou que a advertência aplicada à reclamante foi motivada pelo fato de que esta “estava ‘soltando gases’ no horário de trabalho, na presença de outras colegas, que no momento, não se recorda; o fato foi presenciado pela depoente (fl.46). A reclamante e as testemunhas da autora confirmaram tal fato (fls.45/48), que se tem por incontroverso nos autos. Entretanto, impossível validar a aplicação de punição pelo ocorrido, ao menos nas circunstâncias reveladas pela prova.

Se por princípio, a Justiça não deve ocupar-se de miuçalhas (de minimis non curat pretor), na vida contratual, todavia, pequenas faltas podem acumular-se como precedentes curriculares negativos, pavimentando o caminho para a justa causa, como ocorreu in casu. Daí porque, torna-se necessário atentar à inusitada advertência, vez que esta se transformou em nódoa funcional que precedeu a dispensa da reclamante.

A flatulência constitui uma reação orgânica natural à ingestão de ar e de determinados alimentos com alto teor de fermentação, os quais, combinados com elementos diversos, presentes no corpo humano, resultam em gases que se acumulam no tubo digestivo e necessitam ser expelidos, via oral ou anal, respectivamente sob a forma de eructação (arroto) e flatos (ventosidade, pum).

Convém a transcrição de explanação técnica a respeito, para correta elucidação dos fatos, extraída do site do conceituado médico Drauzio Varella:

“http://drauziovarella.ig.com.br/arquivo/arquivo.asp?doe_id=38

Flatulência

Gases intestinais podem causar grande desconforto porque provocam distensão abdominal. Além disso, em determinadas circunstâncias, podem trazer constrangimento social.

O ar engolido ou os gases formados no aparelho digestivo podem ser expelidos por via oral (arroto) ou via anal (gases intestinais ou flatos). A maior parte deles, no entanto, é produzida no intestino por carboidratos que não são quebrados na passagem pelo estômago. Como o intestino não produz as enzimas necessárias para digeri-los, eles são fermentados por bactérias que normalmente ali residem. Esse processo é responsável pela maior produção e liberação de gases.

Em alguns casos, por fatores genéticos ou porque adotaram uma dieta saudável com pouca gordura, mas rica em fibras e em carboidratos, algumas pessoas podem produzir mais gases. No entanto, a maioria das queixas parte de pessoas que produzem uma quantidade que os gastrenterologistas considerariam normal. Estudos demonstram que, em média, um adulto pode expelir gases vinte vezes por dia”

Consoante explicações supra, depreende-se que expelir gases é algo absolutamente natural e, ainda por cima, ocorre mais vezes em pessoas que adotam dietas mais saudáveis. Desse modo a flatulência tanto pode estar associada à reação de organismos sadios, sendo sinal de saúde, como indicativa de alguma doença do sistema digestivo, como p. exemplo o meteorismo. De qualquer forma, trata-se de reação orgânica natural, sobre a qual as pessoas não possuem, necessariamente, o controle integral. O organismo tem que expelir os flatos, e é de experiência comum a todos que, nem sempre pode haver controle da pessoa sobre tais emanações.

Não se justifica assim, aplicação de punição de advertência à reclamante pelo ato de expelir gases no ambiente de trabalho, sob a presunção do empregador de que tal ocorrência configura conduta social a ser reprimida, ou de alguma forma atentatória contra a disciplina contratual ou os bons costumes. Certamente agride a razoabilidade a pretensão de colocar o organismo humano sob a égide do jus variandi, punindo indiscretas manifestações da flora intestinal sobre as quais empregado e empregador não têm pleno domínio.

Estrepitosos ou sutis, os flatos nem sempre são indulgentes com as nossas pobres convenções sociais. Disparos históricos têm esfumaçado as mais ilustres e insuspeitadas biografias. Verdade ou engenho literário, em “O Xangô de Baker Street” Jô Soares relata comprometedora ventosidade de D. Pedro II, prontamente assumida por Rodrigo Modesto Tavares, que por seu heroísmo veio a ser regalado pelo agradecido monarca com o pomposo título de Visconde de Ibituaçu (vento grande em tupi-guarani).

Apesar de as regras de boas maneiras e elevado convívio social pedirem um maior controle desses fogos interiores, sua propulsão só pode ser debitada aos responsáveis quando comprovadamente provocada, ultrapassando assim o limite do razoável. A imposição deliberada aos circunstantes, dos ardores da flora intestinal, pode configurar, no limite, incontinência de conduta, passível de punição pelo empregador. Já a eliminação involuntária, conquanto possa gerar transtornos sociais, embaraços, constrangimentos e, até mesmo, piadas e brincadeiras, como ocorreu com a reclamante, não há de ter reflexo para a vida contratual. De qualquer forma, não se tem como presumir qualquer má-fé por parte da empregada, quanto ao ocorrido durante o expediente laboral, de modo a ensejar a aplicação de advertência, que por tais razões, revelando-se injusta e abusiva a penalidade pespegada à obreira.

As alegações defensivas de que a segunda punição aplicada à reclamante decorreu do fato de estar conversando sobre fatos imorais com sua colega de trabalho também não foram objeto de comprovação pela reclamada. Ao contrário, a prova oral colhida demonstrou que a reclamante conversava sobre problemas pessoais da colega com a filha e o namorado desta, estando a autora a aconselhá-la. Como salientado pela própria ré, em depoimento pessoal (fl.46), as conversas eram permitidas no ambiente de trabalho, de modo que, não comprovada a imoralidade e qualquer incômodo decorrente do diálogo mantido entre a reclamante e sua colega de trabalho, a punição igualmente se revela injusta.

Por fim, a reclamada também não produziu provas das ofensas e da insubordinação da reclamante, referidas em defesa, ônus que lhe incumbia, como já asseverado, fatos estes ensejadores da justa causa que lhe foi imputada. A ausência de provas cabais, necessárias à configuração de justa causa, já é suficiente para afastá-la.

Além disso, a reclamante, a quem incumbia apenas a produção de contraprova, corroborou sua versão inicial através da oitiva de suas testemunhas trazidas a Juízo (fls.47/48), as quais confirmaram que havia animosidades contra a reclamante, tanto por parte da sócia como da superior hierárquica, que tratavam-na com excessivo rigor. A partir da injusta suspensão motivada pela conversa com a colega, já comentada, a reclamante passou a ter que pedir autorização para ações mínimas, como ir de uma sala a outra, de modo que qualquer deslize era suficiente para uma advertência ou suspensão, culminando com a sua dispensa por justa causa em razão de ter saído da sala onde se encontrava, sem pedir autorização, para atender a pedido de uma cliente para ligar o ar-condicionado.

A hipótese retratada nos autos, pelo caráter continuado, configura assédio moral praticado pela sócia da reclamada e pela superior hierárquica da autora que, juntas, uniram-se no afã de pressionar a autora, submetendo-a a vigilância discriminatória e tratamento opressivo em todos os seus passos, com vistas a aplicar-lhe sucessivas punições e assim pavimentar o caminho da justa causa.

A implantação de um ambiente repressivo e amedrontador, mais típico de ambientes militares, no caso sub judice, retrata forma de assédio moral que a doutrina estrangeira identifica como mobbing vertical descendente, ou simplesmente bossing, que comprometeu o ambiente de trabalho da reclamante, culminando com a sua dispensa através de uma justa causa inteiramente “fabricada” pelo empregador. Enfim, a justa causa mostrou-se de todo abusiva, devendo ser prestigiada a decisão de origem que a afastou.

Mantenho.

SALDO DE SALÁRIO

Com razão.

O depósito de R$ 86,88 comprovado no volume de documentos refere-se ao pagamento do valor líquido do saldo de salário de 11 dias consignado no TRCT.

Assim, reformo, para expungir da condenação o pagamento de 11 dias de saldo de salário, por já devidamente quitado.

DANOS MORAIS

Sem razão.

Como fartamente analisado no tópico precedente sobre a justa causa, os fatos comprovados nos autos revelaram a prática de atos ilícitos pela ré (aplicação de punições injustas, tratamento excessivamente rigoroso, caracterizando assédio moral) que provocaram sofrimento moral na autora que enseja a devida reparação civil pelos danos causados. O valor atribuído pelo Juízo primário (R$ 10.000,00) encontra-se de todo razoável, não merecendo qualquer reparo.

Mantenho.

DIFERENÇAS SALARIAIS – DESVIO DE FUNÇÃO

A bem da verdade, a questão se refere a equivalência salarial, já que, a princípio, desvio de função ocorre apenas quando há quadro de carreira na empresa.

Assiste razão à reclamada.

Em que pese haver situações em que a pretensão é cabível, no caso concreto, as funções acrescidas às de recepcionista, para as quais a reclamante foi contratada, não justificam um acréscimo salarial como pretendido. Tratam-se de tarefas como faxina e distribuição de panfletos. Apesar de não serem funções típicas de recepcionista, tais misteres refletem muito mais o sub-aproveitamento da empregada, do que a apropriação de serviços de natureza superior. Com o rebaixamento parcial de funções, a reclamante não sofreu prejuízo pecuniário direto.

Se algum prejuízo houve foi por parte do empregador, que pagava salário como recepcionista e se apropriava de misteres inferiores. A situação de inferiorização profissional da empregada poderia eventualmente ensejar uma reparação moral, que todavia, não foi objeto da ação. Ademais, é comum, em empresas de pequeno porte, um certo compartilhamento de tarefas de menor especialização ou qualificação, as quais passam a ser distribuídas genericamente, no intuito de colaboração seja entre colegas ou com o próprio empreendimento empresarial.

Não se tratando, pois, in casu, de tarefas que exigissem maior desenvoltura e conhecimento da empregada, ou representassem a execução de atividade superior, que na empresa ou no mercado encontrassem melhor remuneração, não se justifica o plus salarial pretendido. Vale ressaltar, por fim, que não há norma coletiva a prever acréscimo salarial pelo exercício de funções acumuladas.

Desta forma, reformo, para expungir da condenação o pagamento de diferenças salariais decorrentes do acréscimo de 30% pelo desvio de função e suas integrações em horas extras, férias mais 1/3, 13º salários, aviso prévio e FGTS com 40%.

HORAS EXTRAS

Sem razão.

A cópia do livro de ponto anexada no volume em apartado consigna horários “britânicos”, tornando imprestável a prova documental carreada pela empresa aos autos.

Os horários iguais ou com ligeiras variações repetitivas são impróprios como meio de comprovação de jornada, já que tais anotações não correspondem à realidade, restando claro terem sido lançadas por instrução do empregador, com o fito de emprestar-lhes credibilidade.

Tem sido freqüente a prática de alguns empregadores, de fazer intermitir ligeiras variações horárias, para mais ou para menos, a fim de conferir credibilidade aos controles e, assim, fugir ao enquadramento do tema no entendimento jurisprudencial pacífico da Corte Superior Trabalhista. Evidente que tal prática não tem o condão de afastar a incidência do padrão interpretativo consubstanciado na Súmula nº 338, inciso III,do C. TST. Ademais, a reclamante produziu prova oral corroborando os horários declinados na inicial, que merece ser acolhida, uma vez que a prova oral apresentada pela reclamada não foi suficientemente robusta para validar a prova documental, em si, já desmerecida de crédito.

A decisão primária merece ser referendada.

Mantenho.

Do exposto, conheço do recurso ordinário interposto, rejeito as preliminares e, no mérito, DOU PROVIMENTO PARCIAL ao apelo para expungir da condenação o pagamento de 11 dias de saldo de salário, por já devidamente quitado, expungir da condenação o pagamento de diferenças salariais decorrentes do acréscimo de 30% pelo desvio de função e suas integrações em horas extras, férias mais 1/3, 13º salários, aviso prévio e FGTS com 40%, tudo na forma da fundamentação que integra e complementa este dispositivo.

RICARDO ARTUR COSTA E TRIGUEIROS

Desembargador Relator

Revista Consultor Jurídico

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