por Celso Lafer
[Artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo deste domingo, 20 de abril]
Uma das características do mundo contemporâneo é o avassalador impacto da inovação, propiciado pelo avanço do conhecimento. Deste fato provém a contínua transposição de barreiras antes tidas como naturais e dadas. Disso são exemplos a energia nuclear, o acesso ao espaço exterior e também a fertilização in vitro, condição de possibilidade de pesquisa em células-tronco embrionárias que, pela sua totipotencialidade, pode contribuir para o diagnóstico e o tratamento de doenças degenerativas.
Essas pesquisas têm alcance terapêutico e são lícitas nos termos do artigo 5º da Lei 11.105, de 24/3/2005 — que estipula que células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos fertilizados in vitro são passíveis de pesquisa desde que não tenham sido utilizadas no respectivo procedimento e provenham ou de embriões inviáveis ou de embriões congelados há pelo menos três anos, sendo sempre necessário o consentimento dos genitores para a sua utilização.
Em 2005 o procurador-geral da República impugnou esta licitude, alegando desrespeito constitucional à inviolabilidade do direito à vida. Por isso a questão está em exame no STF. No processo, em 5 de março o ministro-relator Carlos Britto, em abrangente, circunstanciado e reflexivo voto, se manifestou pela plena constitucionalidade do artigo 5º da Lei 11.105. Na mesma sessão, a ministra Ellen Gracie, em preciso e límpido voto, também concluiu pela constitucionalidade do referido artigo. O julgamento foi suspenso com o pedido de vista do ministro Carlos Alberto Direito.
No seu voto, o ministro Carlos Britto fez generosa referência à carta que, como presidente de uma das principais agências de fomento à pesquisa no país, a Fapesp, enviei à ministra Ellen Gracie, presidente do STF, atento aos preceitos constitucionais da liberdade de expressão científica e da promoção do desenvolvimento científico. Na carta registrei que os controles que cercam a pesquisa em células-tronco embrionárias, nos termos da lei, conciliam adequadamente os valores envolvidos, possibilitando os avanços da ciência em defesa da saúde e da vida e o respeito aos padrões éticos da nossa sociedade. Os votos dos ministros Carlos Britto e Ellen Gracie, na ponderação dos princípios constitucionais cabíveis, são uma acurada comprovação jurídica de como se dá esta conciliação.
Na análise desta questão, agrego que a Lei 11.105 está em consonância com a Bioética, que surgiu para esclarecer questões de caráter ético suscitadas pelas inovações científicas que tornaram possível agir sobre fenômenos vitais de maneira anteriormente impensável.
Preocupações bioéticas levaram o Conselho Nacional de Saúde a editar a Resolução 196, de 10 de outubro de1996. Essa resolução, ao tratar de pesquisas que, no Brasil, envolvem seres humanos, estabelece os princípios que devem norteá-las, impõe a criação de comitês de ética nas instituições que realizam essas pesquisas e exige que os projetos de pesquisa, para serem executados, sejam aprovados por esses comitês. A composição dos comitês é multi e interdisciplinar e não se restringe aos profissionais de saúde. Tem como objetivo avaliar se o acúmulo do conhecimento que permite aliviar o sofrimento e melhorar a saúde do indivíduo e da comunidade está norteado pelos princípios da autonomia, da beneficência, da não-maleficência e da justiça, de tal forma que a liberdade da atividade científica esteja balizada pela dignidade da pessoa humana.
O § 2º do artigo 5º da Lei 11.105 estabelece que pesquisas em células-tronco embrionárias devem ser aprovadas pelos comitês de ética das instituições que as realizam. A Fapesp não concede auxílio de pesquisa na área da saúde sem essa aprovação. Esta é uma das razões por que, em função do meu trato com a questão, afirmei, na perspectiva de uma ética laica, o significado desse controle previsto na Lei 11.105. O § 3º do artigo 5º veda a comercialização de material biológico obtido de células-tronco embrionárias, tipificando-a como crime, levando em conta a dignidade própria da sua origem.
Como jurista, na análise do artigo 5º da Lei 11.105 registro que o Direito brasileiro contempla os direitos do nascituro, mas cabe esclarecer que nascituro é aquele destinado a nascer, implantado no útero materno. É a nidação — tão bem discutida no voto do ministro Carlos Britto — que configura o nascituro. Não há definição constitucional do momento inicial da vida humana. Por isso, como afirmou a ministra Ellen Gracie no seu voto, não é papel do STF estabelecer um conceito que é científica e religiosamente muito controvertido e não pode ser extraído dos preceitos constitucionais. Entendo, assim, que do Direito brasileiro não se conclui que o embrião sem nidação, produto da fertilização in vitro, possa ser considerado forma inicial de vida humana. Ressalto, também, que aos geradores do embrião fertilizado in vitro que tenham essa convicção a autonomia de liberdade de crença e consciência está assegurada pela exigência do consentimento, previsto na Lei 11.105.
Concluo, como estudioso de Filosofia do Direito, lembrando que o princípio da responsabilidade foi elaborado para oferecer critérios éticos aptos a lidar com os novos problemas derivados do avanço do conhecimento. Pressupõe uma coerência com um horizonte temporal ligado, no caso, aos efeitos prováveis da intervenção humana na saúde das pessoas. Requer agir para incluir, nas opções presentes, as futuras possibilidades de vida. Passa pela dedicação e solidariedade ao próximo. Este princípio se vê atendido pela Lei 11.105, que resguarda válidas expectativas de aliviar a dor e o sofrimento de pessoas enfermas, assegurando-lhes saúde e vida mais digna. Preserva, assim, um bem público concreto que não pode ser comprometido por abstrações no trato jurídico de embriões fertilizados in vitro que não servirão à vida humana.
Revista Consultor Jurídico