por Elio Gaspari
A seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (filial da sacrossanta OAB) é incorrigível. Em 2007, anexou-se ao movimento “Cansei”, uma pitoresca manifestação de pessoas dispostas ao sacrifício peripatético das manifestações de rua. Além disso, enviou ao Tribunal de Justiça uma lista sêxtupla de candidatos ao lugar de desembargador com um aspecto burlesco: um deles havia sido reprovado dez vezes em concursos para o cargo de juiz. Agora está em litígio com a Defensoria Pública porque, desatendida no pleito pecuniário, contesta o direito do Estado de apontar advogados para ocupar uma função pública.
A Defensoria é um serviço pelo qual a viúva paga assistência jurídica para o andar de baixo. Como se trata de instituição recente, tem poucos quadros. Em 2007, a OAB passou a intermediar parte desse negócio por meio de um convênio. Em julho, ela pediu um reajuste escalonado de 1% a 10% acima da inflação (5,84%). A proposta foi rejeitada e os doutores suspenderam a indicação de defensores. Jogo jogado, duas entidades firmam um convênio, desentendem-se e cada qual segue seu caminho.
A OAB paulista não quer perder a intermediação, coisa de R$ 270 milhões no ano passado, e anuncia que vai aos tribunais. Boa idéia. A Defensoria sustenta que, com seus quadros, atendeu 850 mil cidadãos, gastando apenas R$ 75 milhões e já começou a cadastrar advogados. Apareceram 1.300 candidatos. Esses números são contestados, mas o miolo da história continua no mesmo lugar: a OAB quer o privilégio da manutenção de um serviço público nas funções de uma guilda profissional. Fica o contribuinte na pior das situações, a de ter que pagar pelo funcionamento de duas estruturas condenadas à superposição e, pior: ambas insinuam que a outra cobra demais pelo serviço que faz. Se ficar o bicho pega, se correr o bicho come.
A seccional paulista da Ordem é hoje um empreendimento milionário, com “uma estrutura física e humana grandiosa”. Seu orçamento de 2008 chegou a R$ 182 milhões. Em 2006, a Ordem se estendia por 248 Casas do Advogado espalhadas em todo o Estado, com as atribulações comuns à administração imobiliária. Além disso, está diretamente ligada a um programa de previdência privada alimentado pela contribuição obrigatória dos seus inscritos. Até aí tudo bem, mas, se um dia a sorte faltar a essa caixa, seria injusto dizer que a Ordem dos Advogados, aquela de Seabra Fagundes e Raymundo Faoro, meteu-se numa encrenca financeira. Até porque nenhum dos dois entendia de dinheiro. O negócio deles era o direito. (Isso para não se especular a hipótese inconcebível de ela tentar seduzir a Bolsa da Viúva).
Toda vez que as prerrogativas dos advogados são ameaçadas, algo de ruim está acontecendo, mas os doutores jogam carga demais nos ombros dos cidadãos. Pode-se aceitar que seus escritórios sejam invioláveis, caso eles não estejam sob investigação. É a eterna batalha do direito do indivíduo ameaçado pela prepotência do Estado. É demais pedir que uma mesma pessoa defenda também a privatização da Defensoria Pública. Nesse caso, o que há é outra batalha, aquela pelo bolso do contribuinte.
Tudo ficaria mais fácil se as funções fossem simplificadas: advogado é advogado, a Ordem é a Ordem e o serviço público é do Estado.
[Artigo publicado na Folha de S.Paulo, desta quarta-feira, 30 de julho]
Revista Consultor Jurídico