Caberá ao ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal, definir, na próxima quarta-feira (18/9), se o tribunal admitirá o julgamento de Embargos Infringentes na Ação Penal 470, o processo do mensalão. A sessão desta quinta-feira (12/9) foi encerrada diante de um empate: cinco ministros a favor do julgamento do recurso e outros cinco, contra.
Ao final da sessão, Celso de Mello disse que não sente qualquer pressão para proferir o voto de desempate e que isso é inerente às responsabilidades do cargo e da função de ministro do Supremo. O decano afirmou a jornalistas que já se manifestou sobre o cabimento de Embargos Infringentes na sessão do dia 2 de agosto de 2012, quando o tribunal discutiu o desmembramento do caso — clique aqui para ler.
Na ocasião, os acusados contestaram o fato de que, com o julgamento pelo Supremo, não haveria o duplo grau de jurisdição. Ou seja, não teriam direito ao recurso. Ao votar contra o desmembramento em agosto do ano passado, o ministro afirmou: “O STF, em normas que não foram derrogadas, e que ainda vigem, reconhece a possibilidade de impugnação de decisões do plenário desta corte em sede penal. Não apenas os Embargos de Declaração, como aqui se falou, mas também os Embargos Infringentes do julgado, que se qualificam como recurso ordinário dentro do Supremo Tribunal Federal, na medida em que permitem a rediscussão da matéria de fato e a reavaliação da própria prova penal”.
Com a declaração, o decano indica que deverá votar pelo acolhimento da tese que admite o julgamento de Embargos Infringentes. Assim, 11 condenados poderão contestar as condenações nas quais tiveram ao menos quatro votos pela absolvição. Três condenados por lavagem de dinheiro podem ter o direito de rediscutir seus casos. São eles Breno Fischberg, João Cláudio Genu e João Paulo Cunha. Outros oito poderão rediscutir suas condenações pelo crime de formação de quadrilha: José Dirceu, José Genoino, Delúbio Soares, Marcos Valério, Ramon Hollerbach, Cristiano Paz, Kátia Rabello e José Roberto Salgado, todos condenados por seis votos a quatro.
Se realmente acolhidos os infringentes, há a possibilidade de um décimo segundo recurso. A defesa de Simone Vasconcelos pretende contestar a dosimetria pelas condenações por lavagem de dinheiro (cinco anos de prisão) e evasão de divisas (três anos, cinco meses e 20 dias). Isso porque, nesses casos, ela teve quatro votos pela aplicação de penas menores às que foram determinadas.
Para metade dos ministros, a Lei 8.038/1990, que regulamentou o trâmite de processos no Superior Tribunal de Justiça e no STF, não revogou o inciso I do artigo 333 do Regimento Interno do Supremo, que prevê expressamente a possibilidade de a defesa ingressar com Embargos Infringentes.
O texto fixa o seguinte em seu artigo 333: “Cabem Embargos Infringentes à decisão não unânime do Plenário ou da Turma: I — que julgar procedente a ação penal. (…). Parágrafo único — O cabimento dos embargos, em decisão do Plenário, depende da existência, no mínimo, de quatro votos divergentes, salvo nos casos de julgamento criminal em sessão secreta”. O Regimento foi recepcionado pela Constituição de 1988 e ganhou força de lei ordinária. Mas em 1990 veio a Lei 8038/90 para regulamentar o trâmite processual no Supremo. E a norma silencia sobre a possibilidade de Embargos Infringentes.
Dessa forma, para os ministros Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski, diante da omissão da lei, continua a valer a regra prevista no Regimento Interno. Já os ministros Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Marco Aurélio entendem que a lei revogou tacitamente a norma regimental.
Princípio da isonomia
A sessão desta quinta começou com a manifestação da ministra Cármen Lúcia, que votou pela rejeição da admissibilidade do recurso. Cármen começou esclarecendo que não havia se manifestando anteriormente a favor da rejeição, como supostamente sugeria um voto seu mencionado em Plenário no dia anterior. A ministra fez questão de dizer que não discutira a subsistência ou não do dispositivo, mas que havia escolhido por rejeitá-lo em um caso específico, por força de um julgamento de um Habeas Corpus.
A despeito do aparte, Cármen Lúcia alinhou-se com os ministros que votaram pela rejeição da admissibilidade dos embargos. Para tanto, a ministra amparou-se no argumento de que o direito processual é objeto de uma lei nacional e, portanto, subordinada à reserva legal. Como a Lei 8.038/90 não tratou do direito processual e não exauriu a matéria sobre o cabimento dos recursos, a norma prevista no Regimento Interno deve ser revogada se for incompatível com a nova realidade. E para ministra, a regra prevista no regimento é incompatível porque o benefício da recorribilidade via Embargos Infringentes não pode ser estendida também aos tribunais de Justiça e aos tribunais regionais federais.
Cármen citou o exemplo hipotético de dois réus com direito à prerrogativa de foro, um no STF e outro em um tribunal de Justiça. Como o segundo não tem direito ao privilégio, o réu julgado no Supremo não deveria dispor do benefício, em favor do princípio constitucional da isonomia, já que a própria Carta diz que o direito processual é nacional. Para a ministra, ao aceitar a admissibilidade do recurso, o STF daria margem a um “sistema dúplice”, que agrediria assim a unidade processual imposta pelo artigo 22 da Constituição Federal.
Em contraponto à manifestação de Cármen Lúcia, o ministro Ricardo Lewandowski observou em seu voto que a diferença entre outras instâncias e o caso em julgamento no Supremo é justamente que esta é a única instância em que se desdobrará o julgamento da AP 470. Lewandowski afirmou também que, na dúvida sobre a prevalência do recurso, deve predominar o princípio da “milenar tradição ocidental” do in dubio pro reu, “espelhada em um sem número de tratados internacionais”, disse.
“A aceitação dos infringentes permite a derradeira oportunidade de corrigir erro de fato e de direito, sobretudo porque se encontra em jogo o bem mais precioso da pessoa depois da vida que é seu estado libertário”.
Tamanho do mundo
Em um longo preâmbulo, sem entrar direto na matéria do que estava sendo discutido em plenário, o ministro Gilmar Mendes apelou para o fato de o julgamento se estender por quase 70 dias no julgamento de mérito. Ao contrário de sua atuação ao longo do processo, com poucas e pontuais manifestações de sua parte e quase sempre acompanhando integralmente o relator, Mendes disse que o tribunal estava com a “pauta hipotecada” em virtude da duração do julgamento do mensalão.
O ministro se referiu ainda às discussões preliminares que, segundo ele, se renovaram em demasia, porque o debate sobre a prerrogativa de foro e o desdobramento da ação foi abordado em diversos agravos que tomaram duas ou três sessões da corte no início do julgamento, ainda em 2012. Mendes criticou os comentários de que as penas dos réus condenados pecavam pelo “excesso e exagero”.
De acordo com o ministro, os argumentos em favor da proporcionalidade das penas não procede. Ele ironizou conclusões nesse sentido citando o exemplo do deputado Natan Donadon, condenado também por formação de quadrilha. Para o ministro, enquanto no caso do mensalão houve muitas críticas contra a severidade do julgamento, no caso de Donadon, não houve nenhuma reclamação. “O crime de Donadon, condenado pelo desvio de R$ 8 milhões, deveria ser tratado em juizado de pequenas causas. Onde está o exagero na fixação da pena de Donadon?”
Mendes chegou até mesmo a criticar o entendimento de que não se tratou do maior escândalo de corrupção da história do país. Disse que a apuração policial e o processo não trataram de todo o desvio, desconsiderando, por exemplo, as denúncias envolvendo as investigações em fundos de pensão. Quando finalmente abordou a questão da admissibilidade dos infringentes, o ministro defendeu a derrogação tácita de recursos por leis supervenientes e citou casos em que o Supremo reconheceu a revogação de dispositivos processuais pela mesma lei sem que essa tratasse da matéria explicitamente.
Gilmar Mendes afirmou que, ao analisar o “retrógrado recurso”, o tribunal tem sempre aplicado a interpretação restritiva em relação à sua admissibilidade. Para Mendes, aceitá-lo, “se trata de controle de desconfiança do que foi julgado pela mais alta corte do país […] Controlar um tribunal juvenil e irresponsável que não sabe como vota”, disse. “O tamanho da incongruência é do tamanho do mundo, senhor presidente”, chegou a dizer sobre as conclusões favoráveis pela admissibilidade.
O ministro referiu-se também à condição de quatro votos contrários para se acolher a interposição dos infringentes como “número cabalístico” e sugeriu ainda que a composição da corte seria novamente renovada antes que se encerrasse o julgamento da AP 470. “A lógica está na eternização das demandas, no seu alongamento indevido, com o comprometimento do postulado constitucional da razoável duração do processo”, disse.
Críticas do “novato”
Em um voto longo, pontuado por provocações aos colegas que votaram pelo acolhimento do recurso, Marco Aurélio também se posicionou de forma contrária à sua admissão. A exemplo de Gilmar Mendes, Marco Aurélio preferiu por começar com considerações sobre a importância do julgamento antes de atacar de imediato o mérito da discussão.
“Os olhos da nação estão voltados para o Supremo. Considero em termos institucionais uma assentada de simbolismo maior. Para aqueles que o acompanham as emoções do julgamento devem estar sendo intensas”, disse. Marco Aurélio mencionou ainda o fato de restar vencido sobre a preliminar relativa à preclusão dos embargos. Para o ministro, a defesa dos réus que entrou com os agravos sobre a admissibilidade dos infringentes, acabou se precipitando, de modo que se trata de “recursos açodados”, por ainda não haver acórdão publicado para ser questionado já com as modificações impostas pelo julgamento dos Embargos Declaratórios.
Foi então que Marco Aurélio se dirigiu ao decano do tribunal, ministro Celso de Mello, para lembrá-lo de que a ele caberia desempatar o julgamento e definir seu resultado. “Estamos a um voto. Que responsabilidade, hein, ministro Celso de Mello”, disse Marco Aurélio. Ao que foi acompanhado de Gilmar Mendes, que sugeriu que a admissão dos embargos devia ser rejeitada em razão da expectativa da classe da magistratura e de bom exemplo aos juízes mais jovens.
“A magistratura como um todo está olhando para este tribunal, com orgulho, porque está quebrando a cultura de impunidade. É preciso ter cuidado com a repercussão desta decisão nos jovens juízes. Por que não agora embargos infringentes nas punições que os pais aplicam aos filhos?”, disse Gilmar Mendes.
Foi então que o ministro Luís Roberto Barroso resolveu responder a Marco Aurélio, dizendo que, dada a complexidade da matéria, ninguém poderia se considerar dono da verdade. “Eu nesta vida, neste caso e em outros, faço o que acho certo, independentemente da repercussão. Não sou um juiz que me considero pautado pela repercussão”, disse Barroso. “Não me considero um juiz pautado pelo o que vai dizer o jornal do dia seguinte, que aguarda uma manchete favorável”, continuou.
Marco Aurélio não se deu por vencido, chegando a se referir a Barroso como “novato” e afirmar que ele elogiara réus acusados. “Veja que o novato parte para uma crítica ao próprio colegiado, como partiu em votos anteriores. Disse, inclusive, que se estivesse a julgar não decidiria da forma com que decidimos. Não respondi a crítica porque foi para mim não foi velada, mas crítica direta, porque achei que não era bom”.
Marco Aurélio disse também que rechaçava os comentários de Luís Roberto Barroso sobre os Embargos Infringentes serem “casuísmo” e equivalerem “a mudar as regras do jogo de última hora”. Barroso disse então que, a despeito da opinião pública ser importante na democracia e de ficar satisfeito quando sua decisão coincide com a expectativa do público, se preocupava apenas em ser coerente com as leis e a Constituição.
“A multidão quer o fim desse julgamento. Eu também vou ficar muito feliz quando acabar. Mas não julgamos para multidão, julgamos pessoas”, disse Barroso. Marco Aurélio então respondeu que, ao contrário do colega, se preocupava com a opinião pública por ser “um servo” dos seus semelhantes. Disse ainda não ser bom para a instituição a “autofagia”, em clara alusão à postura crítica de Barroso, que insistiu que não criticava diretamente os colegas, mas votava de acordo com sua consciência.
“Gostaria de saber, se perguntássemos a uma pessoa, e não à multidão, se seu pai, seu irmão, seu filho estivessem na reta final do julgamento, e na última hora se estivesse mudando uma regra para desfavorecer a pessoa, gostaria disso? Não estou subordinado à multidão. Estou subordinado à Constituição”.