por Ricardo Amaral
Um dos mais experientes e astutos políticos da República, Tancredo Neves não gostava de conversas longas ao telefone. “Telefone serve no máximo para marcar encontro, de preferência no lugar errado”, ensinava. Para quem foi ministro de um governo cercado por golpistas (o segundo de Getúlio Vargas) e chefe da oposição parlamentar na ditadura dos militares, o conselho de Tancredo transbordava prudência. Ele sabia que era alvo de grampos plantados por adversários e pela polícia política. Era a cautela da resistência. Surpreendente — e inaceitável — é que sua recomendação permaneça atual, no 20º aniversário da Constituição democrática.
Quando o ministro da Justiça declara que devemos nos conformar com o fato de que nossas conversas telefônicas estão sendo escutadas, como fez Tarso Genro há duas semanas, é sinal de algo muito errado acontecendo no país. É estarrecedora a informação de que juízes brasileiros autorizaram a polícia a montar 409 mil grampos “legais” em 2007. De acordo com a CPI dos Grampos da Câmara dos Deputados, esse número vem crescendo de forma exponencial desde 1996, quando o Congresso aprovou uma lei para regulamentar a escuta autorizada — uma exceção que a Constituição prevê para ajudar a polícia, o Ministério Público e a Justiça a obter provas contra criminosos.
Os números mostram a banalização de um recurso que só deveria ser usado pela autoridade em último caso. A partir da ordem judicial para violar o sigilo de um só aparelho telefônico, uma engenhoca tecnológica batizada de Guardião tece uma rede de escuta capaz de envolver simultaneamente até 2 mil telefones que por acaso tenham falado com o número original. Só na Operação Satiagraha, que monitorou o círculo do banqueiro Daniel Dantas, a Polícia Federal ouviu 1.400 telefonemas por dia e produziu mais de 7 mil páginas de conversas transcritas. A maior parte disso, bisbilhotice sem valor algum para a inteligência ou para a Justiça.
Há quem considere os superpoderes do Guardião indispensáveis para enfrentar as sofisticadas organizações de traficantes e dos criminosos de colarinho branco. A história de sucessos da própria PF desmente essa balela. Em 1995, o delegado Paulo Lacerda, hoje diretor da Abin, desvendou a fraude das 900 contas falsas do extinto Banco Nacional sem escutar um só telefonema alheio. O caso Nacional, onde se investigou a origem de um rombo de US$ 6 bilhões, ainda é o maior crime financeiro do Brasil e um dos maiores do mundo. Para resolvê-lo, doutor Lacerda valeu-se de sua própria experiência como ex-bancário e contou com o apoio do perito contábil Geraldo Bertolo. Tiveram de suar a camisa, mas obtiveram provas robustas para levar à Justiça os controladores do banco, da família Magalhães Pinto, uma das mais poderosas do país.
O melhor capítulo da Operação Satiagraha (o flagrante da tentativa de suborno de um delegado, que provocou a prisão de Humberto Brás, braço direito de Daniel Dantas, e pode levar o próprio banqueiro a juízo) também não foi obra do Guardião da PF. O presidente da CPI dos Grampos, Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), ele mesmo um policial de carreira, sabe que em muitos casos seus colegas estão começando os inquéritos pelo pedido de escuta, para só no fim estabelecer se havia algum crime ou criminoso a ser investigado. Tornaram-se dependentes do grampo, como os viciados da cocaína. Não conseguem mais fazer direito o dever de casa: investigar com rigor, colher indícios e provas para a instrução do processo.
Para não ser injusto com o ministro da Justiça, registre-se que ele enviou ao Congresso uma proposta para melhorar a legislação de 1996. É mais eficaz que repetir conselhos acacianos. Tarso Genro quer mais rigor dos juízes nas autorizações, que hoje podem ser concedidas até mesmo por um pedido verbal do delegado ou do promotor. Também quer responsabilizar autoridades que vazam o que escutaram e submeter juízes que agem mal a uma corregedoria. São boas idéias para abalar a indústria do grampo, especialmente as propostas para punir autoridades quando abusam de suas prerrogativas. Policiais orelhudos e juízes que se consideram iluminados não melhoram o combate ao crime. Apenas pioram a democracia.
[Artigo publicado pela revista Época, no dia 8 agosto de 2008]
Revista Consultor Jurídico