por Edson Pereira Belo da Silva
1. Considerações iniciais
O cartão coorporativo (ou Cartões de Pagamentos do Governo Federal) não tem sido utilizado para o fim pelo qual foi implementado pela administração pública. Pelo menos é o que se depreende do noticiário político. Ele foi criado para facilitar o pagamento de pequenas despesas decorrentes da aquisição de serviços e produtos (combustíveis, material de escritório, viagens, hospedagem, etc.). Ou seja, com os gastos imediatos que dispensam “licitação” ou “tomada de preço” (Lei Federal 8.666/1993), além de permitir saques em dinheiro. Com isso, aparentemente, tornou-se mais transparente os gastos públicos, bem como se pode dá mais efetividade à ação governamental.
Milhares são os cartões corporativos nas mãos dos agentes públicos, notadamente 11.510 só em 2007, segundo noticiaram o Ministério do Planejamento e a Controladoria Geral da União à Agência Brasil. A fiscalização, consoante artigo 71 da Constituição Federal e Lei Federal 8.443/1992, fica a cargo dos respectivos Tribunais de Contas dos entes federativos (Estados, Distrito Federal e Municípios), os quais recebem ou não os comprovantes dos gatos e saques então realizados. E é aí que reside o problema.
Se há irregularidades no uso de tais cartões — e as provas nesse sentido são robustas, tanto que uma ministra já deixou a pasta em razão disso e uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito já se avizinha —, não temos dúvidas que isso é muito bem alimentado pela manifesta ausência de fiscalização daquele órgão competente ou, se ela existe, é feita pifiamente. Também, pelo número inacreditável de cartões em uso, tornou-se praticamente impossível fiscalizar todos os gatos e saques dos funcionários contemplados.
Aliás, inúmeras são as atividades das Cortes de Contas, sobretudo a da União, que tem jurisdição em todo território nacional e é composta por nove ministros (artigo 73, da CF). Saliente-se, contudo, que um terço dos referidos ministros são nomeados pelo Presidente da República e dois terços pelo Congresso Nacional (§ 2.º, incisos I e II, do dispositivo constitucional citado).
O que mais chama, na verdade, à atenção não são as compras de produtos ou serviços (tapioca, chocolate, ursinho de pelúcia, manutenção de mesa de bilhar, aluguel de carros para curtir as férias) que não guardam relação com a atividade que o servidor público exerce, mas sim os saques em dinheiro com cartão, cujo montante chegou a 58 milhões, o qual representa cerca 75% do valor total gasto com cartão em 2007 (78 milhões), conforme revelou o Controlador Geral da União ao portal da Agência Brasil.
A CGU, também exerce o papel fiscalizador dos gastos com os cartões corporativos, mas a sua parcialidade é manifesta por ser um órgão diretamente ligado ao chefe do Poder Executivo Federal, daí não gozar ela de credibilidade e poder suficiente para “cortar na própria carne”.
Dos 58 milhões sacados com os cartões o ano passado, ninguém, ninguém mesmo, é capaz de afirmar que eles foram todos devidamente comprovados perante os órgãos fiscalizadores e destinados ao interesse social ou ao bem comum. São milhares de cartões corporativos e de saques, muita necessidade no Brasil afora, muitos interesses políticos em jogo, tudo isso e muito mais deve mesmo inviabilizar a justificativa legal dos gastos.
2. Peculato continuado
De início, há que se deixar assente o conceito legal de funcionário público, que é dado pelo artigo 327, caput, e § 1º, do Código Penal: “Considera-se funcionário público, para efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública. Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, a quem trabalha para empresas prestadoras de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública”.
Portanto, para caracterização desse delito é indispensável que o sujeito ativo (o autor do delito) seja funcionário público, no amplo conceito mencionado acima. Por sua vez, no caso em comento, somente aqueles no exercício da função pública é que portam e desfrutam dos cartões corporativos; de sorte que eventual “apropriação” ou “desvio” dos valores sacados, ou aquisição de produtos ou serviços para satisfação de interesse particular, enfim, desprovido de qualquer fim público, caracteriza o tipo penal descrito no artigo 312 do Código Penal.
A vítima (o sujeito passivo) no crime de peculato é o Estado e a entidade de direito público, haja vista se tratar de delito contra a administração pública, nesse contexto abrangidas as autarquias e as entidades paraestatais, que são as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as fundações instituídas pelo poder público.
Peculato, de acordo com o eterno magistério do saudoso Nelson Hungria, “é o fato do funcionário público que, tendo em razão do cargo, a posse de coisa móvel pertencente à administração pública ou sob a guarda desta (a qualquer título), dela se apropria, ou a distrai do seu destino, em proveito próprio ou de outrem” Três são as modalidades: (i) no peculato-apropriação, o verbo apropriar-se significa assenhorear-se, tendo como o objeto material o dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular de que tem o agente a posse em razão do cargo; (ii) quanto ao peculato-desvio, o funcionário público dá ao objeto material aplicação diversa da que lhe foi determinada, em benefício próprio ou de outrem; (iii) já no peculato-furto, o funcionário público não tem a posse do objeto material e o subtrai, ou concorre para que outro o subtraia, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário.
Consuma-se o delito com a efetiva apropriação, desvio ou subtração do objeto material. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal assim manifestou-se: “O crime de peculato se consuma no momento em que o funcionário se apropria do dinheiro, valor ou bem móvel de que tem a posse em razão do cargo e desvia em proveito próprio ou de terceiro” (RT 533/466). No mesmo diapasão: Superior Tribunal de Justiça, em RT 792/578 e EJSTJ 30/259, JTACRIM 67/519. Admite-se também a “tentativa” em tal delito.
Ademais, o autor do delito necessita agir com “dolo”, nas sobreditas modalidades, o qual consiste na vontade livre e consciente de apropriar-se, desviar, subtrair ou concorrer para a subtração, visando sempre proveito próprio ou alheio.
Do outro lado, a forma culposa do peculato também é prevista pelo Código Penal, mais especificamente no § 2º, do seu artigo 312. Age culposamente, o funcionário público que, por negligência, imprudência ou imperícia, permite que haja apropriação ou desvio, subtração ou concurso para esta. Esse também é o entendimento jurisprudencial (TJSP, RT 350/187, 488/312).
Alia-se ao tipo penal de “peculato” a continuidade delitiva prevista no artigo 71 do mesmo diploma legal repressor – matéria essa atinente à aplicação da pena —, uma vez que cada cartão corporativo efetuou diversos saques em dinheiro, assim como adquiriram inúmeros produtos e serviços, aparentemente, para satisfação de interesse particular ou necessidade pessoal de determinados servidores públicos.
A continuidade do delito de peculato ocorre quando “o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços”. Este é o texto do artigo 71, do CP.
Em outros termos, no caso dos cartões corporativos, o crime de peculato continuado poderia ocorrer, ou está ocorrendo, caso os servidores estivessem se apropriado do dinheiro sacado e/ou dos serviços e produtos adquiridos com tais cartões, em mais de uma ação. Por exemplo, se determinado funcionário público efetua saques de R$ 500, em horas ou dias seguidos, ou alternados, apropriando-se destes valores, intencionalmente, estará praticando peculato em continuação ou vários peculatos; pelo que ele responderá por um só delito dessa espécie, tendo, contudo, um aumento de pena de um sexto a dois terços, caso seja condenado.
A sanção penal prevista para o delito de peculato, na foram dolosa, é dois a doze anos de reclusão (artigo 312, do CP), e multa, acrescida do aumento de pena (artigo 71, caput, do CP) mencionado no parágrafo anterior; ao passo que para a forma culposa do mesmo crime, o Código Penal prevê pena de três meses a um ano de detenção.
O Supremo Tribunal Federal, por seu turno, tem se manifestado, em diversos casos, pela admissibilidade do delito de peculato continuado. Note-se: “O peculato é crime que admite a continuidade delitiva” (RT 546/450, RTJ 97/1294). Na mesma linha, são os entendimentos do Superior Tribunal de Justiça (EJSTJ 27/126) e do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (RT 625/271, rjtjsp 18/397 e 22/479). Desta forma, resta pacificada a questão em referência pela jurisprudência.
Vejamos outra circunstância relevante. Se o funcionário público acusado de apropriação ou desvio de dinheiro ou outro bem móvel, para evitar processo judicial ou administrativo, ou assédio da mídia, resolve devolver a quantia ou bem da qual se apropriou ou desviou não desfaz a conduta delituosa ou lhe diminui a pena, nem mesmo se ele restituir aos cofres públicos, com correção monetária e juro, antes do recebimento de eventual denúncia ofertada pelo Ministério Público.
A nossa Suprema Corte, assim também tem entendido: “O ressarcimento do dano não extingue a punibilidade do peculato doloso. O que importa nesse crime não é só a lesão patrimonial, mas, igualmente, a desmoralização a que fica exposta a Administração Pública” (STF, RT 510/451). Note-se ainda: “A só devolução da soma apropriada não exclui o tipo subjetivo do delito (o dolo). A caracterização do peculato doloso não reclama lucro efetivo por parte do agente” (STF, RT 605/309).
Já o Superior Tribunal de Justiça não destoa desta posição suprema: “No peculato, a restituição do valor desviado não importa, por si só, no afastamento do ‘animus rem sibi habendi’ (a intenção de possuir a coisa como própria), até porque para a caracterização do tipo penal do artigo 312 é irrelevante a efetiva obtenção da vantagem ilícita” (EJSTJ 37/307).
Nesse contexto, também não se pode desprezar a figura penal do peculato mediante erro de outrem, prevista no artigo 313, do Código Penal, também denominada pela doutrina de “peculato-estelionato”. Aqui, a conduta do funcionário público consiste em apropriar-se – apossar-se – de dinheiro ou qualquer outra utilidade que, no exercício do cargo, recebeu por erro de outrem. A pena para este delito é de um a quatro anos de reclusão, e multa.
3. Conclusão
O rol de compras inúteis, supostamente para o fim social do Estado, que, na realidade, nada dizem respeito ao dono do poder, o povo (artigo 1º, parágrafo único, da CF), é de estarrecer o mais simples dos mortais. Faz com que sintamos vergonha de sermos honestos, parafraseando Rui Babosa: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto”.
Sob a nosso simplória ótica, a “farra” dos governos com os cartões corporativos não é apenas uma questão correcional que deve ser pautada pela Administração Pública. Muito pelo contrário. Esse escândalo necessita, urgentemente, de ser investigado pela Polícia, pois, pelo os elementos notórios ou conhecidos por meio de maciça divulgação da mídia, há fortes indícios da existência do delito de peculato (apropriação, desvio ou subtração), sobretudo do peculato continuado.
Os portadores dos mencionados cartões, milhares de servidores públicos, cujos quais apresentaram algumas irregularidades, inclusive àquelas extraídas do portal da Transparência Brasil, devem ser indiciados (investigados) em inquérito policial, bem como ouvidos pela “futura” CPMI.
De igual forma, o Ministério Público, que se diz dono da virtude de ser o “defensor da sociedade”, deveria, no mínimo, instaurar inquéritos civis — a teor do que dispõe o artigo 129, inciso III, da CF — para também colher mais elementos de provas, tudo no intuito de ajuizar as respectivas ações civis públicas e de improbidade administrativas para restituir ao erário o que dele foi, supostamente, apropriado, desviado ou subtraído por aqueles servidores que usaram irregularmente os Cartões de Pagamentos dos respectivos Governos.
Tratar mais essa questão, de aparente “corrupção corporativa”, em tese, que envolvem partidos políticos e governos de vários níveis, somente no âmbito administrativo, é, no mínimo, prevaricar. Ou, ainda, reforçar a máxima de que “governo não investiga governo, só os que não estão governo”.
Nos “governos corporativos”, todas as pessoas têm o seu “cartão”, desde que elas estejam alinhadas politicamente com o sistema. A maioria, esmagadora, possui um limite de saque pífio. A minoria, privilegiada e invejada, não tem limites.
Com efeito, parodiando Caetano Veloso, “alguma coisa está mesmo fora da ordem nacional”. E fica, então, no ar uma pergunta que não quer calar: como investigar o “escândalo dos cartões corporativos”, se os altos saques em dinheiro, com os mesmos cartões, efetuados pelos membros do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos órgãos correcionais e policiais estão sendo criticados e podem, também, serem alvos das investigações?
Finalmente, o peculato continuado (em tese), tipificação penal mais adequada ao caso em testilha, parece que não cessará.
Revista Consultor Jurídico