O debate sobre a proibição ou não do uso controlado do amianto é repleta de argumentos louváveis de ambas as partes interessadas. São teses embasadas em estudos científicos e com sólidos argumentos jurídicos. No meio dessa batalha, estão os ministros do Supremo Tribunal Federal, que decidirão, no mérito, se a Lei 12.684/07, do estado de São Paulo, que proíbe o amianto crisotila, é constitucional.
No dia 4 de junho, por sete votos a três, os ministros do STF derrubaram a liminar do ministro Marco Aurélio, que suspendia os efeitos da lei. Apesar dessa sinalização dos ministros, que consideraram a questão dos riscos à saúde em sua decisão, o advogado e ministro aposentado do Supremo Maurício Corrêa acredita na possibilidade de mudança na posição do tribunal. Corrêa é advogado da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), que entrou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a lei paulista.
A liminar foi derrubada porque os ministros do STF não dispõem de informações suficientes sobre a questão, acredita Corrêa. Ele sustenta que os estudos científicos não são conclusivos sobre a segurança de fibras alternativas. “Não é adequada a proposta de substituição de um material amplamente conhecido cientificamente e para o qual já existem controles de processos e equipamentos de proteção, por outros que representam pontos de interrogação”, afirma.
Para o ex-ministro, o Supremo irá invadir a competência do Executivo e do Legislativo se declarar constitucional a lei que proíbe o amianto com base no argumento dos riscos à saúde. O tribunal, argumenta o advogado, foi apenas questionado sobre a constitucionalidade formal de uma lei estadual que entra em conflito com norma federal. “Não cabe ao Judiciário aferir esse risco à saúde, não é esse o papel do juiz e do STF.”
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ConJur — Quais as conseqüências da decisão do Supremo sobre a lei que proíbe o amianto em São Paulo?
Maurício Corrêa — É preciso esclarecer que esse julgamento refere-se apenas à liminar deferida pelo ministro Marco Aurélio. O tribunal preferiu não ratificar a decisão monocrática e, assim, a lei paulista voltou a ter eficácia. A deliberação é precária. Ela não pode ser considerada definitiva, o que somente ocorrerá no julgamento de mérito. Enquanto isso, em São Paulo fica proibido o uso do amianto crisotila, permanecendo válida a autorização dada pela Lei Federal 9.055/95 para o resto país. Mesmo em São Paulo pode haver discussão sobre qual lei prevalece. Mas isso terá que ser resolvido caso a caso pelo Judiciário.
ConJur — A decisão indica a tendência dos ministros de proibir o amianto. É possível reverter o quadro?
Maurício Corrêa — Tenho grande esperança. Com a instrução do processo e a oitiva das partes interessadas, os ministros terão outra visão do tema e decidirão de maneira diversa. No caso específico houve um desvio processual que limitou a informação disponível.
ConJur — Qual foi esse desvio?
Maurício Corrêa — A confederação questionou a lei paulista apenas sob a ótica de sua inconstitucionalidade formal, alegando que São Paulo estava disciplinando normas já reguladas pela União. Esta é que detém a preferência normativa segundo as regras constitucionais de competência concorrente previstas no artigo 24 da Constituição. No entanto, provocado pelos interessados na proibição do amianto, o STF mudou sua análise para questão de mérito. Tangenciou o objeto da ação e passou a analisar se o amianto crisotila é ou não prejudicial à saúde. O Supremo concluiu que os possíveis riscos justificariam a manutenção da lei paulista. Fez isso sem ouvir o outro lado. Se as entidades que defendem o amianto soubessem, a questão seria debatida sob visão diversa. Elas apresentariam suas razões e demonstrariam que não se sustentam afirmativas que embasam posições assumidas pelos juízes.
ConJur — A mudança de enfoque era previsível?
Maurício Corrêa — É a primeira vez que isso ocorre no STF. A ADI discute apenas o seguinte: com a lei federal em vigor, pode um estado legislar sobre produção e consumo com uma norma oposta à fixada pela União? A resposta que se esperava do tribunal era sim ou não. E o mais provável é que fosse um sim, como indicavam precedentes em casos análogos e até idênticos. Por exemplo, o caso da lei do Paraná que queria limitar o uso de sementes transgênicas. O STF disse que não podia, porque afrontava a lei federal sobre o tema. Em momento algum se cogitou debater a constitucionalidade da norma da União, pois não era objeto da ADI. Não se discutiu na oportunidade se as sementes transgênicas eram prejudiciais à saúde. Por isso, não era previsível essa mudança de orientação do Supremo sobre o amianto. Mesmo assim, ele resolveu debater a constitucionalidade da lei federal, que não é objeto da ADI. No mínimo, o julgamento deve ser suspenso para que a Confederação se manifeste sobre o novo viés. Haveria maior respeito ao devido processo legal e ao contraditório. Fazendo uma metáfora ao gosto do presidente Lula: é como se o árbitro resolvesse mudar as regras no intervalo jogo, mas avisasse só a um dos times.
ConJur — O que poderia justificar uma mudança no posicionamento?
Maurício Corrêa — São aspectos que não ficaram suficientemente esclarecidos. Um dos argumentos jurídicos deduzidos foi o de que a Convenção 162 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário, permitiria a proibição do amianto crisotila. A trajetória de aplicação da convenção foi apresentada de modo incompleto. Diz o artigo 3º da norma que a legislação nacional deve prever medidas preventivas dos riscos à exposição profissional ao amianto. A Lei 9.055/95 e o Decreto 2.350/97 fazem exatamente isso, e com extremo rigor. Isso sem falar nas normas coletivas de trabalho, nas quais patrões e empregados estabelecem os padrões de controle e segurança mais eficazes que os internacionais. O mesmo artigo 3º estabelece que a legislação nacional deverá ser submetida à revisão periódica por causa do desenvolvimento técnico e científico.
ConJur — Mas o governo está discutindo essa questão?
Maurício Corrêa — O Executivo, que em última análise é responsável pela saúde da população, criou uma Comissão Interministerial para estudar o assunto. Composta pelos ministros do Trabalho, Saúde, Meio Ambiente, Minas e Energia e Desenvolvimento, a comissão não chegou a um consenso sobre o banimento do amianto. Certamente porque não há razão plausível, seja porque o uso controlado do amianto é seguro, seja porque não existe alternativa inofensiva à saúde. De todo modo, um relatório foi enviado à Casa Civil para continuidade dos estudos. Além disso, tramitam no Congresso mais de uma dezena de projetos dando novos contornos ao tema. Portanto, está sendo cumprido o compromisso assumido pelo Brasil de rever periodicamente a legislação nacional sobre amianto.
ConJur — E a possibilidade de se substituir o amianto?
Maurício Corrêa — O artigo 10 da convenção fala ainda que, quando viáveis do ponto de vista técnico, a legislação nacional promoverá a substituição do amianto por produtos alternativos. Mas desde que eles sejam definidos como inofensivos ou menos perigosos. A avaliação científica deve ser feita pela autoridade competente, que não é o STF. Aqui está o perigo na trilha iniciada pelo Supremo, pois as fibras alternativas não podem ser consideradas inofensivas. Em 2005, a Organização Mundial da Saúde reuniu pesquisadores em Lyon, na França. O relatório decidiu que não há conclusões finais sobre a indicação científica de uma substância que possa substituir o amianto sem riscos à saúde. É preciso de mais pesquisas para afirmações conclusivas. Há relatos de grande incidência de câncer em trabalhadores das fábricas que utilizam fibras substitutas como os de fábricas têxteis de Quebec pesquisadas em 1994. Diante desta situação, os países signatários da convenção não são compelidos a aplicar o artigo 10.
ConJur — É possível dizer que o amianto é inofensivo?
Maurício Corrêa — Não estamos afirmando isso. A fibra de amianto crisotila — assim como outras fibras respiráveis — pode se tornar perigosa se não for utilizada de forma responsável. Se observados os cuidados previstos em normas internacionais — no Brasil, elas são mais rigorosas — o potencial dano à saúde é perfeitamente eliminável. Não é adequada a proposta de substituição de um material amplamente conhecido cientificamente e para o qual já existem controles de processos e equipamentos de proteção, por outros que representam pontos de interrogação. Vale trocar o certo pelo duvidoso? Certamente não. Ninguém, em sã consciência, defenderia o uso do crisotila se ele não tivesse controle. Diversos países permitem o uso controlado e seguro do crisotila. Como exemplo, temos Estados Unidos, Canadá, Rússia, Emirados Árabes, Índia e Ucrânia. Se é verdade que 42 países já baniram o amianto, outros 150 o utilizam. Mesmo em países da Europa, que têm norma proibitiva, o crisotila continua sendo usado para fins específicos, como a produção de cloro. Isso demonstra que não há a certeza quanto à lesividade do amianto. São meias verdades que acabam virando verdades. Os ministros do STF farão uma ampla reflexão sobre todas essas variáveis e decidirão a partir de uma gama completa e real de informações.
ConJur — Há estudos que mostram os riscos do amianto, enquanto há outros que informam o contrário. Não existe algo mais palpável que traria uma decisão mais segura?
Maurício Corrêa — Por trás desse tema há uma enorme batalha comercial, na qual interesses econômicos contrapostos apresentam-se evidentes. De um lado está o mercado de fibrocimento de amianto e, de outro, o das fibras alternativas. Até as pesquisas científicas merecem análise cuidadosa, pois podem estar a serviço de um grupo. Mas está em andamento um amplo estudo no Brasil que pode emprestar aos ministros o embasamento técnico seguro. Trata-se da pesquisa intitulada Exposição ambiental ao asbesto: avaliação do risco e efeitos na saúde. Ela foi feita por quatro universidades brasileiras (USP, Unifesp, Unicamp e UFG) e duas canadenses (McGill e British Columbia). O trabalho visa subsidiar o governo sobre o assunto. Busca-se a consolidação do conhecimento científico sobre o tema, segundo a realidade brasileira. A pesquisa dará ao governo, Congresso e ministros do Supremo um instrumento científico real e isento, fundamental para a tomada de decisão. Com o choque de estudos contraditórios, não é razoável que o Brasil se precipite e assuma o risco desnecessário de acolher um ou outro.
ConJur — Quais são as conseqüências no caso da proibição definitiva do amianto?
Maurício Corrêa — Na remota hipótese de isso ocorrer, a conseqüência imediata será econômica, com o fechamento de fábricas, em especial as de telhas e caixas d’água. Haverá redução de empregos, diminuição na arrecadação de impostos e o fechamento da terceira maior mina do mundo em Minaçu (GO). O estado também terá que indenizar os donos dos direitos de exploração da reserva. Também me preocupam os desdobramentos dessa decisão em médio prazo. O Supremo atuará como legislador positivo usurpando atribuição do Legislativo. Certamente será instado a proibir de imediato o consumo de cigarro, inquestionavelmente cancerígeno. Assim como as atividades de trabalho que envolvam benzeno, formol, chumbo e outras mais perigosas que o amianto crisotila. Passaríamos a viver um estado de insegurança jurídica insustentável, provocando toda espécie de riscos imponderáveis na atividade econômica. Não cabe ao Judiciário aferir esse risco à saúde, não é esse o papel do juiz e do STF. Cabe às autoridades executivas e aos representantes do povo, que com o auxílio dos cientistas, dar a palavra final. O Congresso é o foro adequado para decidir esse tema.
Revista Consultor Jurídico