por Janaina da Silva Resende
De acordo com o princípio da universalidade dos rendimentos dos contribuintes pessoas jurídicas, a Lei 9.249/95, em seus artigos 25 e 27, posteriormente alterados pelas Leis 9.532/97 e 9.959/00, introduziu na legislação tributária brasileira as normas de imposto de renda das pessoas jurídicas sobre lucros auferidos no exterior.
A tributação alcança os rendimentos auferidos pelo contribuinte na exploração de sua atividade direta (filiais e sucursais) e o lucro decorrente das explorações indiretas (controladas e coligadas). Em se tratando de controlada e coligada, a lei estabeleceu que os lucros auferidos no exterior serão adicionados ao lucro líquido da empresa coligada ou controlada, domiciliada no Brasil “quando ocorrer o pagamento ou crédito dos referidos lucros”.
Assim, a legislação brasileira que seguia o denominado princípio da territorialidade, segundo o qual era tributada apenas a parcela do lucro que tivesse fonte de produção em território brasileiro, com o advento da Lei 9.249/95, adotou o sistema de tributação da renda global (universal) da pessoa jurídica, que resulta na inclusão na base interna do lucro gerado no exterior.
O parágrafo 2º do artigo 43 do CTN[1], acrescentado pela Lei Complementar 104/2001, determina que o imposto de renda incidirá sobre a disponibilidade econômica ou jurídica da renda, e que a lei fixará o momento em que se torna disponível, no Brasil, a renda oriunda de investimento estrangeiro.
Atendendo à previsão contida no parágrafo 2º do artigo 43 do CTN, a Medida Provisória 2.158-35/2001 dispôs, no artigo 74, que “os lucros auferidos por controlada ou coligada no exterior serão considerados disponibilizados para a controladora ou coligada no Brasil na data do balanço no qual tiverem sido apurados”, ou seja, o referido artigo considera ocorrido o fato gerador no momento em que a empresa controlada ou coligada no exterior publica o seu balanço patrimonial positivo.
Deste modo, o artigo 74 da MP 2.158-35/2001 majorou as bases de cálculo do imposto de renda e da contribuição social sobre o lucro líquido, prevendo como lucros disponibilizados, os valores declarados nos balanços patrimoniais, independentemente do pagamento ou do crédito em conta representativa de obrigação da empresa no exterior, de acordo com o Regulamento de Imposto de Renda (RIR/99, artigo 394, parágrafos 3º e 4º)[2]. E alterou os conceitos de disponibilidade econômica e jurídica prevista no caput do artigo 43 do CTN.
No que se refere ao conceito de disponibilidade econômica e jurídica, os juristas se dividem em três correntes, a saber, corrente unificadora, corrente dicotômica atenuada e corrente dicotômica radical.
Entretanto, apenas faz-se importante esclarecer, neste momento, que não se deve confundir disponibilidade econômica com disponibilidade financeira da renda ou dos proventos de qualquer natureza. Enquanto esta última se refere à imediata “utilidade” da renda, a segunda está atrelada ao simples acréscimo patrimonial, independentemente da existência de recursos financeiros. Portanto, poderíamos dizer que o incremento patrimonial verificado no balanço de uma empresa coligada ou controlado no exterior representaria a majoração, proporcionalmente à participação acionária, do patrimônio da empresa coligada ou controlada no Brasil. Neste caso, haveria disponibilidade econômica sem, contudo, ter ocorrido disponibilidade financeira, que se fará presente apenas quando do aumento nominal do valor das ações ou do numero de ações representativas do capital social. (RE – STJ nº. 983.134- RS)
A inconstitucionalidade do artigo 74 da MP 2158-35/2001 está sendo examinada no Supremo Tribunal Federal[3] em razão da ADI 2.588, proposta pela Confederação Nacional da Indústria[4], que alega a inconstitucionalidade do parágrafo 2º do artigo 43 do CTN, acrescentado pela LC 104/2001, e do artigo 74, caput e parágrafo único, da MP 2.158-35/2001. Pelos votos já proferidos na ADI, tem-se uma noção de como é tormentosa a questão em torno da constitucionalidade do disposto no artigo 74 da MP 2.158-35/2001.
A ministra Ellen Grace[5] votou no sentido da inconstitucionalidade apenas quanto à expressão “às empresas coligadas”; já os ministros Nelson Jobim e Eros Grau votaram pela total constitucionalidade do dispositivo; enquanto que os ministros Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence e Ricardo Lewandowski votaram pela sua total inconstitucionalidade.
Os doutrinadores também já se manifestaram sobre o assunto.
Para Sacha Calmon Navarro Coelho:
“A Medida Provisória 2.158-35/2001 contém sérios defeitos jurídicos, a saber: desconsidera a personalidade jurídica da controlada ou coligada no exterior e acresce ao fato gerador da coligada ou controlada no Brasil os lucros havidos no exterior tão logo erguido o balanço; infringe o artigo 146, II “a” da CF/88, e cria uma disponibilidade ficta, pois pretende tributar por ficção, retroativamente, parcela significativa dos contribuintes do imposto de renda; repristina o regime da Lei 9.249/95, claramente revogado, no particular pela lei 9.532/97; levando avante a inconstitucional delegação que lhe fez a Lei Complementar 104/2001, delega a competência invalidamente recebida ao regulamento, (…) o regulamento não podia dispor sobre base de cálculo e contribuintes do IR (CF, art. 146, III “a”); e fere o principio da irretroatividade das leis tributárias (artigo 150, III, “a” e “b”, da CF/88)”[6].
Segundo Luis Augusto da Silva Gomes:
“É flagrantemente ilegal e inconstitucional, uma vez que além de ferir os conceitos de disponibilidade jurídica e econômica previstos no caput do artigo 43 do CTN, também utiliza-se da presunção de uma riqueza até então inexistente. (…) O disposto da MP em debate considera como auferição de lucro tributável o momento de sua contabilização no balanço da empresa, e não no exato momento da efetiva e real disponibilidade econômica ou jurídica prevista no CTN”.[7]
Por sua vez Hiromi Higuchi defende a constitucionalidade do artigo 74 da MP 2.158-35/2001. Segundo ele: “Entendemos que o artigo 74 da MP 2.158-35/2001 é perfeitamente aplicável para tributar, no Brasil, no mesmo ano-calendário da apuração dos lucros pela controlada ou coligada no exterior, por vários motivos. (…). Com o acréscimo do parágrafo 2º no artigo. 43 do CTN, entendemos que o STF não vai declarar inconstitucional o artigo 74 da MP 2.158-35/2001. (…) Se o Brasil tributar o lucro da coligada ou controlada no exterior e não tributar, a título de rendimento, o valor efetivamente distribuído, o imposto pago no exterior sobre a distribuição não poderá ser compensada no Brasil[8],[9].
Portanto, mesmo diante das discussões de ordem constitucional, que ainda não decidiram à matéria, nem a retiraram do ordenamento jurídico brasileiro, o artigo 74 da MP 2158-35/2001 é inconstitucional, uma vez que fere os conceitos de disponibilidade econômica e jurídica previstas no caput do artigo 43 do CTN; na Constituição Federal, artigo 150, parágrafo 7, ao consagrar uma ficção jurídica ou uma presunção juris et de jure; e nos princípios da capacidade econômica e do não confisco, quando altera o momento da ocorrência do fato gerador do imposto de renda criando uma disponibilidade ficta, como antecipação do fato gerador futuro.
Ademais, com a simples apuração do lucro líquido na data do encerramento do período base, ainda é prematuro afirmar que a empresa sediada no Brasil já possua a disponibilidade que revela o fato gerador. O encerramento do período base aponta o lucro, mas ainda não permite sua tributação pelo Fisco, uma vez que não realizado o fato gerador ou imponível a efetiva disponibilidade jurídica ou econômica.
Outro ponto que merece ser observado é o da violação ao princípio da capacidade contributiva (artigo 145, parágrafo 1º, da CF/88). Nele, há referência de que os impostos, sempre que possível, terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte. Se não há, de fato, lucro ou renda disponível – apenas apurada no balanço – não é possível admitir que exista capacidade contributiva. Para (GOMES, 2002, p. 91): “O Poder Executivo, através da Medida Provisória em debate, está utilizando-se da presunção de uma riqueza até então inexistente, para fins da tributação do imposto de renda e da contribuição social sobre o lucro, em desrespeito aos princípios constitucionais da Carta Política de 1988. (…) Esta hipótese é inadmissível na medida em que desencadeará um falso sinal de capacidade de contribuir para a União Federal.”[10]
Conclui-se, com efeito, que a referida MP é inconstitucional, pelos argumentos acima expostos, de confronto com vários princípios da Carta de 1988. E, além disso, sua ilegalidade está, em especial, na inobservância da disponibilidade econômica e jurídica, prevista no caput do art. 43 do CTN, no flagrante descumprimento aos princípios da capacidade contributiva, do não confisco, da irretroatividade das leis tributárias (art. 150, inciso III, “a” e “b”, da CF/88), bem como na invalidade da matéria reservada à lei complementar, (art. 146, inciso III, “a” da CF/88) ser tratada por outro mecanismo jurídico.
Referências bibliográficas
AMARO, Luciano. Curso de Direito Tributário. Coordenado por Ives Gandra da Silva Martins. Imposto de Renda Regime Jurídico. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro; DERZI, Marisabel Abreu Machado. Tributação pelo IRPJ e pela CSLL de lucros auferidos por empresas controladas ou coligadas no exterior – inconstitucionalidade do art. 74 da Medida Provisória 2.158-35/01. Revista Dialética de Direito Tributário nº. 130. São Paulo: Editora Dialética 2006.
GOMES, Luiz Augusto da Silva Gomes. O imposto de renda, o art. 74 da MP nº. 2.158/2001 e o conceito de disponibilidade econômica ou jurídica do art. 43 do CTN. Revista Dialética de Direito Tributário nº. 77 São Paulo: Editora Dialética 2002.
HIGUCHI, Hiromi; Fábio Hiroshi; Celso Hiroyuki. Imposto de Renda das Empresas, Interpretação e Prática. São Paulo: Editora IR Publicações, 2007.
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[1] Art. 43 § 2º do CTN: “Na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto referido neste artigo”.
[2] O Regulamento do Imposto de Renda prevê que os lucros serão considerados disponibilizados para a empresa no Brasil na data do pagamento ou do crédito em conta representativa de obrigação no exterior. E considera creditado o lucro quando ocorrer à transferência do registro do valor para a conta da empresa domiciliada no exterior, e considera como pago o lucro quando ocorrer o crédito em conta bancária em favor da controlada ou coligada no Brasil.
[3] Tal matéria também foi analisada no Superior Tribunal de Justiça, quando examinou a ilegalidade do artigo 7º da IN SRF 213/2001 no Recurso Especial Nº. 983.134 – RS.
[4] Na peça inicial, a Confederação Nacional da Indústria entende que este dispositivo reintroduz disciplina já declarada inconstitucional pelo plenário do STF, no julgamento da validade do artigo 35 da Lei nº. 7.713/88, violando o conceito constitucional de renda. E aponta as inconstitucionalidades dos dispositivos como: a) violação ao artigo 62 da CF, ante a absoluta falta de urgência para justificar o emprego de medida provisória; b) violação aos artigos 153, III, e 195, I “c”, da CF, ante a exigência de imposto e contribuição sobre a situação que não configura renda ou lucro; e c) violação às alíneas a e b do artigo 150, III, da CF, vez que o parágrafo único do artigo 74 da MP atacada pretende tributar lucros acumulados relativos a períodos anteriores a sua edição e também relativos ao mesmo exercício financeiro em que adotada a MP.
[5] Ellen Gracie salientou que “não haveria posição de controle da empresa situada no Brasil sobre a sua coligada, localizada no exterior, não se podendo falar em disponibilidade pela coligada brasileira dos recursos auferidos pela coligada estrangeira, antes da efetiva remessa desses lucros para a coligada brasileira ou, pelo menos, antes da deliberação que se faça no âmbito dos órgãos diretores da coligada no exterior sobre a destinação dos lucros do exercício”. Para ela, não se pode igualar o caso das coligadas, para efeito de tratamento tributário, com o que acontece com as filiais e sucursais, cujos lucros se consideram disponibilizados para a matriz na data do balanço no qual tiverem sido apuradas.
Já o Ministro Marco Aurélio, entende que a MP desrespeita a proibição da bi-tributação frente aos tratados internacionais assinados pelo Brasil, eis que a leis tributárias exigem que a renda ingresse no Brasil e aqui incidam os tributos; e ainda esclarece que há falta do requisito da urgência para a promulgação da medida provisória.
[6] COÊLHO, Sacha Calmon Navarro; DERZI, Marisabel Abreu Machado. Tributação pelo IRPJ e pela CSLL de lucros auferidos por empresas controladas ou coligadas no exterior – inconstitucionalidade do art. 74 da Medida Provisória nº. 2.158-35/2001. Revista Dialética de Direito Tributário nº. 130. São Paulo: Editora Dialética 2006. p. 141.
[7] GOMES, Luiz Augusto da Silva Gomes. O imposto de renda, o art. 74 da MP nº. 2.158/2001 e o conceito de disponibilidade econômica ou jurídica do art. 43 do CTN. Revista Dialética de Direito Tributário nº. 77 São Paulo: Editora Dialética 2002. p. 88.
[8] HIGUCHI, Hiromi; Fábio Hiroshi; Celso Hiroyuki. Imposto de Renda das Empresas, Interpretação e Prática. São Paulo: Editora IR Publicações, 2007. p. 125 e 126.
[9] Hiromi Higuchi entende que a redação do § 2º no art. 43 do CTN é infeliz, pois seria melhor se tivesse dito receitas, rendimentos ou lucros gerados no exterior. Assim sendo: “o art. 43 do CTN dispõe que o imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza, tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica e jurídica de renda ou proventos, mas seu § 2º criou uma exceção para as receitas ou rendimentos do exterior”. p. 125.
[10] GOMES, Luiz Augusto da Silva Gomes. O imposto de renda, o art. 74 da MP nº. 2.158/2001 e o conceito de disponibilidade econômica ou jurídica do art. 43 do CTN. Revista Dialética de Direito Tributário nº. 77 São Paulo: Editora Dialética 2002. p. 91.
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