O Conselho Nacional de Justiça é acusado pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (Anamages) de ter alterado o julgamento do Processo de Controle Administrativo que trata do chamado auxílio-voto e da reestruturação de entrâncias no Tribunal de Justiça de São Paulo. A entidade apresentou, nesta terça-feira (29/6), pedido de nova apreciação de Questão de Ordem.
No recurso, a Anamages pede que prevaleça o voto do conselheiro Marcelo Neves lido no Plenário do CNJ no dia 20 abril de 2010, e não o voto publicado posteriormente. O conselheiro afirma que o voto foi alterado para inclusão de argumentos usados pelos colegas de Conselho durante a discussão, e foi ratificado pelo Plenário, por unanimidade, na sessão seguinte.
Integrantes da Anamages destacam o prejuízo na carreira de alguns magistrados se mantida a segunda versão do voto. “No primeiro voto, o conselheiro manda o tribunal refazer lista de entrância final, mas sem cancelar promoções”, diz o juiz Adugar Quirino do Nascimento Souza Júnior, autor do PCA e juiz titular da 1ª Vara Criminal de Assis, no interior de São Paulo. “Na segunda versão, o conselheiro manda remunerar os magistrados de terceira entrância como se fossem de entrância final, mas não sana a injustiça para fins de promoção na carreira”, completa. Adugar cita um exemplo extremo: o do juiz José Carlos Hernandes Holgado, da 2ª Vara Cível de Ourinhos.
Segundo Adugar, seu colega Holgado tem 30 anos de magistratura. E, com isso, é o primeiro nome na lista intermediária. Aceita a primeira versão do voto do conselheiro Marcelo Neves, como afirma o juiz, Holgado seria guinado à posição de 243ª na entrância final, num total de mais de 900 magistrados da mesma lista.
No entanto, ainda na versão de Adugar, mantido o voto publicado, o juiz Holgado, ganha o direito de receber vencimento de juiz de entrância final, mas continuará na lista de intermediário, sem chance na carreira chegar ao cargo de desembargador.
Auxílio-voto
A gratificação extraordinária paga a juízes convocados para atuar no Tribunal, que ficou conhecida como auxílio-voto, beneficiou 243 juízes entre 2007 e 2009. Desses, de acordo com o CNJ, 66 receberam valores anuais dentro do limite anual de R$ 13.266. Houve o caso de um juiz que nos três anos como “bagrinho” (juiz extraordinário) embolsou R$ 130 mil, dos quais R$ 88 mil em 2008.
A Secretaria de Controle Interno do CNJ contratou uma consultoria para auditar os pagamentos no Tribunal paulista. A inspeção foi feita apenas nas folha dos anos de 2007, 2008 e 2009. Por isso, a conclusão sobre a remuneração irregular não foi totalmente esclarecida. Na avaliação dos conselheiros, a reclamação disciplinar arquivada sem a devida instrução deverá ser reaberta, inclusive para a investigação de eventual responsabilidade por pagamentos indevidos pelo TJ-SP.
A auditoria constatou que havia previsão para pagamento de valor fixo para cada 25 votos apresentados pelo magistrado de primeira instância em exercício no Tribunal. Dessa forma, o pagamento se deu sob o critério da produtividade.
O desembargador Paulo Dimas, presidente da Apamagis (Associação Paulista dos Magistrados) saiu em defesa da categoria. “Os juízes dedicaram parte de seu tempo e de suas energias prestando um fabuloso serviço ao Tribunal de Justiça, sem prejuízo de suas atividade de origem, e tinham o direito de receber a diferença pelo serviço extraordinário que prestaram”, argumentou Paulo Dimas.
Em entrevista à revista Consultor Jurídico, o conselheiro Marcelo Neves afirma que a versão definitiva do voto foi ratificada, por unanimidade, pelo CNJ na sessão seguinte àquela de 20 de abril. “Como a questão é controversa, a argumentação final recebeu propostas dos colegas do Conselho”, explicou Marcelo Neves. “Incorporei no voto restrições feitas por colegas e levei ao Plenário na sessão posterior, que o ratificou, de forma unânime”, completou.
No voto lido, ao qual a ConJur teve acesso, o conselheiro Marcelo Neves julga procedente o pedido do grupo de magistrados paulistas, alega falta de coerência na reestruturação das entrâncias e manda o Tribunal de Justiça corrigir imediatamente a situação dos juízes prejudicados. De acordo com sua decisão, os juízes de terceira entrância, à época da reclassificação, incluídos até agora na lista intermediária passem a integrar a entrância final.
“Além dos acertos acima listados, julgo pela procedência do pedido inicial, no sentido de que se proceda à imediata correção do enquadramento dos magistrados, em virtudes das inconsistências observadas com a reestruturação das entrâncias nas comarcas do estado de São Paulo, a partir da edição da Resolução 257/2005 e agravada com a edição da Resolução 296/2007 do Órgão Especial do TJ-SP, de tal maneira que os magistrados de terceira entrância, à época da reclassificação, enquadrados em lista de entrância intermediária, até agora, passem a integrar a lista de entrância final”, decidiu Marcelo Neves na leitura de seu voto em sessão Plenária do CNJ.
No voto publicado, o conselheiro julga parcialmente procedente o pedido e determina a correção do pagamento dos juízes por conta das irregularidades da reestruturação. Essa inconsistência, no entendimento de Marcelo Neves, se deu a partir da edição das duas resoluções aprovadas no Órgão Especial.
“(…) de tal maneira que os magistrados de terceira entrância, à época da reclassificação, enquadrados em lista de entrância intermediária, cujas comarcas foram reclassificadas como de entrância intermediária, sejam remunerados de modo idêntico aos magistrados de terceira entrância, também enquadrados em lista de entrância intermediária, mas cujas comarcas foram reclassificadas como de entrância final, passando a todos a perceber a diferença de entrância e gozar das respectivas prerrogativas”, concluiu Marcelo Neves no voto divulgado.
Intimação
Logo após o julgamento, o conselheiro Marcelo Neves intimou a corte paulista a demonstrar que cumpriu decisão do conselho. O CNJ determinou ao Tribunal e aos magistrados que receberam o pagamento extraordinário a fornecer dados financeiros sobre o subsídio. O chamado auxílio-voto é um subsídio concedido por produtividade a juízes de primeira instância para que julgassem recursos de segunda instância como forma de desafogar o Judiciário.
Em 20 de abril, o CNJ ordenou ao TJ-SP que intimasse os juízes e informasse, em 30 dias, os valores pagos e os extratos bancários de juízes que receberam o subsídio. Determinou também a devolução da quantia recebida acima do teto constitucional e o recolhimento dos tributos, uma vez que o pagamento (na forma de subsídio) entrou na conta bancária dos juízes sem qualquer desconto.
Os juízes receberam mais 30 dias — depois da intimação — para exercer o direito de defesa. Procurada pela revista Consultor Jurídico, a direção do Tribunal paulista foi econômica nos esclarecimentos e disse apenas que estava cumprindo as determinações do CNJ. Pelo menos desde janeiro de 2009 a corte paulista tem se recusado a prestar informações ao Conselho. O novo presidente, Viana Santos, assumiu dizendo que manteria uma nova relação de diálogo com o CNJ.
De acordo com o relatório do CNJ, juízes paulistas recebiam o subsídio fora do contracheque, em depósito em conta corrente. Em alguns casos, a quantia era “superior ao dobro do que recebe um ministro do STF [R$ 26.723]”. Um dos magistrados chegou a receber R$ 88 mil. Os valores pagos foi mais que o dobro estabelecido pela lei.
Pela convocação cada juiz deveria receber pelo conjunto de 25 votos proferidos por mês a quantia de R$ 1.105,56, mas o valor efetivamente pago foi de R$ 2.593,47. Além disso, o auxílio-voto teve natureza jurídica de indenização, o que isentou que os beneficiados fossem obrigados a recolher Imposto de Renda e a prestar contas com a Previdência Social.
No voto, o conselheiro Marcelo Neves afirma que o resultado do pagamento do auxílio-voto foi “nefasto aos cofres públicos”. Ele ordenou que a Receita fosse notificada para que cobrasse tributos não pagos. Para o conselheiro, o não cumprimento da entrega da documentação pedida leva “à evidência de descaso” com o CNJ e revela que “os responsáveis por tais condutas atuavam sob manifesta intenção de encobri-los”.
“Quanto à natureza jurídica dos valores pagos, cabe enfatizar que não se trata de indenização, e sim de subsídio. Julgo, portanto, pela notificação da Receita Federal do Brasil e do órgão previdenciário estadual, a fim de que tomem as providências devidas a respeito de eventual cobrança de tributos sobre a diferença paga entre entrâncias”, decidiu o conselheiro.
Divergência
Marcelo Neves nega cque determinou o pagamento da diferença de entrância retroativa a 2005. Mas confirmou que deu prazo de 30 dias para que o Tribunal paulista apresente os documentos sobre o pagamento extraordinário (auxílio-voto) aos juízes convocados para atuar em segundo grau e ainda a intimação pela corte paulista dos magistrados que receberam o benefício acima do teto de desembargador.
Ainda de acordo com o conselheiro, o TJ paulista, no último dia 24, solicitou prorrogação do prazo para cumprir a intimação dos juízes afetados pela decisão. O Tribunal argumentou a paralisação no Judiciário paulista que afetou os trabalhos da corte.
“Quanto à devolução dos valores percebidos além do teto constitucional e o recolhimento de tributos devidos sobre o valor recebido dentro dos limites constitucionais, determino a intimação, no prazo de 30 dias, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, dos magistrados alcançados por esta decisão, para que apresentem eventuais defesas perante este Conselho Nacional de Justiça, no prazo consecutivo de 30 dias, a contar da data da efetiva intimação”, afirma o conselheiro Marcelo Neves em seu voto.
O conselheiro ponderou, no entanto, que nos casos onde houve um erro administrativo, os envolvidos não precisam devolver os valores, conforme Resolução 249 do Tribunal de Contas União. Porém, esta tese não foi aceita pelos conselheiros. O relator, em seu voto afirma que “não há espaço para discussão sobre a existência de boa ou má-fé, em se tratando de órgão do Poder Judiciário, formado por magistrados com extensa experiência na interpretação e aplicação das leis”.
Litígio administrativo
O julgamento teve como pano de fundo duas Leis Complementares paulistas (a LC 980/2005 e a LC 991/2006) e duas Resoluções do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo (257/2005 e 296/2007) redigidas para garantir o cumprimento das regras aprovadas pelo Legislativo.
A primeira LC reclassificou as comarcas do estado. A norma diminuiu a quantidade de entrâncias que era de quatro (primeira, segunda, terceira e especial) para três (inicial, intermediária e final). A nova classificação obedecia a dois requisitos: número de eleitores e distribuição anual de processos.
A mesma lei ainda determinou que o Conselho Superior da Magistratura elaborasse lista de antiguidades de cada nova entrância, mas respeitando a ordem anterior à promulgação, para preservar direitos adquiridos dos magistrados. A determinação levou o Órgão Especial do TJ paulista a editar a Resolução 257/2005, que regulamentou os critérios de promoção e remoção dos juízes alcançados pela Lei Complementar.
A resolução foi contestada por alguns juízes que apontaram discrepância na Resolução 257. Argumentaram que a maioria das antigas comarcas de terceira entrância foi elevada para entrância final, mas a outra parte delas foi reclassificada como de entrância intermediária. Além disso, de acordo com os juízes discordantes, o critério usado foi amador, instituído por mero acaso, sem haver alusão a qualquer regra de transição que diferenciasse juízes com maior tempo de atuação na terceira entrância daqueles recém-empossados.
A segunda Lei Complementar, a 991/2006, foi aprovada estabelecendo nova reclassificação das comarcas que levava em conta o requisito da média quinquenal de processos distribuídos, mas excluía a regra da lei anterior que tratava do número de eleitores. Para se adequar à nova norma, o Tribunal de Justiça editou a nova Resolução 296/2007.
No entanto, esta Resolução, contrariando a lei, manteve o critério do número de eleitores para a composição das listas de promoção e remoção de juízes. A previsão teria prejudicado, mais uma vez, os juízes de terceira entrância, que não ganharam o benefício e ficaram de fora da nova reformulação na carreira da magistratura.
Outra reclamação
Em março de 2005, o atual decano da 3ª Câmara Criminal, desembargador Luiz Pantaleão, entrou com PCA (Procedimento de Controle Administrativo) questionando a convocação extraordinária de juízes de primeiro grau para atuar no julgamento de recursos no segundo grau de jurisdição. Para Pantaleão, com a iniciativa criou-se um “Tribunal fantasma”, como se fosse uma espécie de colégio recursal.
O PCA 0001182.70.2008-2.00.0000 tem como relator o conselheiro Leomar Barros Amorim. O desembargador Luiz Panteleão afirma que ao permitir câmaras de julgamento formadas por juízes de primeira instância, o Tribunal paulista criou uma “corte de exceção”. Antes de ingressar com procedimento no CNJ, Pantaleão enviou ofício ao então presidente, Vallim Bellocchi.
Pantaleão pede a dissolução de turmas formadas por juízes de primeiro grau e afirma que as turmas de julgamento são inconstitucionais. Segundo o desembargador, a Constituição Federal só autoriza o julgamento de recursos por turma colegiada formada por juízes nos Juizados Especiais. Na Justiça comum isso não poderia acontecer.