Caso Pimenta Neves – Ninguém pode ser advogado sem idoneidade moral

por Raul Haidar

Nesta segunda-feira, 22 de setembro, os conselheiros da OAB-SP devem decidir se o jornalista Pimenta Neves pode ou não ser advogado. Aparentemente ele reúne as condições previstas no artigo 8º da Lei 8.906: tem capacidade civil, é bacharel em Direito, eleitor, etc.

Mas há quem sustente que, condenado por assassinato, não teria ele idoneidade moral, o requisito exigido no inciso VI daquele artigo, cujo § 4º estabelece: “Não atende ao requisito de idoneidade moral aquele que tiver sido condenado por crime infamante, salvo reabilitação judicial.”

Qualquer lei subordina-se à Constituição Federal. Estamos num regime democrático de direito, “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais”, como se vê pelo preâmbulo da Carta. Ora, o artigo 5º, inciso LVII, uma das cláusulas consideradas pétreas, garante que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal que o tenha condenado, sendo de conhecimento público que aquela imposta no caso ainda está pendente de recurso.

Amparadas no texto constitucional, entendem algumas pessoas que deva ser aceita a inscrição, inclusive invocando a inexistência de pena de caráter perpétuo (inciso XLVII, letra “b”), enquanto um dos comentaristas da notícia aqui estampada na sexta-feira (19/9) pretende estabelecer comparação com outras situações, inclusive com a dos advogados que são suspensos por falta de pagamento das anuidades. Outros tecem críticas ácidas e irônicas à OAB. Parece que “descer a lenha” na OAB virou esporte…

Um dos que comentaram a notícia, por exemplo, fala na possibilidade de o sr. Pimenta Neves se tornar advogado e ser indicado para o quinto constitucional. Ignora o comentarista que, com mais de 65 anos de idade, isso seria impossível, pois para a indicação são necessários no mínimo 10 anos de advocacia, o que seria completado só depois que ele tivesse mais de 75 anos. Outra condição é a ilibada reputação, um pouco mais específica que a idoneidade moral, o que implicaria na recusa do Tribunal em aceitar a indicação, caso a OAB, tomada de insanidade coletiva, o indicasse.

Um procurador do município, por outro lado, diz não ver “nenhum impedimento” para a inscrição do sr. Pimenta na OAB. O impedimento está claramente previsto na lei: o não preenchimento do requisito de idoneidade moral, como adiante demonstramos.

Nós advogados temos o dever básico de conhecer nosso Estatuto e nosso Código de Ética, pois se trata de matéria essencial na faculdade e invariavelmente integra o Exame de Ordem, além de serem normas de observância obrigatória em nosso cotidiano.

De início, deve ser desconsiderado o comentário que entende injusta a suspensão de quem deixa de pagar as anuidades. O inadimplemento é infração disciplinar previsto em lei (art. 34, XXIII) punível com suspensão (art. 37, I, § 2º). Aliás, com a arrecadação das anuidades são mantidas as atividades da Caixa de Assistência, que incluem auxílios financeiros aos advogados em dificuldades, aos quais as anuidades podem ser suspensas ou dispensadas.

A OAB-SP tem sido ao longo de sua história muito tolerante com os inadimplentes. Isso pode ser entendido como espírito de fraternidade, mas prejudica toda a profissão quando se amplia de forma exagerada, além de ser injusto para com os que pagam regularmente.

Com relação à questão central aqui examinada, parece-nos necessário examinar com cautela o texto da lei que os conselheiros devem cumprir à risca, sob pena de serem acusados de prevaricação. Nos termos do artigo 48 da Lei 8.906, os integrantes do Conselho da OAB exercem “serviço público relevante” e suas decisões não podem ser derivadas de interesses pessoais, mas apenas do correto cumprimento da legislação em vigor.

Haverá presunção de inocência que possa favorecer quem foi condenado, ainda que por decisão pendente de recurso, se, como é público e notório, o réu confessou e, mais que isso, sua confissão espontânea foi utilizada como atenuante da pena? Tal questão só pode ser respondida por quem tenha tido acesso aos autos, além de ser especialista em Direito Penal e mesmo assim depois de profundos estudos.

Também resta outra questão a ser examinada: o cometimento de crime, por si só, implica em inidoneidade moral? Existe, afinal, o tal “crime infamante”?

Ao procurarmos o conceito de IDONEIDADE MORAL encontramos na Enciclopédia Saraiva de Direito: “É o conjunto de virtudes ou qualidades morais da pessoa que faz com que esta seja bem conceituada na comunidade em que vive, em virtude do reto cumprimento dos deveres e dos bons costumes.”

Parece-nos que aí está o cerne da questão. Pode ser “bem conceituada na comunidade em que vive” a pessoa que tenha cometido o crime pelo qual o jornalista Pimenta Neves foi condenado?

A decisão do Conselho da OAB-SP será muito difícil. Deverá levar em conta a observância estrita dos limites da lei, mas não poderá ignorar as implicações éticas que o caso envolve. Por isso mesmo, será indispensável que se busque inspiração nos casos já julgados pelo Conselho.

Já houve, por exemplo, negativa de inscrição a um estagiário que jamais havia sido condenado por sentença judicial definitiva, mas que se considerou sem a necessária idoneidade moral. Tratava-se de pessoa com vastíssima folha corrida, que havia feito um verdadeiro “passeio” por quase todos os artigos do Código Penal, chegando mesmo a fraudar seu próprio casamento, mantendo em erro a família de sua noiva. Não fora condenado, mas à unanimidade a OAB não o autorizou a tornar-se estagiário. Até esta data, felizmente, não há inscrição dessa pessoa em nossa entidade.

Por outro lado, o Conselho Federal da OAB, no processo 3.987/90/PCA, decidiu que: “Configura inidoneidade moral a exoneração de cargo ou função, a bem do serviço público, mesmo que não tenha havido conclusão do processo criminal.” (Revista da OAB, 65/186). Mas na OAB-SP já foram inscritas pessoas demitidas nessa condição ao comprovarem que, apesar de tudo, gozavam de bom conceito na comunidade em que viviam.

Numa outra ocasião, um bacharel que havia expedido mensagens ameaçadoras contra os ministros do Supremo Tribunal Federal e que teve uma representação contra sua inscrição de advogado ofertada pelo próprio presidente da OAB-SP, por também conseguir provar o bom conceito de que desfrutava na comunidade, teve sua inscrição deferida.

A OAB não é uma associação ou um clube cujos diretores, conselheiros ou associados podem recusar novos sócios. Trata-se de serviço público sui generis e qualquer pessoa, preenchidos os requisitos da lei, pode tornar-se advogado. Trata-se de exercício de profissão e tem a ver com o sustento da pessoa e seus dependentes. A inscrição só pode ser negada em situações muito especiais.

Outro aspecto a ser examinado é se estamos diante do tal “crime infamante” que não apenas impede a inscrição do bacharel, como também autoriza a exclusão do advogado que o tenha praticado (Lei 8.906, art. 38, inciso II).

Infamante, na definição do léxico, é o que infama, que é capaz de infamar, que tira a fama. RODRIGO FONTINHA (Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Editorial Domingos Barreira, Porto, Portugal, sem data) registra que “infame” é “Sem (boa) fama; que perdeu a reputação honrosa; vil; repugnante; abjecto; que pratica infâmias”.

Registra, ainda, que “infamar”, do Latim “infamare”, significa “tirar ou procurar tirar a fama a (uma pessoa ou coisa personificada); difamar; desacreditar; vexar com infâmias; tornar-se infame, pelas más ações praticadas; desacreditar-se; perder a boa reputação; desonrar-se”.

Nesse conceito, o crime praticado pelo jornalista seria infamante: motivo torpe, impossibilidade de a vítima defender-se, etc. Mas a doutrina tem registrado que: “…não existe, em nosso Direito Penal, a qualificação de infamante, para qualquer delito. Fala-se, e muito, em crime infamante, mas não há tipificação alguma que conduza a uma certeza quanto a esta qualificação….Pensamos que dificilmente algum Conselho Seccional possa negar a inscrição a algum interessado com base neste dispositivo. Melhor fora dizer-se simplesmente “condenado por crime a cuja pena deva ser cumprida em regime de prisão fechada, etc.” – Poderá, entretanto negar-se a inscrição sob a alegação de inidoneidade moral, configurada pela prática de crime pelo qual o interessado foi condenado.” (ORLANDO A. CORRÊA, APIO C. L. ANTUNES, JAYME P. DA SILVA e MARCO TULIO DE ROSE, “Comentários ao Estatuto da Advocacia…”, AIDE EDITORA, Rio de Janeiro, 1997, páginas 65/66).

O julgamento desta segunda-feira é importante. Tanto assim, que a negativa de inscrição depende da decisão de dois terços dos conselheiros. O parágrafo 3º do artigo 8º da Lei 8.906 admite que “qualquer pessoa” pode suscitar a questão da inidoneidade moral.

Não é necessário que seja advogado a pessoa que suscite o incidente de inidoneidade moral para pedir a negativa da inscrição, pois, como já afirmamos, a OAB é um serviço público. Tanto assim, que o artigo 44 do nosso Estatuto coloca como primeira finalidade da instituição: “defender a Constituição, a ordem jurídica do estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”.

Quando o bacharel não mantém íntegro o seu bom nome, a sua idoneidade moral, não se lhe pode permitir a inscrição como advogado. Não se trata de pena de caráter perpétuo, pois, cumprida a pena, admite-se a inscrição caso o interessado seja judicialmente reabilitado.

Para quem argumente que exigir a reabilitação, neste caso, seria impedir para sempre o exercício da profissão, deve-se lembrar que uma pessoa que deseja inscrever-se como advogado depois de 35 anos da conclusão do curso provavelmente não tenha verdadeiro interesse em advogar.

Também parece pouco provável que o interessado esteja a depender economicamente do exercício profissional da advocacia para sua sobrevivência. Ao que parece, já aposentado, ele tem rendimentos suficientes. Poderá, ainda, retornar ao jornalismo, profissão cuja lei não é tão rigorosa quanto o Estatuto da OAB e na qual ele tem amplo conhecimento e por certo alguns amigos.

Revista Consultor Jurídico

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