por Daniel Roncaglia
O mal-estar causado no Supremo Tribunal Federal pela entrevista que o ministro Joaquim Barbosa deu ao jornal Folha de S.Paulo há dez dias veio à tona na sessão desta quinta-feira (4/9). O ministro Marco Aurélio cobrou explicações do colega em uma discussão acalorada.
Na entrevista, Joaquim Barbosa disse que seus desentendimentos com colegas acontecem porque ele combate a corrupção: “A imprensa se esquece de dizer quais foram as razões pelas quais eu tive certos desentendimentos. Quase sempre foram desentendimentos nos quais eu estava defendendo princípios caros à sociedade brasileira, como o combate à corrupção no próprio Poder Judiciário. Sem aquela briga com o ministro Marco Aurélio, o caso Anaconda não teria condenação e cumprimento de penas pelos réus”.
Na sessão desta quinta, depois de ser interrompido por Barbosa enquanto questionava a modulação dos efeitos de uma decisão, Marco Aurélio pediu ao colega que esperasse a conclusão do raciocínio. E depois de um tempo de discussão o aconselhou a retificar algumas informações das informações que deu ao jornal.
Os argumentos jurídicos foram deixados de lado e os ministros se atacaram mutuamente. O STF discutia se Minas Gerais poderia fazer a supervisão pedagógica de cursos superiores. O voto do relator Joaquim Barbosa já contava com a maioria. Para manter a coerência, Marco Aurélio foi voto vencido.
O ministro Gilmar Mendes, presidente do STF, declarava o resultado da votação, quando Marco Aurélio questionou sobre a modulação dos efeitos da decisão. Isso porque alguns diplomas poderiam ser cancelados. Durante alguns segundos, Joaquim Barbosa e Marco Aurélio atropelaram-se, falando ao mesmo tempo.
Marco Aurélio — Um minutinho, ministro. Eu sei que Vossa Excelência é um guardião maior — talvez suplantando até as nossas posições — da Constituição Federal, mas vamos aguardar um pouquinho, eu terminar o meu raciocínio.
Joaquim Barbosa — Pois bem.
Marco — Pelo menos Vossa Excelência assim se diz.
Depois do recado e de um breve silêncio, o ministro voltou ao seu raciocínio. Quando Joaquim ameaçou contra-argumentar, Marco Aurélio rebateu:
Marco — Aliás, ministro, Vossa Excelência vai me permitir uma observação. Não para agredi-lo, mas eu esperava que Vossa Excelência consertasse algo que saiu em uma entrevista veiculada em um grande jornal. Se não fosse a nossa desavença, o pessoal da operação Anaconda não teria sido condenado. Eu penso que nossa desavença ficou em numa questão estritamente instrumental.
JB — Não misturemos as coisas.
Marco — Não quero que Vossa Excelência tome o que eu veiculei em termos de ser censor ou de não ser censor, de ser defensor maior ou menor da Constituição Federal como uma agressão a Vossa Excelência. Todos nós somos defensores da Constituição.
JB — Voltemos ao exame da Adin 3501. É disso que se cuida aqui.
Marco — Excelência, se cuida aqui de Supremo Tribunal Federal.
JB — Vossa Excelência não precisa me ensinar. Eu sei muito bem o que é Supremo Tribunal Federal. Aliás, eu não só sei muito bem, como escrevi sobre isso.
Marco — Enquanto tiver assento nesta casa com a toga sobre os ombros ninguém virá a me emudecer.
JB — Ninguém me emudecerá também, ministro Marco Aurélio.
Marco — Sim, Excelência, você mesmo apontou algo que sob a minha ótica surgiu como praticamente um complexo, que vossa excelência não deve ter.
JB — Na entrevista discuti fatos, aqui estou discutindo Direito.
O bate-boca não continuou porque o ministro Celso de Mello colocou panos quentes e trouxe o debate de volta para a questão processual.
Caso Anaconda
O primeiro atrito público entre Joaquim Barbosa e Marco Aurélio se deu em 2004, quando um dos envolvidos no caso Anaconda entrou com pedido de Habeas Corpus que foi distribuído na noite de uma sexta-feira. Joaquim Barbosa era o relator e Sepúlveda Pertence o decano. Os dois gabinetes informaram que eles haviam viajado.
Ao receber o recurso, Marco Aurélio pediu à Secretaria do Supremo que certificasse a ausência dos colegas a quem caberia a distribuição. Os funcionários atestaram, por escrito, que os ministros não estavam em Brasília.
Na semana seguinte, Joaquim Barbosa atacou o colega afirmando que estava em Brasília. Ele acusou Marco Aurélio de fraude na distribuição de processos. Marco Aurélio representou contra JB à Presidência da Corte.
Os servidores do tribunal deram razão a Marco Aurélio. Mas Nelson Jobim, então na direção da Casa, decidiu colocar panos quentes no caso, declarando apenas que não houvera irregularidade na distribuição.
Incômodo na Corte
Em entrevista publicada pela Folha no dia 25 de agosto, Joaquim Barbosa usou a sua condição de negro para justificar os desentendimentos com os colegas. “Enganaram-se os que pensavam que o STF iria ter um negro submisso, subserviente”, afirmou.
O ministro ainda atacou os colegas e se disse incomodado com “certas elites” — advogados que, segundo ele, monopolizariam a agenda do Supremo. “Nós temos na Justiça brasileira o sistema de preferência, tido como a coisa mais natural do mundo. O advogado pede audiência, chega aqui e pede uma preferência para julgar o caso dele. O que é essa preferência? Na maioria dos casos, é passar o caso dele na frente de outros que deram entrada no tribunal há mais tempo. Se o juiz não estiver atento a isso, só julgará casos de interesse de certas elites, sim. Quem é recebido nos tribunais pelos juízes são os representantes das classes mais bem situadas”, disse Joaquim Barbosa ao jornal.
Logo que saiu, a entrevista causou mal-estar no Supremo. Um ministro conta que os episódios narrados por JB não se deram como ele descreveu. Por isso, a entrevista aumentou o fosso entre ele e os colegas que, em geral, consideraram as declarações populistas e demagógicas.
Joaquim Barbosa afirmou ainda que seus desentendimentos com colegas foram por causa da defesa que faz dos princípios caros à sociedade como o combate à corrupção no Judiciário. Essa afirmação espantou seus colegas, pelo antagonismo sugerido pelo ministro. JB afirmou ainda que sem a briga que teve com o ministro Marco Aurélio, o caso Anaconda não teria condenação e cumprimento de penas pelos réus. Na verdade, o motivo do desentendimento foi outro.
Recentemente, Joaquim teve também um sério desentendimento com Eros Grau. Os ministros se estranharam depois de Eros libertar Humberto Braz no caso que investiga Daniel Dantas. “Como é que você solta um cidadão que apareceu no Jornal Nacional oferecendo suborno?”, perguntou JB.
Eros Grau respondeu que não havia julgado a ação penal, mas se havia fundamento para manter prisão preventiva. Joaquim Barbosa retrucou dizendo que “a decisão foi contra o povo brasileiro”. Em outro round, depois que Joaquim Barbosa deu Habeas Corpus para garantir a Daniel Dantas o direito de não se auto-incriminar em uma Comissão Parlamentar de Inquérito, Eros Grau, em tom de gozação, comentou que esse HC repercutira mais que o dele. JB enfureceu-se e chamou o colega de velho caquético.
Com Gilmar Mendes, a discussão aconteceu num julgamento de uma lei mineira, considerada inconstitucional pelo Supremo. O pleno declarara inconstitucional a lei de aposentadoria mineira que existia há quase 20 anos. Como muitos beneficiados haviam morrido ou já estavam aposentados, Gilmar propôs a modulação dos efeitos da inconstitucionalidade. JB não entendeu e partiu para o confronto.
Ele reclamou que não foi consultado sobre a questão de ordem e afirmou que não concordava com a proposta feita por Gilmar Mendes. “Ministro Gilmar, me perdoe a palavra, mas isso é jeitinho. Nós temos que acabar com isso”, disse Joaquim Barbosa. Gilmar Mendes retrucou: “Eu não vou responder a vossa excelência. Vossa excelência não pode pensar que pode dar lição de moral aqui”.
Revista Consultor Jurídico