A portaria que restringia o acesso de advogados aos autos, no Espírito Santo, foi derrubada pelo Conselho Nacional de Justiça. O CNJ acatou o recurso da OAB capixaba e cassou a portaria editada pela juíza federal da 2ª Vara Federal Criminal de Vitória. Pela regra, os advogados sem procuração só poderiam ter acesso aos autos dos processos mediante “a formulação de requerimento por escrito ao juiz, indicando fundamentalmente o interesse jurídico”. A justificativa apresentada foi a necessidade de “assegurar o direito à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem do réu”.
Para o presidente da OAB-ES, Homero Junger Mafra, a decisão do CNJ representa uma importante vitória para a advocacia. Inicialmente, no julgamento que aconteceu na terça-feira (25/1), o conselheiro Paulo Tamburini negou o pedido de liminar. “Mas entendemos que com as prerrogativas profissionais dos advogados não se transige e por isso recorremos. O Pleno do CNJ decidiu que o relator estava equivocado e a Ordem correta”, comentou ele.
Homero Mafra lembrou que o artigo 7º do Estatuto da Advocacia assegura ser direito do advogado “examinar, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da Administração Pública em geral, autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estão sujeitos a sigilo, assegurada a obtenção de cópias, podendo tomar apontamentos.” E ressaltou: “A Portaria transforma em regra o que é exceção, tornando o que é público em sigiloso”.
Ele destacou, também, o caráter preconceituoso da Portaria. Entre os argumentos apresentados para justificar a medida, a juíza sustenta: “Torna-se arriscado autorizar que advogado não constituído (sem procuração nos autos) faça carga de autos de ação penal, isso porque a existência de ação penal contra uma pessoa expõe dados que são alusivos à sua vida privada, cuja incolumidade pode restar prejudicada caso se faculte acesso aos autos a pessoa que não ostenta a qualidade de representante do réu.”
Para Mafra, “não se pode permitir que sob o argumento de proteção de dados da vida privada de eventuais acusados se esconda o preconceito contra os advogados que, pelos termos em que posta a teratológica Portaria, saem por aí divulgando os fatos de que tomam ciência em decorrência de seu exercício profissional”.
O presidente da Comissão de Prerrogativas da OAB-ES, Rivelino Amaral, também comemorou a decisão do CNJ. “A Portaria era uma afronta ao Estatuto da Advocacia e à própria Constituição Federal e os advogados não podem se curvar a decisões desse tipo”, afirmou. “O acesso aos autos pode ter, inclusive, o condão de dar ao advogado o entendimento se ele vai ou não patrocinar a causa. Então, o acesso serve, também, para analisar os autos antes de uma contratação, na fase de tratativas”, acrescentou.
Para o advogado Bruno Dall’Orto, que acompanhou de perto a atuação da OAB para cassar a Portaria, a decisão do CNJ não poderia ser outra. “Essa portaria causava repulsa”, afirmou. Ele destacou que, além de ser uma ofensa direta às prerrogativas e expressar evidente preconceito em relação ao profissional da advocacia, a Portaria também criava um entrave desnecessário na burocracia forense. “O advogado precisa ter acesso aos autos para decidir se assume ou não a causa e com essa portaria essa possibilidade não existia. A portaria discrimina e desrespeita de forma flagrante a advocacia”, afirmou.
O advogado Francisco Herkenhoff concorda que a Portaria dificultou a atividade profissional. “É uma burocracia que a lei não exige”, disse. Ele destacou, também, que não havia justificativa para que a liminar não fosse concedida pelo conselheiro Tamburini, antes da decisão final do CNJ pela cassação da Portaria. “É uma questão singela, clara, inclusive, o conselheiro (Jefferson Kravchychyn), ao votar por dar provimento ao recurso da Seccional, ressalta que a medida buscou inovar na ordem jurídica, dispondo contrariamente à lei vigente, de forma a restringir os direitos dos advogados, apesar da natureza meramente reguladora que possui esse tipo de ato normativo infra-legal”. “O aspecto mais destacado do voto vencedor é que o conselheiro relembra que o juiz não regula o advogado. A advocacia é regulada pela lei”, disse Herkenhoff.
A advogada criminalista, Tatiana Costa Jardim, afirmou: “A exigência desse requerimento era uma balela e inviabilizava que os advogados assumissem ou não um determinado processo. Eu mesma desisti de atuar em pelo menos três”, avaliou a advogada. E o conselheiro da Seccional, o advogado Edison Viana dos Santos, comentou: “O advogado vinha sendo prejudicado na sua atividade laborativa”.
O diretor-tesoureiro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Miguel Cançado, acompanhou a sessão plenária em que o CNJ, por maioria, cassou a portaria.
Leia o voto do conselheiro Jefferson Kravchychyn:
PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO N.° 0004482-69.2010.2.00.0000
RELATOR : CONSELHEIRO PAULO DE TARSO TAMBURINI SOUZA
REQUERENTE : ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SEÇÃO DO ESPÍRITO SANTO
REQUERIDO : JUÍZO DA 2ª VARA FEDERAL CRIMINAL DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESPÍRITO SANTO
RECURSO ADMINISTRATIVO. PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. PORTARIA. CARGA DOS AUTOS CONDICIONADA À PETIÇÃO FUNDAMENTADA.
IMPOSSIBILIDADE. AFRONTA ÀS PRERROGATIVAS DA ADVOCACIA. ART. 7º DA LEI 8.906/94.
– Ao editar portaria que resta por modificar previsão legal, ao impor requisito ausente em lei, o Juízo requerido usurpa competência do Poder Legislativo, em afronta ao mencionado Princípio da Separação dos Poderes.
– Além desse fato, deve-se frisar que o artigo 13 da Portaria n.º 000008-1/2009, tem o condão de inovar na ordem jurídica, dispondo contrariamente à lei vigente, de forma a restringir direitos atinentes aos advogados, apesar da natureza meramente reguladora que possui esse tipo de ato normativo infra-legal.
– Destaca-se ainda que no dia 05 de outubro do ano de 2010 foi publicada a Resolução de nº 121 do CNJ, que dispõe, entre outros temas, sobre a divulgação de dados processuais eletrônicos na rede mundial de computadores.
– Voto por dar provimento ao recurso para cassar a Portaria n º 000008-1/2009, editada pela Juíza Federal da 2ª Vara Federal Criminal de Vitória – ES, em razão de a mesma afrontar disposição legal do art. 7º, XIII, da Lei nº 8.906/94.
VISTOS;
Adoto o bem lançado relatório do Conselheiro Relator Paulo de Tarso Tamburini de Souza.
No seu voto o Conselheiro Relator negou provimento ao recurso, concluindo que as atividades advocatícias jamais foram abreviadas na Seção Criminal do Estado do Espírito Santo, uma vez que a única restrição refere-se aos autos processuais e segredo de justiça conforme disposto pelo art. 7º, XIII, da Lei nº 8.906/94.
Em que pese o bem lançado voto do Conselheiro Relator ouso divergir de seu posicionamento por entender que a restrição feita pela Portaria editada pela Juíza Federal da 2ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Estado do Espírito Santo, vai além da carga dos autos e atinge sim os pedidos de vista.
O item 13 da Portaria nº 000008-1/2009, cuja redação foi alterada, vigora com o seguinte texto:
13. O direito dos advogados à vista e à extração de cópias de peças de quaisquer processos, findos ou em andamento, confiados à guarda da Secretaria (art.7º, XIII, da Lei nº 8.906/94), salvo se correr em segredo de justiça, deve ser sempre respeitado, observando-se os prazos e nas hipóteses previstas em lei, restando, todavia, condicionado à formulação de requerimento por escrito ao juiz, indicando fundamentalmente o interesse jurídico, na hipótese do causídico requerente não estar regularmente constituído nos autos, com vista a assegurar o direito à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem do réu (art.5º, X, CRFB).
Como de plano se observa o exercício do direito à vista e à extração de cópias de peças dos autos restou condicionado à formulação de requerimento por escrito ao magistrado, indicando fundamentalmente o interesse jurídico.
A portaria supracitada viola frontalmente a disposição contida no art. 7º, XIII, do Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94), que prevê:
Art. 7º: São direitos do advogado:
[…]
XIII – examinar em qualquer órgão dos Poderes Judiciários e Legislativo, ou da Administração Pública em geral, autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estejam sujeitos a sigilo, assegurada a obtenção de cópias, podendo tomar apontamentos”.
Imperioso enfatizar que a portaria condiciona não só a carga dos autos, mas também, a obtenção de cópias e o acesso aos mesmos por profissional habilitado.
Ressalta-se, que a atuação profissional dos advogados é indispensável à administração da Justiça, conforme previsão constitucional (art. 133), e, conseqüentemente, não há como aceitar-se que a prestação jurisdicional seja eficiente quando um de seus pilares encontra-se prejudicado.
No caso sob exame as prerrogativas profissionais dos advogados encontram-se severamente afrontadas por Portaria que cria regra não prevista em lei.
Ao editar portaria que resta por modificar previsão legal, ao impor requisito ausente em lei, o Juízo requerido usurpa competência do Poder Legislativo, em afronta ao mencionado Princípio da Separação dos Poderes.
Além desse fato, deve-se frisar que o artigo 13 da Portaria n.º 000008-1/2009, tem o condão de inovar na ordem jurídica, dispondo contrariamente à lei vigente, de forma a restringir direitos atinentes aos advogados, apesar da natureza meramente reguladora que possui esse tipo de ato normativo infra-legal.
Muito já se salientou, nesse Conselho, sobre a impossibilidade de uma Portaria inovar na ordem jurídica, seja para restringir ou para ampliar direitos, particularmente quando em dissonância com dispositivos legais. Nesse sentido, destaca-se decisão do então Conselheiro Rui Stoco:
“[…] Não se deslembre, nem se olvide que “portarias são atos administrativos internos pelos quais os chefes de órgãos, repartições ou serviços expedem determinações gerais ou especiais a seus subordinados…” (HELY LOPES MEIRELLES. Direito Administrativo Brasileiro. 26. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p.176). Segundo a dicção de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO: “Portaria é formula pela qual autoridades de nível inferior ao de Chefe do Executivo, sejam de qualquer escalão de comandos que forem, dirigem-se a seus subordinados, transmitindo decisões de efeito interno…” (Curso de Direito Administrativo. 18. ed. Malheiros Editores, 2005, p. 408). Portanto, como atos interna corporis as portarias só podem disciplinar regras para os administrados, ou seja, para os servidores do foro e não interferir e irradiar efeitos em processos judiciais, cuja ordenação e procedimento estão estabelecidos na lei processual de regência
[…]
A portaria avançou nas reservas da lei. Buscou regulamentar excedendo-se. Mais do que isso, estabeleceu rito próprio e especial de um grupo de juízes e ofendeu a lei processual específica, posto que a Lei n.º 9.099/95 (a partir do art. 12) e, subsidiariamente, o Código de Processo Civil estabelecem o procedimento dos Juizados Especiais, não se permitindo que os juízes ou quem quer que seja estabeleça regras diversas, quer sejam convergentes ou contrapostas. (CNJ – PCA 5722 – Rel. Cons. Rui Stoco – 50ª Sessão – j. 23.10.2007 – DJU 09.11.2007). (grifou-se)
Na ocasião em que se discutia a possibilidade de supressão da audiência de conciliação por meio de Portaria Conjunta, na hipótese de apreciação de controvérsia consumerista, pelo Juizado Especial, assim se posicionou o CNJ:
“Nesse sentido, há de se reconhecer a substancial alteração da disciplina legal do rito sumaríssimo, promovida pela Portaria editada em Maracaju/MS, a subverter a destinação dos atos administrativos normativos de complementar e/ou detalhar mandamentos legais.
Como cediço, encontram os atos administrativos limites intransponíveis na lei, não possuindo, em tese, caráter inovador e, portanto, vocação para distinguir situações que a própria lei não distingue.
[…]
Conquanto louvável a intenção manifestada nos ‘considerandos’ da Portaria nº 01/2008, concernente à busca da otimização do trabalho no Juizado Especial de Maracaju/MS mediante adoção de sistemática apta a superar a dificuldade vislumbrada em face do elevado número de ações intentadas contra empresas relutantes em ceder à conciliação, ressalte-se não deter o magistrado autorização para sub-rogar-se na função legiferante, editando ato administrativo corretivo de suposta omissão legal e, assim, atropelando princípios garantidores de direitos fundamentais”. (CNJ – PP 200810000031294 – Rel. Cons. Mairan Gonçalves Maia Júnior – 81ª Sessão – j. 31.03.2009 – DJU 07.04.2009). (grifou-se)
Frisa-se que a irregularidade do ato administrativo caracteriza-se pelo fato de que referida portaria, inovou no ordenamento jurídico, caracterizando usurpação das competências do Poder Legislativo e inobservância dos limites reguladores do instrumento normativo empregado.
Em outras palavras, reputa-se afrontosa aos direitos dos advogados norma que, não emanada do Poder Legislativo, preste-se a disciplinar de forma inovadora questões referentes à obtenção de cópias e vista dos autos. Nesse sentido, destaca-se o seguinte voto do Conselheiro Rui Stocco:
“A edição de ato normativo interna corporis, representado por “Portaria” dos Juízes que respondem pelo Juizado Especial Cível na comarca de Itapetinga, Estado da Bahia, com a amplitude e poder invasivo que ostenta, sobre constituir ato normativo espúrio, caracteriza – às escâncaras e estreme de dúvida – ofensa ao direito constitucional ao due process of law, na medida em que agride a ampla defesa e impõe restrições que a lei não estabelece. […]” (CNJ – PCA 5722 – Rel. Cons. Rui Stoco – 50ª Sessão – j. 23.10.2007 – DJU 09.11.2007).
Faz-se relevante observar que o tema ora enfrentado já fora objeto de deliberação do plenário desse Conselho:
PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. ACESSO DOS ADVOGADOS AOS AUTOS DE PROCESSOS ELETRÔNICOS. OBTENÇÃO DE CÓPIAS. LEI 11.419/2006.
1. Pretensão de que o Conselho Nacional de Justiça assegure aos advogados, mesmo sem procuração, a obtenção de cópias dos processos eletrônicos que
tramitam nas unidades judiciárias vinculadas ao Tribunal de Justiça do Espírito Santo.
2. A publicidade dos atos processuais não autoriza o acesso irrestrito ao processo eletrônico por meio de rede externa. Lei nº 11.419/2006, art. 11, § 6º. Precedentes do CNJ.
3. O direito dos advogados à obtenção de cópias de processos, previsto no art. 7º, XIII, da Lei 8.906/94, deve ser observado independentemente de o processo ser eletrônico ou físico, ressalvadas as hipóteses legais de sigilo. Cabe ao Tribunal disponibilizar os meios necessários ao exercício desse direito assegurado aos advogados.
Pedido julgado parcialmente procedente.
(PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS Nº 2009100000050750 – RELATOR: CONSELHEIRO JOSÉ ADONIS CALLOU DE ARAÚJO SÁ – Julgado na 97ª Sessão Ordinária em 27/01/2010)
Por fim, destaca-se que no dia 05 de outubro do ano de 2010 foi publicada a Resolução de nº 121 do CNJ, que dispõe, entre outros temas, sobre a divulgação de dados processuais eletrônicos na rede mundial de computadores.
Nesta, encontram-se dispositivos que reafirmam o direito dos advogados acessarem livremente os processos judiciais, no caso, eletrônicos, sem qualquer fundamentação para tanto ou demonstração de interesse, dentre os quais se destaca:
Art. 1.º A consulta aos dados básicos dos processos judiciais será disponibilizada na rede mundial de computadores (internet), assegurado o direito de acesso a informações processuais a toda e qualquer pessoa, independentemente de prévio cadastramento ou de demonstração de interesse.
Ante o exposto, voto por dar provimento ao recurso para cassar a Portaria n º 000008-1/2009, editada pela Juíza Federal da 2ª Vara Federal Criminal de
Vitória – ES, em razão de a mesma afrontar disposição legal do art. 7º, XIII, da Lei nº 8.906/94.
Brasília, 18 de janeiro de 2011.
Conselheiro JEFFERSON KRAVCHYCHYN