Barreira necessária – Volume de ações impede STF de revogar a Súmula 691

por Aline Pinheiro

Por trás dos dois mais discutidos casos jurídicos do momento — a extradição de Salvatore Cacciola e a prisão e soltura de Daniel Dantas —, está uma desconhecida da população, mas bastante familiar e temida pelos advogados: a Súmula 691 do Supremo Tribunal Federal. A regra determina que o STF não deve julgar pedido de liminar em Habeas Corpus contra decisão liminar de tribunal superior.

Editada há quase cinco anos, a súmula tem sido constantemente deixada de lado pelo Supremo e muitos defendem que ela tem de ser revogada. Quando os ministros entendem estar diante de flagrante ilegalidade, concedem o pedido a despeito da súmula.

No caso de Dantas, o seu pedido de Habeas Corpus preventivo (feito antes de ele ser preso) só chegou ao STF porque os tribunais abaixo negaram. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, aplicou o entendimento da Súmula 691 do STF: não analisou o pedido de Dantas porque questionava decisão monocrática do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Por isso, o HC chegou ao Supremo.

Já a ligação de Salvatore Cacciola com a súmula é mais direta. Foi, pode-se dizer, por culpa dele que ela foi editada. Em 2000, o ex-banqueiro, que estava preso, foi beneficiado por uma liminar em Habeas Corpus dada pelo ministro Marco Aurélio. O mesmo pedido já tinha sido feito ao Superior Tribunal de Justiça, que negou a liminar. Logo após sair da prisão, Cacciola embarcou para a Itália e, quando foi cassada a liminar de Marco Aurélio, não pôde ser preso. Nem a sua extradição foi acolhida porque Cacciola é cidadão italiano. Ele só foi preso no ano passado porque estava em Mônaco.

Após suportar diversas críticas à decisão de Marco Aurélio, os ministros do Supremo aprovaram a Súmula 691, em 24 de setembro de 2003, com o seguinte texto: “Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de Habeas Corpus impetrado contra decisão do relator que, em Habeas Corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar”.

Mas a Súmula 691 é, em muitos casos, deixada de lado pelo tribunal que a aprovou. Em 2005 — dois anos depois do seu nascimento —, os ministros já discutiam se deveriam manter ou revogar a regra. Hoje, é cada vez mais comum ver ministro superando a súmula é analisando pedido de Habeas Corpus contra liminar por considerar que há flagrante ilegalidade. A ministra Ellen Gracie é a exceção que ainda se mantém estritamente fiel à formalidade.

“A Súmula 691 é um amesquinhamento da garantia constitucional do Habeas Corpus e o melhor que o Supremo Tribunal Federal tinha a fazer era seu enterro, sem pompa e sem circunstância”, considera o advogado criminalista Alberto Zacharias Toron. Foi ele o responsável pelo pedido de Habeas Corpus feito em 2005, que levou o STF discutir se revogava a súmula ou não.

O pedido estava na 1ª Turma, mas foi remetido ao Plenário para que a validade da súmula fosse analisada. Toron, que defendia o publicitário Roberto Justus, pedia a superação da jurisprudência. O relator da matéria, ministro Cezar Peluso, propôs a revogação da súmula com o argumento de que ela representa condescendência com a ameaça à liberdade de locomoção dos cidadãos.

Para ele, o Supremo não pode se recusar a corrigir uma ilegalidade só porque a decisão ilegal ainda é provisória. “Essa característica da decisão [provisória] não tem repercussão alguma no tema da viabilidade do pedido de ordem ao Supremo, porque nem a Constituição nem as normas processuais subalternas condicionam a propriedade do uso do remédio extremo do Habeas Corpus à circunstância de não ser provisória ou transitória a violência, atual ou virtual, á liberdade física do cidadão”, disse o ministro na ocasião.

Peluso, no entanto, foi acompanhado apenas pelo ministro Marco Aurélio, que sempre se mostrou contrário à súmula. A 691 foi mantida. Mas, a partir daí, começou uma nova fase. No julgamento, ficou decidido que a jurisprudência poderia ser desconsiderada sempre que houvesse flagrante ilegalidade. No caso, os ministros afastaram a súmula para trancar ação penal contra o publicitário.

Nas palavras de Peluso, o que foi decidido é o seguinte: “Mantemos a Súmula e, a partir de hoje, fingimos que ela não existe”. Foi o que aconteceu no caso de Roberto Justus e de outros famosos, como Paulo Maluf e seu filho, Flávio. Foi o que aconteceu também agora no caso de Daniel Dantas.

Dique judicial

A Súmula 691 não foi até agora revogada por receio de que o STF, que já julga mais de 100 mil processos por anos, fique ainda mais atabalhoado. “Por que o tribunal ainda não revogou a Súmula? É que, aí, ele abre a porta para qualquer Habeas Corpus”, explicou o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes. “No entanto, o tribunal vem flexibilizando a súmula sempre que enxerga uma ilegalidade”, ponderou.

Lá em 2005, quando os ministros discutiram a manutenção ou não da regra, a preocupação da avalanche de recursos que ela poderia causar foi o grande argumento dos ministros contrários à sua revogação. Dois dele, no entanto, não estão mais na corte — Carlos Velloso, hoje substituído pelo Ricardo Lewandowski, e Sepúlveda Pertence, que deu lugar a Menezes Direito. O meio termo encontrado, então, foi manter a Súmula, mas relativizar.

“A 691 viola a Constituição Federal. É inconstitucional”, afirma o advogado criminalista Luís Guilherme Vieira. O argumento da advocacia é que a jurisprudência perpetua ilegalidades de outros tribunais. Mais ainda: ao desconsiderar a Súmula 691 em alguns casos, o STF está revogando-a na prática, já que precisa analisar o mérito para saber se tem ilegalidade que justifique a sua relativização ou não.

A sua manutenção, portanto, parece mais um aviso aos advogados de que o STF não vai suprimir instância e analisar todo e qualquer pedido. Para alguns, a atitude é um erro. Mas, como se conforma Luís Guilherme Vieira: “Cabe ao STF errar ou acertar por último. Neste caso, está errando”. É o ônus da hierarquia judicial.

Revista Consultor Jurídico

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