Por maioria de votos – 11 x 4 – o Conselho Nacional de Justiça decidiu ontem (17) arquivar a reclamação disciplinar contra a juíza federal Ana Inês Algorta Latorre, da 6ª Vara Federal de Porto Alegre.
A magistrada havia determinado, em 7 de maio de 2009, a prisão em flagrante do advogado Luís Antonio Alcoba de Freitas (OAB-RS nº 48.807), procurador regional da União da 4ª Região, por desobediência, devido ao não cumprimento de ordem judicial que determinou que a União fornecesse medicamentos a uma criança.
Em outubro do ano passado, a OAB gaúcha concedeu desagravo ao profissional da Advocacia. Algumas semanas antes, ao apreciar o caso preliminarmente, a Comissão Especial de Defesa e Assistência das Prerrogativas (Cedap) da OAB gaúcha já havia alertado os advogados em geral que “o próximo preso pode ser você”.
A reclamação disciplinar julgada pelo CNJ foi apresentada pela Advocacia Geral da União (AGU) e pelo Fórum Nacional dos Advogados Públicos Federais (FNAPF) que alegaram ter havido “abuso de poder”.
O relator do processo, corregedor nacional de Justiça, ministro Gilson Dipp, afirmou que “a decretação de prisão foi imprópria”. No entanto, entendeu que o risco de morte da recém-nascida e as dificuldades burocráticas da Administração Pública “produziram conflito de emoções e valores na magistrada”, o que ensejou esse tipo de decisão.
Por esse motivo, o ministro Dipp votou pelo arquivamento do processo. “O modo de proceder da juíza decorreu da urgência e gravidade do fato”, disse no voto. Para o corregedor, seu voto servirá de orientação “para se ponderar muito antes de se determinar a prisão”.
O conselheiro Milton Nobre teve o mesmo entendimento do corregedor e defendeu o arquivamento da reclamação disciplinar. “A ética do advogado público não é a mesma do advogado privado. Ele age de acordo com a ótica do interesse público”, afirmou, ao defender a solução proposta.
O presidente do CNJ, ministro Cezar Peluso, ponderou que estavam em jogo valores da mais alta relevância e da mais fina sensibilidade. “Uma vida humana que estava em risco”, disse. Segundo o ministro, “o juiz só deve ser responsabilizado por dolo ou fraude, pois todos os magistrados erram, assim como todo ser humano”.
Peluso entendeu que a juíza Ana Inês estava diante de um dilema grave. “Um recém-nascido que tinha sua vida em risco”, justificou, ao defender a independência funcional da magistratura.
Divergiram do voto do relator os conselheiros Jorge Hélio, Jeferson Kravchychyn, Marcelo Nobre e Marcelo Neves. Para eles, a reclamação disciplinar deveria ser transformada em processo administrativo disciplinar, pois “a determinação da prisão do procurador foi ilegal”. (Proc. nº 0002474-56.2009.2.00.0000).
Para entender o caso
* No dia 7 de maio do ano passado, após ter várias de suas decisões descumpridas pelo Ministério da Saúde – a quem competiria fornecer alimentos especiais protéicos a uma criança – a juíza Ana Inês determinou que, em segredo de justiça, fosse expedido mandado de prisão contra o advogado Luís Antonio Alcoba de Freitas, pelo fato de ser advogado público, então no exercício da Procuradoria Regional da União da 4ª Região, em Porto Alegre – que representava a União no processo.
* A medida foi cumprida pela Polícia Federal, sendo o profissional da Advocacia recolhido à carceragem. (Proc. nº 2009.71.00007032-0).
* No mesmo dia, a União impetrou habeas corpus que teve liminar concedida pelo desembargador Luiz Fernando Wok Penteado, do TRF-4, determinando a soltura imediata do advogado. Em setembro de 2009, julgando o mérito do recurso, o tribunal confirmou a ordem.
* O julgado do TRF-4 refere que “a prisão decorre do não atendimento de ordem judicial anteriormente proferida. Todavia, o cumprimento incumbe à União, por meio de seu órgão competente, não ao seu procurador, que apenas a representa judicialmente. Não possuindo o paciente tal poder, descabe a respectiva prisão”.
Ao conceder o desagravo, o acórdão do Conselho Seccional da OAB gaúcha assinalou oito irregularidades:
“1) O advogado Luís Antonio Alcoba de Freitas foi preso nas dependências da Procuradoria Regional da União na 4ª Região – na qual ocupa o cargo de procurador regional -, sem a presença de representante da OAB.
2) O advogado foi recolhido preso sem processo judicial penal para julgamento de eventual acusação de prática de crime. Sequer inquérito foi instaurado.
3) A prisão como determinada incorreu em objetiva violação ao artigo 5º, inciso LVIII, da Constituição Federal. O preceito reclama, para a prisão, sentença penal condenatória.
4) Ocorreram erros de tipificação, evidenciados porque funcionário público não pratica delito de desobediência, mas no máximo de prevaricação, e porque a ordem de entrega do alimento ou do dinheiro foi dirigida à União e não ao seu advogado.
5) Aconteceram, também, erros de confusão sobre quem é parte (capacidade processual) e quem é advogado (capacidade postulatória) – perpetrados pela juíza: a lesão ao direito do advogado se consubstanciou pela incompetência do Juízo cível para prender advogado por crime e pela desobservância do devido processo legal, já que ao Ministério Público Federal não foi feita representação para que, então, fosse iniciada eventual ação penal pública.
6) O advogado não poderia ter sido preso porque o crime de desobediência não é inafiançável. Além disso, é contrária à lei a prisão em flagrante por ordem judicial escrita, já que refoge ao conceito instituído pelo artigo 302 do CPP. Portanto, mesmo que se admitisse que crime de desobediência ocorreu, ainda assim o advogado não poderia ter sido preso, porque o delito é afiançável.
7) A Lei nº 9.099/95 estabelece que crimes de menor potencial ofensivo (artigo 61) – como o crime de desobediência – têm hipóteses de prisão em flagrante reduzidíssimas, de modo que nem sequer se fixa fiança (artigo 69).
8) O advogado Luis Antônio Alcoba de Freitas foi vítima de violação a direitos seus como advogado, no exercício da profissão”.