O ministro Gilmar Mendes, que assume na semana que vem a presidência do Supremo Tribunal Federal, é o entrevistado das Páginas Amarelas da revista Veja, deste sábado, 19 de abril. Na entrevista, entre outros temas, Mendes critica o ministro da Justiça Tarso Genro, que defende o uso de dossiês por governos com finalidades políticas e fala também da leniência dos juízes.
Seu mandato de dois anos coincidirá com alguns dos mais decisivos momentos dos 179 anos de existência da mais alta corte de Justiça do país. É que o Supremo está prestes a reiniciar o julgamento que deve legalizar as pesquisas científicas com células-tronco de embriões humanos. A prevalecer o desejo de alguns políticos, o tribunal também deverá ser instado a se pronunciar sobre a Proposta de Emenda à Constituição que permite ao presidente Lula disputar um terceiro mandato.
Aos 52 anos, ex-advogado-geral da União e ex-procurador da República, Mendes fala com a prudência que a posição exige, mas dá pistas — algumas bem claras — sobre o que pensa desses assuntos. “Não vejo com nenhuma simpatia o tema”, diz, referindo-se à emenda do terceiro mandato. A reportagem é do jornalista Alexandre Oltramari.
Leia a entrevista
Veja — Há um debate sobre a idéia de mudar a Constituição para permitir que o presidente Lula dispute um terceiro mandato. Uma proposta como essa tem amparo legal?
Mendes — A Constituição tem sido alterada várias vezes por razões diversas. Tempo de aposentadoria, condições de contribuição de aposentadoria, estabilidade de servidor público – tudo isso vem demandando reformas. Mas tenho sérias dúvidas sobre reforma de mandatos eletivos. Não vejo nenhuma razão para isso. Caso seja introduzida essa idéia, teremos um intenso debate no STF. Precisaremos discutir se a emenda que permitiria um terceiro mandato consecutivo é compatível com a Constituição e com o estado de direito democrático. Será necessário analisar se isso não estará criando um modelo de continuísmo.
Veja — O que o senhor acha?
Mendes — Não vou falar sobre isso. Esse assunto certamente chegará ao STF.
Veja — Mas, se o Congresso Nacional é soberano, uma reforma constitucional que permita o terceiro mandato seria teoricamente legal.
Mendes — No estado de direito não há soberanos. Todos estão submetidos às regras constitucionais. Todas as mudanças devem atender aos preceitos das cláusulas pétreas da Constituição Federal.
Veja — Sua resposta indica que o senhor é contra a mudança na lei que permitiria ao presidente Lula disputar um terceiro mandato.
Mendes — Não vejo com nenhuma simpatia o tema. Tem um fumus (fumaça) de casuísmo, não é? Tem forte sentido casuísta.
Veja — O ministro da Justiça, Tarso Genro, disse que fazer dossiês com fins políticos não é crime. Como o senhor analisa essa declaração?
Mendes — Fazer coleta de informações às quais eu tenho acesso simplesmente porque estou no governo, para uma finalidade política eventualmente de constrangimento ou de chantagem, pode não ser crime. Mas certamente não é uma atitude eticamente louvável. É uma atitude preocupante, que revela uma concepção autoritária e certo patrimonialismo. Embute-se nela o entendimento de que as informações que estão ao meu alcance pelo fato de eu estar no governo, o que é circunstancial, podem ser usadas para as finalidades que eu entender devidas. Isso é preocupante. Se alguém pensa assim, talvez tenha de repensar seu conceito de democracia. Talvez essa pessoa esteja lendo muito Lenin e Trotsky — e deveria ler mais Popper (Karl Popper, filósofo inglês nascido na Áustria, o maior defensor teórico da democracia liberal).
Veja — Existe um vezo autoritário aí?
Mendes — Esse tipo de prática não é elogiável. Usar informações contra alguém, com esse intuito? O servidor público que descobre algo indevido deve denunciar. Se for crime, deve-se comunicar o Ministério Público. Mas coletar dados revela práticas de um catecismo que não é o da democracia constitucional. Certamente revela um pensamento autoritário. Dossiês, vazamentos de informações sigilosas e violação de regras básicas também embutem certo cinismo. Isso não contribui para a construção de uma civilização.
Veja — O Supremo tem se manifestado com freqüência sobre a legalidade de decisões tomadas pelo Congresso. É o STF que está se intrometendo na vida legislativa ou são as decisões legislativas que estão contrariando as normas constitucionais?
Mendes — Essa é uma questão antiga da experiência do constitucionalismo. Toda vez que se instala um modelo forte de controle judicial, temos essa discussão. Ou se imputa uma excessiva compreensão para a obra do legislador ou se imputa uma atividade de exagero. O modelo brasileiro de 1988 pressupõe um controle constitucional pleno. Um cidadão ou qualquer entidade representativa pode alegar a inconstitucionalidade de uma matéria que afete um direito seu. As oportunidades de se fazerem contestações são amplas, portanto. O STF vem cumprindo devidamente o seu papel ao fazer algumas censuras.
Veja — O julgamento sobre a utilização de células embrionárias humanas em pesquisas científicas é considerado o mais emblemático da história do STF. Qual é sua posição a respeito do tema?
Mendes — O caso mais importante é sempre aquele que está para ser decidido. Espero retomar o julgamento sobre as pesquisas com células-tronco no próximo mês. É claro que é uma questão mais complexa porque envolve, além da questão jurídica, discussões sobre ética e moral. Entendo que existe uma grande expectativa em relação a pessoas doentes que podem vir a ser curadas com a liberação das pesquisas. Mas é preciso acompanhar esse assunto com ânimo reflexivo. As coisas não se resolvem de forma apodítica (termo filosófico cujo significado se refere a uma verdade que prescinde de demonstração).
Veja — O senhor não acha que essa discussão também está contaminada demais por razões religiosas?
Mendes — Isso é um dado inevitável. As nossas compreensões de ordem religiosa, filosófica e cultural nos acompanham. São as nossas circunstâncias. Esse componente religioso, porém, não pode ser decisivo. Deve apenas ser uma advertência para que as decisões sejam tomadas com método e cautela. Não é possível exigir que um juiz, ao vestir a toga, consiga se despir de suas simpatias e concepções. O relevante é ele sempre tentar superar os preconceitos. O ideal será chegarmos a um resultado mais científico e menos dogmático.
Veja — Existe no país uma sensação mais ou menos generalizada de que a polícia prende e a Justiça manda soltar. Qual é a razão de fundo dessa percepção?
Mendes — Lidar com réu preso é dramático. Fui relator de um caso em que o réu estava preso havia seis anos esperando julgamento. Mandei soltá-lo. Isso nunca é bem-visto pela opinião pública. Mas suponho que esse enunciado tenha sido construído por meio de uma obra de marketing com o intuito de fazer uma propaganda institucional da polícia. Qualquer pessoa alfabetizada juridicamente sabe que, a não ser em flagrante, a polícia só prende por meio de uma ordem judicial. Quem manda prender é a Justiça, e quem manda soltar também é a Justiça. Ocorre que alguns magistrados ficam impressionados com os argumentos da polícia e não observam os fundamentos legais da prisão preventiva, o que provoca uma revisão da decisão em instância superior. É natural que essas divergências causem alguma insegurança jurídica. Mas o papel do STF é sempre o de consolidar o estado de direito democrático.
Veja — O senhor concorda com a forma pela qual o STF é constituído? Hoje, dos onze ministros, sete foram indicados pelo presidente Lula. Isso não pode influenciar as decisões da corte?
Mendes — Todo dia o STF decide contrariamente aos interesses do governo. Não acredito que algum ministro vá levar em conta a origem de sua indicação nessas reflexões. A decisão que aceitou a denúncia do mensalão deixou isso muito claro. Houve inclusive divergências entre os próprios ministros indicados pelo presidente Lula. Os entendimentos do STF às vezes são fixados em termos quase seculares, alguns há mais de 150 anos. Simplificar essa relação leva a erros grosseiros. O nosso modelo de escolha, semelhante ao dos Estados Unidos, tem relativa credibilidade. Podem surgir dúvidas quanto ao acerto ou desacerto de uma ou outra indicação, mas teríamos esse problema em outros sistemas. Na Europa, onde os ministros são indicados pelo Parlamento, Portugal recentemente viveu o drama de trocar os mandatos de seis juízes ao mesmo tempo. Ninguém duvida que as forças políticas dominantes no atual momento é que vão determinar a recomposição do tribunal.
Veja — O foro privilegiado, que concede às autoridades, como deputados, senadores e ministros, o direito de só serem processadas no STF, costuma ser visto como agente de impunidade. Isso procede?
Mendes — Até o início da década, deputados e senadores só podiam ser processados pelo STF mediante autorização do Congresso, que nem sequer se reunia para analisar esses casos. A retomada das ações, portanto, é relativamente recente. Talvez isso explique em parte a sensação de impunidade que existe hoje em relação aos políticos. Também temos de encontrar meios para evitar que a relativa habilidade de um advogado leve à prescrição de um crime. Mas isso não tem nenhuma relação com a prerrogativa de foro de algumas autoridades. A impunidade gerada pela prescrição pode ser combatida por meio da reforma do Código de Processo Penal. O Ministério da Justiça está se debruçando sobre isso neste momento.
Veja — Medidas recentes, como a súmula vinculante, foram recebidas como um mecanismo eficaz para desafogar o Judiciário e torná-lo mais ágil. Quanto tempo ainda será preciso para que esses efeitos sejam sentidos pela sociedade?
Mendes — A criação das súmulas vinculantes, definindo que uma decisão do STF adotada por pelo menos oito de seus onze ministros adquira força de lei, deve reduzir o número de processos e o tempo de tramitação das ações. O STF já aprovou três súmulas e deve aprovar outras ainda neste semestre. Em pouco tempo, essas decisões terão repercussão no resto do país, principalmente naquelas ações que dizem respeito a interesses coletivos.
Veja — A CPI dos Grampos descobriu que existem atualmente quase 500 000 escutas telefônicas autorizadas pela Justiça no país. Não está havendo uma banalização dessa ferramenta de investigação?
Mendes — Os juízes devem ter mais cuidado em relação a isso. A lei prevê que o prazo para uma interceptação telefônica é de quinze dias. Mas o entendimento dos juízes é que esses quinze dias podem ser renovados de maneira ilimitada. O resultado é que hoje existem escutas instaladas há dois ou três anos em um mesmo telefone. Esses procedimentos precisam ser revistos. Outra questão delicada é a divulgação desse conteúdo por agentes policiais antes mesmo de o juiz ser informado sobre ele. Não temos hoje mecanismos para coibir isso. É notória a participação dos agentes policiais na divulgação, às vezes até em consórcio com órgãos de imprensa. Acostumamo-nos a isso de maneira equivocada. O Judiciário, que autoriza as escutas, tem responsabilidade por isso.
Veja — Parece que as investigações policiais hoje em dia se limitam a grampear suspeitos.
Mendes — Há um fenômeno curioso na cultura policial sobre esse tema. É a canonização do juízo emitido pelo investigado, que muitas vezes é um notório criminoso. Duvida-se muito da conduta ética dessas pessoas, mas ao mesmo tempo se atribui uma verossimilhança, uma verdade, àquilo que elas dizem. Vejo relatórios afirmando que isso ou aquilo ocorreu a partir de exegese que se faz com base em escutas telefônicas. Muitas pessoas já se viram em dificuldade apenas porque tiveram o nome mencionado numa interceptação telefônica. Pessoas que não são dignas de nenhuma credibilidade, no contexto social inclusive, ganham uma estranha credibilidade quando suas afirmações são fruto de interceptação telefônica. É um fenômeno tipicamente brasileiro. É mais uma matéria para o estudo da nossa sociologia criminal.
Veja — O senhor é contra ou a favor do aborto?
Mendes — Não vou responder.
Veja — O senhor é favorável à descriminalização do uso de drogas?
Mendes — Há argumentos razoáveis contra e a favor. Eu não emitiria um juízo definitivo sobre isso. Mas também não acho que se deva dizer que todo uso de drogas tem de ser criminalizado. É uma questão muito complexa. Ela deve ser avaliada pelo Poder Legislativo.
Veja — O senhor estudou direito na UnB, universidade na qual os estudantes ocuparam a reitoria e acabaram conseguindo a substituição do reitor. Se isso houvesse ocorrido em seu tempo de estudante, o aluno Gilmar Mendes teria ocupado a reitoria?
Mendes — Eu era aluno da UnB em 1977, quando a universidade foi ocupada pelos militares, e participei dos protestos contra a invasão. Acho que essas manifestações são absolutamente legítimas. Há reivindicações hiperbólicas que fazem parte da luta política. Mas é recomendável que sigamos os cânones do estado de direito. A invasão como forma de protesto é legítima. Impossibilitar o funcionamento da reitoria, porém, deve ser tratado dentro da legislação vigente.
Revista Consultor Jurídico