Por unanimidade, o Conselho Nacional de Justiça condenou nesta terça-feira (23/2) sete juízes e três desembargadores do Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Eles são acusados de uso irregular de verbas com distribuição privilegiada de pagamentos atrasados. Parte da verba foi usada para sanear o rombo financeiro de loja maçônica integrada por alguns dos magistrados. Por conduta antiética, corrupção ativa e passiva, todos foram condenados à aposentadoria compulsória proporcional.
Não se trata de improbidade administrativa, mas de condutas graves, ressaltou a conselheira Morgana Richa, ao acompanhar o voto do relator Ives Gandra Filho. O conselheiro Jefferson Kravchychyn foi incisivo. Disse que se trata de “uma quadrilha que assaltava do Tribunal de Mato Grosso”. Jorge Hélio Chaves foi além. Afirmou que “é preciso investigar mais, pois há indícios de questões muito mais graves, como esposa de magistrado recebendo até R$ 900 mil a título de indenização infundada”.
O conselheiro Marcelo Nobre baseou seu voto em duas questões. Para ele, não pode ser considerado legal o pagamento de créditos prescritos, muito menos o servidor receber o pagamento e dar parte ao seu chefe. Já o conselheiro Marcelo Neves respondeu aos advogados de defesa que alegaram a necessidade de individualização da pena e a dosimetria. Para ele, a dosimetria será aplicada em outra instância, quando poderá até ser cassada a aposentadoria dos condenados. Ao CNJ coube aplicar o que prevê a lei, determinar a aposentadoria proporcional.
O relatório de Ives Gandra Filho revela o desvio de R$ 4,5 milhões destinados ao pagamento de atrasados aos magistrados, dinheiro que teria de ser distribuído paritariamente a todos os juízes do Tribunal. “Farinha pouca, meu pirão primeiro”, disse o relator ao explicar a conduta dos magistrados. Segundo ele, a distribuição de atrasados aos magistrados de Mato Grosso daria uma média de R$ 13 mil para cada, mas o valor é imensamente menor do que os envolvidos se auto-concederam. “Pagaram migalhas para alguns para fazer cortina de fumaça”, disse o relator ao revelar que somente o então presidente do TJ-MT recebeu R$ 1,2 milhão.
O relatório
Ives Gandra Filho iniciou ressaltando a dificuldade de julgar colegas, fato que ele só havia presenciado uma vez, em 2003. Disse que os acusados agiram fazendo com que os fins fossem mais importantes e válidos, quaisquer que fossem. “Não falo em venda de sentença, mas o magistrado tem de ter sentido ético mais profundo que os demais cidadãos”, disse.
O ministro evitou o termo corrupção e falou em valores éticos. Para ele, alguns foram dissimulados ao dizer que não sabiam se era certo ou errado, fizeram porque era costume no tribunal. “Usei a expressão laranja porque alguns receberam um dinheiro que não era para ficar, era para passar à maçonaria. Tive dúvidas em condenar, porque receberam pressão, pois o dinheiro que foi para a maçonaria foi muito grande.” Para se defender, “os magistrados contaram histórias inverídicas”, disse o relator.
Gandra disse que se ateve mais no controle interno feito pelo CNJ. Segundo ele, o princípio do contraditório foi plenamente respeitado porque o relatório foi colocado à disposição e abriu-se prazo para defesa. “Os próprios depoimentos dos requeridos, quando confrontados, vão dando claro todo o quadro e o que mais choca é que diante de tais fatos, os acusados questionaram qual o problema, onde está a falta de ética. Para mim, é a confissão de um esquema montado de desvio de verbas do tribunal, para a maçonaria”, disse Gandra.
O presidente do TJ-MT, Mariano Travassos, lamentou profundamente a decisão do CNJ. Segundo ele, o julgamento “fugiu aos limites jurídicos para assumir condenável contorno político, vitimando o direito, a Justiça e atingindo de forma irreparável a instituição judiciária de Mato Grosso”. Ele destacou que vai recorrer ao Supremo Tribunal Federal.
Ele reiterou sua inocência em relação aos fatos imputados. Do ponto de vista jurídico, considerou absolutamente frágeis as alegações contra ele, “despidas de suporte fático-probatório”, com capacidade apenas de “ferir” a sua “dignidade e honra, já que, no decorrer de 30 anos de magistratura, jamais houve qualquer fato contrário à lisura de sua carreira, construída com ética, moralidade e respeito ao patrimônio público”.
Os fatos
Em agosto de 2003, a loja maçônica presidida pelo desembargador José Ferreira Leite criou uma cooperativa de crédito. Em dezembro de 2004, os gestores da entidade desfalcaram a cooperativa em R$ 1,7 milhão. A loja maçônica decidiu ingressar com ação para recuperar dinheiro, mas ainda não foi recuperado. Decidiram então assumir empréstimos para repassar à loja maçônica. Tomaram emprestados R$ 540 mil, mas isso não dava para cobrir a dívida.
O presidente do TJ-MT e da loja maçônica, com colaboração de dois juízes auxiliares, fez gestões entre membros do Judiciário local para cobrir o rombo. Determinaram o pagamento de verbas atrasadas a eles próprios e a magistrados que participaram do esquema e pediram o dinheiro de volta, que foi devolvido. Os pagamentos eram feitos sem contracheque e somente a juíza Maria Cristina Oliveira Simões devolveu R$ 177 mil a Marcelo Souza de Barros. R$ 200 mil foram pagos a Juanita, que emprestou tudo à loja maçônica. Graciema recebeu R$ 185 mil e emprestou R$ 160 mil para loja maçônica. Entendeu que dinheiro tinha sido posto por engano na sua conta. Depois disse que na verdade era empréstimo.
“O que mais chama atenção é que Dra. Graciema disse que não estava emprestando, era dinheiro depositado por engano”, disse o relator Ives Gandra Filho. Para ele, “magistrado não pode confundir estorno com empréstimo. Me parece uma pessoa que confessa qualquer coisa quando está sob forte pressão. Houve tentativa de salvar aquilo que antes já havia se mostrado realidade. Com a ajuda das magistrada somou-se R$ 937 mil, que ainda eram insuficientes. Mas, como não queriam socorrer a cooperativa com dinheiro próprio, de dezembro de 2004 a fevereiro 2005, concederam a eles mesmos, a título de atrasados, valores que sobrepujavam largamente os empréstimos feitos para a loja maçônica”.
Segundo Ives Gandra, a confissão do desvio ético, a manobra de fazer empréstimos e conseguir dinheiro para cobrir o rombo, está no depoimento de Marcos Aurélio dos Reis Ferreira. Ele confessou que fez empréstimo pessoal e ficou comprometido de quitar de acordo com pagamento. Mas, depois recebeu telefonema de Marcelo Barros que disse que havia conseguido o dinheiro de outra forma, mais vantajosa em termos de juros, cujo dinheiro seria creditado na conta dos juízes para pagar o financiamento.
“Se isso não é desvio ético, não sei o que é ético”, refutou o relator, lembrando que os magistrados se utilizaram do fato de serem, um ordenador de despesas e o outro filho de presidente do tribunal, para conseguir o dinheiro. O pagamento era feito com direcionamento do juiz Marcelo e aprovação do presidente do tribunal.
O montante pago, a título de atrasados, foi de R$ 4,5 milhões para 338 magistrados, média de R$ 13 mil para cada, valor muito menor do que os pagos aos juízes envolvidos no esquema. “Pagaram migalhas para alguns para fazer cortina de fumaça”, ressaltou Ives Gandra, que encontrou ainda o que ele chama de “descalabro”, pois uma das rubricas não batia, não era possível pagar por ela, mas os juízes mudaram a rubrica e o pagamento foi feito com verbas que não eram devidas a juízes estaduais.
“São valores superlativamente altos em comparação com resto da magistratura”, disse o relator. O que mais recebeu foi José Ferreira Leite, R$ 1,2 milhão de atrasados. O então corregedor-geral de Justiça, Mariano Travassos, atual presidente do TJ-MT recebeu R$ 906 mil e o desembargador José Tadeu Cury, R$ 757 mil. Já juiz filho do presidente do tribunal, com apenas quatro anos de carreira, recebeu R$ 624 mil a título de atrasados.
Aposentadoria é benefício, diz OAB
O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Ophir Cavalcante, classificou de “insuficiente” a pena de aposentadoria compulsória aos dez magistrados do TJ-MT. “A aplicação da aposentadoria seria uma espécie de benefício, ao invés de uma punição”, disse ele, ao propor uma reflexão sobre a Lei de Organização da Magistratura (Loman) ao CNJ. Para ele, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso “passou a funcionar como uma filial loja da maçonaria, o que é muito grave e mostra indícios de corrupção e de transgressão à lei”.
“Na minha opinião está cristalino que o Tribunal de Justiça de Mato Grosso passou a ser uma filial da loja maçônica Grande Oriente, socorrendo-a em momento de dificuldades financeiras”, sustentou Ophir, no CNJ. “Essa atitude é muito grave e preocupante e mostra indícios de corrupção, pois a corrupção se faz não só com desvios de verbas, mas com pressão e direcionamento irregular de recursos dos próprios magistrados”. Para o presidente nacional da OAB, o magistrado não pode confundir o público com o privado e não deve se esquecer de que têm de encarnar uma postura ética, “pois o juiz deve funcionar como paradigma para a sociedade”.
Ophir elogiou a atuação do CNJ neste e em outros casos envolvendo a magistratura. Ele destacou que o órgão de controle externo do Judiciário, por esse posicionamento, tem angariado o respeito da sociedade brasileira.