A Justiça Federal Criminal de São Paulo rejeitou pedido do Ministério Público Federal (MPF) para arquivar o inquérito que apurou as condições da morte do militante Flávio Carvalho Molina. Ele foi preso em novembro de 1971, por agentes do DOI-CODI de São Paulo e teria morrido no dia seguinte, de acordo com informação prestada, em agosto de 1978, pelo então chefe do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) paulista, Romeu Tuma.
A rejeição é assinada pelo juiz Ali Mazloum, da 7ª Vara Federal Criminal de São Paulo. Ao contrário do MPF, ele entendeu que o crime de ocultação de cadáver não prescreveu, é de natureza permanente e está fora do alcance da Lei de Anistia. Ali Mazloum decidiu, ainda, encaminhar o caso diretamente ao Supremo Tribunal Federal (STF) por haver entre os possíveis autores do delito o senador da República Romeu Tuma.
Flávio Molina era integrante do Movimento de Libertação Popular (Molipo), grupo de esquerda dissidente da Ação Libertadora Nacional (ALN). O grupo tinha atuação urbana nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Molina foi preso em 6 de novembro de 1971 por agentes do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operação de Defesa Interna (DOI-CODI), do 2º Exército, em São Paulo, então sob comando do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e Miguel Fernandes Zaninello.
A vítima teria sido morta um dia depois de sua prisão, mas apenas em 1979 a família tomou conhecimento oficial por meio do processo da 2ª Auditoria da Marinha. O corpo de Molina, segundo a documentação, foi enterrado como indigente, em 9 de novembro de 1971, no Cemitério Dom Bosco, em Perus, com o nome de Álvaro Lopes Peralta. Depois, em 1976, os ossos foram transferidos para uma vala clandestina no mesmo cemitério.
O MPF sustentou no pedido de arquivamento do inquérito para o crime de ocultação de cadáver o argumento de que não havia provas de autoria contra o senador Romeu Tuma. Alegou a ocorrência de prescrição e afirmou que o prazo prescricional máximo de 20 anos já havia sido há muito ultrapassado. O MPF ainda argumentou que o óbito de Flávio Molina foi retificado em 1981, sendo certo que mesmo antes dessa data já se sabia do local onde o corpo da vítima estava enterrado.
“O crime de ocultação de cadáver é imprescritível”, afirmou o juiz Ali Mazloum em sua decisão. Para ele, o ponto fundamental no delito de ocultação não é o óbito da vítima, mas o local onde o corpo está escondido. “A descoberta do óbito não se confunde com a descoberta do cadáver, única hipótese apta a fazer cessar a permanência do crime de ocultação”, completou. Mazloum justificou sua posição dizendo que a Lei de Anistia concedeu perdão a todos que no período entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 cometeram crimes políticos ou conexos.
O juiz entendeu que no caso de Flávio Molina é inquestionável que o delito de ocultação de cadáver permaneceu após a data limite da anistia, uma vez que a descoberta do corpo só foi efetivada em 2005, quando a perícia identificou a ossada e a família de Flávio pode finalmente sepultá-lo. O magistrado contestou o argumento do MPF de que a retificação do documento de óbito acabava com a permanência do delito de ocultação. Para o juiz, mesmo com a informação oficial do governo, o corpo da vítima continuava oculto.
Ali Mazloum também contestou a tese de que com a descoberta da vala clandestina, em dezembro de 1990, quando foram encontradas cerca de 1.500 ossadas, desapareceu a figura da ocultação. “A consumação do crime de ocultação de cadáver cessou com a efetiva identificação da vítima e seu sepultamento em lugar definitivo, fato que se deu em 2005”, destacou o juiz.
A tese sustentada pelo juiz em sua decisão é a de que o delito, pela natureza permanente, começou em novembro de 1971; foi provocado por motivos político-ideológicos; praticado por grupos armados, civis e militares, que agiram afrontando a ordem constitucional; está fora do alcance da Lei de Anistia e só terminou em 2005 quando a perícia identificou as ossadas de Flávio Molina.
“É evidente que a ordem constitucional estava sendo violada por grupos armados que agiam à margem da lei. Não se pode dizer que tais servidores públicos, civis ou militares, agiam em nome da lei e da ordem jurídica em vigor”, argumentou o juiz.
Lei de Anistia
No dia 29 de abril, sete dos nove ministros que participaram do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153) votaram contra a revogação da anistia para agentes públicos acusados de cometer crimes comuns durante a ditadura militar. Não votaram os ministros Joaquim Barbosa, em licença médica, e Dias Toffoli, que se declarou impedido.
Para a OAB, que pediu a revisão da lei, sobrou uma reprimenda. O presidente da corte, ministro Cezar Peluso, classificou como anacrônica a proposição e disse não entender por que a Ordem, 30 anos depois de exercer papel decisivo na aprovação da Lei de Anistia, revê seu próprio juízo e refaz seu pensamento “numa consciência tardia de que essa norma não corresponde à ordem constitucional vigente”.
A anistia concedida em 1979 a crimes políticos e conexos cometidos durante a vigência do regime militar foi admitida na Constituição vigente por meio da mesma emenda constitucional que convocou a assembleia nacional constituinte, em 1985. O arremate dado pelo ministro Eros Grau em seu voto sobre a revisão da Lei de Anistia arrancou elogios de menos três dos mais experientes ministros do Supremo Tribunal Federal na sessão do dia 28 de abril. “Foi o voto mais brilhante do ministro Eros Grau em toda a sua atuação na corte”, disse o ex-presidente da corte, Gilmar Mendes.