A história brasileira está repleta de julgamentos que se tornaram inesquecíveis pela importância e influência que tiveram na vida política do país. Outros, não chegaram a interferir diretamente no panorama político, mas também serão lembrados por muito tempo graças à repercussão que tiveram na mídia e na opinião pública. Já um terceiro grupo desses julgamentos históricos permaneceria no anonimato, não fosse o trabalho incansável de pesquisadores e jornalistas. Independente do contexto, dezenas de processos deixaram os tribunais e chegaram às livrarias e até mesmo ao cinema ou seriados de TV.
Foi assim, por exemplo, com o longo processo que resultou no enforcamento de Tiradentes e que três décadas depois levaria o Brasil a deixar sua condição de colônia portuguesa. Os autos da devassa contra os inconfidentes mineiros estão reunidos no livro O Processo de Tiradentes, assinado pelos advogados Ricardo Tosto e Paulo Guilherme Mendonça Lopes, obra de referência sobre um dos mais importantes capítulos da história brasileira. A devassa promovida pela Corte durou três anos. Tiradentes permaneceu preso praticamente todo este período, até ser levado à forca em 21 de abril de 1792.
A rainha Dona Maria I, que assinou a sentença de morte de Tiradentes e interferiu pessoalmente para a fixação das penas que deveriam ser aplicadas a outros 10 sentenciados à pena capital (degredo para colônias portuguesas na África) e os réus protegidos pela Igreja (deveriam ser enviados a Portugal), morreu louca, sem ver seu neto, o príncipe regente D. Pedro I, declarar a Independência do Brasil. O sonho dos inconfidentes foi concretizado três décadas depois da execução de Tiradentes.
Outros julgamentos históricos envolveram – e envolvem nos dias atuais – polêmicos casos de extradição. O primeiro, de uma longa relação, foi o de Olga Benário, presa com seu companheiro Luis Carlos Prestes, fundador do Partido Comunista do Brasil, durante o Governo Vargas. Nascida na Alemanha, judia e comunista, Olga teve sua extradição pedida pelos nazistas. No sétimo mês de gravidez, a última esperança de Olga estava em um Habeas Corpus impetrado pelo advogado Heitor Lima junto ao Supremo Tribunal Federal. O pedido foi negado em uma sessão realizada no dia 17 de junho de 1936. No livro Olga, Fernando Morais, resume a decisão:
“O desfecho do pedido não poderia ser mais trágico. Designado relator do processo, o ministro Bento de Faria indeferiu, uma por uma, todas as solicitações do advogado. E, alegando que o instituto do habeas-corpus estava suspenso pelo estado de sítio e pelo estado de guerra decretados por Getúlio Vargas, decidiu simplesmente não tomar conhecimento do pedido. Votaram com o relator o presidente da Corte Suprema e os ministros Hermenegildo de Barros, Plínio Casado, Laudo de Camargo, Costa Manso, Otávio Kelly e Ataulpho de Paiva. Os três ministros restantes – Eduardo Espínola, Carvalho Mourão e Carlos Maximiliano – criaram um artifício para evitar simplesmente desconhecer o pedido: conheceram, mas negaram o habeas-corpus”.
Entregue pelo governo de Getúlio Vargas, Olga foi enviada para Barnimstrasse, uma prisão destinada às mulheres, onde nasceu sua filha Anita Leocádia Prestes. Depois, separada precocemente da filha, que ficou com a avó Leocádia, mãe de Prestes, Olga foi transferida para o campo de concentração de Ravensbruck e em seguida para o campo de extermínio de Bernburg, onde foi morta em câmara de gás às vésperas de completar de 34 anos de idade.
No final do ano passado, a historiadora Anita Leocádio enviou uma carta do presidente Lula se colocando contra o pedido do governo italiano que quer a extradição de Cesare Battisti, outro caso de grande repercussão na mídia. No texto enviado ao presidente da República, “na qualidade de filha de Olga Benário Prestes, extraditada pelo Governo Vargas para a Alemanha nazista, para ser sacrificada numa câmara de gás”, Anita Prestes, manifesta a certeza de que Lula “não permitirá que seja cometido pelo Brasil o crime de entregar Cesare Battisti a um destino semelhante ao vivido por minha mãe e minha família”.
Preso no Brasil desde 2007, Battisti foi condenado à revelia na Itália à prisão perpétua, acusado pelo assassinato de quatro pessoas. Por um voto de diferença, o STF, julgou pela extradição, mas deixou para o presidente da República a decisão “quanto à entrega do extraditando”. Na mesma edição e página do Diário Eletrônico onde foi publicada a decisão sobre Battisti, está estampado o acórdão de rejeição a um embargo declaratório envolvendo outro caso de extradição, o do francês Daniel Santiago Santa Maria, condenado em seu país a 20 anos de prisão por tráfico de drogas. Ao rejeitar o recurso, o Supremo decidiu por unanimidade pela extradição. O processo teve como relator o ministro Eros Grau, cujo acórdão deverá prevalecer em futuros processos de extradição.
Na voto relatado, ministro afirma que “ao Supremo Tribunal Federal cabe tão-somente pronunciar-se a respeito da legalidade e procedência do pleito extradicional. Quem toma a decisão de extraditar, ou não extraditar, é o Presidente da República, sempre”. O julgamento de Santiago Santa Maria talvez não merecesse maior repercussão não fosse o fato de que quatro ministros que no caso do italiano Battisti votaram pela subordinação do Executivo à decisão tomada pelo STF, desta vez enfatizaram que a decisão final de extraditar ou não cabe ao presidente da República, com base nos acordos internacionais.
Menos notoriedade e polêmica envolveram o julgamento, em junho de 1967, de um triplo pedido de extradição apresentado ao Itamaraty pelos governos da Áustria, Polônia e Alemanha do austríaco Franz Paul Stangl, ex-oficial do exército nazista, acusado por crimes de homicídio em massa e genocídio em campos de extermínio comandados por ele em Hartheim (Áustria), Sobibór e Treblinka (ambos na Polônia). O que torna diferente o caso de Stangl é o fato de até hoje ter sido o único julgamento de genocídio na história do STF. O livro Justiça no Brasil – 200 Anos de História, dos advogados Paulo Guilherme de Mendonça Lopes e Patrícia Rios, destaca a decisão do STF, concedendo a extradição, em mais uma sessão memorável da mais alta Corte de Justiça do país.
Um dos aspectos centrais do julgamento consistiu na discussão sobre para qual país Paul Stangl seria extraditado. Ao final dos debates pesou os argumentos contundentes do então ministro Evandro Lins e Silva em favor do governo alemão. “Os crimes imputados ao extraditando (austríaco de nascimento) não foram cometidos apenas no território polonês ou apenas no território alemão”, destacou o ministro. “A deliberação para a execução do crime ocorreu na Alemanha, na cidade de Berlim. Foi lá que um grupo se reuniu para deliberar a “solução final”, eufemismo para o extermínio e liquidação da raça judaica. A sua execução material é que se deu em Treblinka, Sobibór e Hartheim, e em outros lugares”, concluiu. O ex-oficial nazista fora preso três meses antes do julgamento, em São Paulo, onde residia e trabalhava com o mesmo nome de batismo. Morreu três anos após ser extraditado, vítima de “insuficiência cardíaca” em uma prisão em Dusseldorf.
Caberia, talvez, aos sociólogos explicar, mas existem julgamentos de crimes tão crueis quanto tanto outros que causam uma verdadeira comoção social mesmo vários anos após ser promulgada a sentença. Contribui para isto a estratégia, nascida com a chamada imprensa popular e os antigos folhetins de noticiar crimes de grande repercussão em capítulo, usando como elemento de ligação uma frase ou expressão, como uma espécie de carimbo pelo qual passará a ser conhecido dali em diante.
O Caso Doca Street, a Tragédia da Piedade, O Caso da Rua Cuba, O Caso Cláudia, entre vários outros, são alguns exemplos. Na prática se assemelham ao título de um livro ou de filme de sucesso. De tão comentado e explorado, permite mesmo àqueles que não leram ou não assistiram formar uma opinião a respeito, colocando-se contra ou a favor da trama ou dos personagens envolvidos. O efeito de um crime onde o suspeito é apresentado à opinião pública como “A Fera de Macabu”, por exemplo, é devastador e não raras vezes os acusados chegam diante do júri popular com a sentença já definida, tornando praticamente inócuo e impopular o trabalho da defesa.
Existem exceções, como o caso em que um jovem aspirante à carreira militar matou o marido da amante, pessoa de grande reputação e reconhecida nacionalmente, e que apesar da pressão exercida pela opinião pública foi absolvido pelo júri. E mais: anos depois, já oficial do Exército, mata seu enteado, filho do marido traído e de sua atual mulher, e de novo é julgado e absolvido, desta vez diante de uma imprensa e de uma opinião pública um pouco mais condescendente. Coube à história registrar este trágico desfecho como “A Tragédia de Piedade”, uma referência ao bairro no subúrbio carioca, palco das duas mortes. Um “carimbo” perfeito para o ocorrido.
Personagem principal da tragédia, o escritor Euclydes da Cunha, autor de Os Sertões, um clássico da literatura brasileira, era casado com Anna Emília Ribeiro, filha do general Solón Ribeiro, figura de grande importância na proclamação da República. O ano era 1905. Anna, conhece o jovem Dilermando Cândido de Assis, 17 anos mais novo do que ela, órfão, estudante de um colégio limitar. Logo ambos se apaixonam e passam a ter encontros frequentes em uma pensão e depois em uma casa alugada por eles no Humaitá, Zona Sul do Rio. Tiveram dois filhos, ambos registrados por Euclydes da Cunha, que já desconfiava do relacionamento da mulher. Três anos depois, já como militar, o jovem Dilermando muda-se para a casa do irmão Dinorah, no bairro da Piedade. Anna deixa Euclydes e em companhia do filho que tivera com Dilermando (o outro morreu na primeira semana de vida) muda-se para o subúrbio. Era o prenúncio da tragédia.
No dia 15 de agosto de 1909, um domingo, Euclydes da Cunha resolve procurar a ex-mulher, mas vai armado. Deixou Copacabana, onde morava com o outro filho que tivera com Anna e seguiu para Piedade. Entrou na casa já com a arma em punho. Dilermando foi atingido com três tiros, e Dinorah, com um. Outros dois tiros erraram os alvos. Mesmo ferido gravemente, o jovem militar consegue apanhar sua arma e acerta dois tiros em Euclydes da Cunha, que morre no local. Mais tarde, Dinorah, hemiplégico em consequência do tiro que levara, se suicida.
Membro da Academia Brasileira de Letras, eleito em 1903, Euclydes da Cunha é apresentado pela imprensa como a grande vítima. Anna, uma adúltera, com a imagem ainda mais desgastada pela diferença de idade em relação ao jovem amante. Dilermando é preso, acusado de homicídio e chegou a ser condenado em um primeiro julgamento. Recorreu e teve sua defesa sustentada pelos criminalistas Evaristo de Moraes e por Delamare Garcia. Com base no próprio inquérito policial, conduzido com certa imparcialidade, insistiu na tese de “legítima defesa”. O livro Crônica de uma Tragédia Inesquecível, reúne os autos do processo e mostra que, mesmo absolvido, “a opinião pública fez de Dilermando o algoz eterno de um dos maiores escritores brasileiros”.
Mas a tragédia ainda não estava completa. Logo após sua absolvição, Anna e Dilermando casaram-se. Cinco anos depois, quando estava em um cartório, no centro do Rio, Dilermando foi atingido com um tiro nas costas pelo filho de Euclydes da Cunha. Não reagiu de imediato. Cambaleante tentou deixar o cartório. Levou outros três tiros, até que finalmente, com um único disparo, acertou e matou o filho de sua mulher, de apenas 19 anos. Levado a julgamento no Tribunal Militar, Dilermando foi novamente defendido por Evaristo e Moraes. O Jornal do Commércio, no dia seguinte ao julgamento destacou trechos dos argumentos defendidos pelo criminalista diante dos júri militar.
“Ora, por mais rigoroso que se pretender ser, julgando o tentente Dilermando de Assis, não se pode desconhecer que não havia outro meio de escapar à morte, diverso do que ele empregou. Em que pese todos os aspectos jurídicos, era um homem já mortalmente ferido, com lesões nos dois pulmões, no diagfragma e no fígado, portanto com o aparelho respiratório, de cuja função depende essencialmente a vida, completamente prejudicado e em cujo organismo se operavam fenômenos depressivos e perturbadores refletindo na sua inteligência e na sua vontade”.
Dilermando de Assis foi absolvido. A acusação recorreu, mas o Supremo Tribunal Militar manteve a decisão. No acórdão, o relator do processo destacou que “um organismo ferido de morte, em quase desfalecimento, reage irregularmente sobre o que o rodeia e sem condições de medir a reação”, repetindo praticamente os argumentos utilizados pela defesa. Anos depois, o próprio Evaristo de Moraes destacaria “A Tragédia da Piedade” como um dos casos que mais marcaram a sua longa carreira nos tribunais.
O que Evaristo de Moraes, pai, tentou e de certa forma conseguiu, na defesa de Dilermando de Assis – que o julgamento ficasse restrito aos fatos apurados no inquérito policial, deixando às margens o relacionamento entre o réu e a ex-mulher da vítima – Evaristo de Moares, filho, não conseguiria em outro julgamento que mobilizou grande parte da opinião pública e que contribuiu para o avanço do movimento feminista no país.
No dia 30 de dezembro de 1976, Ângela Maria Fernandes Diniz, personagem constante em colunas sociais, foi assassinada com quatro tiros, um deles na nuca, em sua casa de praia, em Búzios, na região dos lagos fluminenses. O autor dos disparos, réu confesso, foi o namorado Raul do Amaral Street, o Doca Street, o último de uma extensa relação publicada por jornais e revistas à época. Ainda hoje, o “Caso Doca Street” é apontado como um dos crimes passionais de maior repercussão no país. Vários aspectos contribuíram para isso, entre eles o fato de o julgamento colocar em lados opostos dois entre os mais consagrados criminalistas brasileiros: Evaristo de Moares Filho, como assistente da acusação, e Evandro Lins e Silva como defensor de Doca Street. Lins atraiu a ira dos movimentos femininos e até mesmo de colegas ao defender a polêmica tese de “legítima defesa da honra” e pedir ao júri, formado por cinco homens e duas mulheres, que refletissem “até que ponto a participação da vítima contribuiu, mais ou menos fortemente, para a deflagração da tragédia”. Nas colunas, Ângela Diniz era sempre citada como “a pantera de Minas”.
Segundo a transcrição da denúncia apresentada pelo Ministério Público, “no dia 30 de dezembro de 1976, aproximadamente às 16 horas, na residência de Ângela Maria Fernandes Diniz, na Praia dos Ossos, em Cabo Frio, Estado do Rio de Janeiro, a vítima Ângela decidiu acabar definitivamente com a ligação amorosa com Raul Fernando do Amaral Street (Doca Street), mandando-o embora de forma irrevogável, ocasião em que discutiram acaloradamente. Raul arrumou seus pertences, colou-os no carro e afastou-se da casa, para retornar em seguida, sem nenhuma explicação. Tentou a reconciliação e, vendo-a frustrada, discutiram novamente, momento em que Ângela se afastou para o banheiro. Nessa oportunidade, Raul armou-se de uma arma automática “Bereta” e seguiu sua amásia, encontrando-a no corredor, abordando-a, ocasião em que desferiu vários tiros contra a face e o crânio de Ângela, culminando por matá-la”.
No livro A Defesa tem a Palavra, Lins e Silva admite que sua principal estratégia foi confrontar a vida pregressa da vítima com a do acusado. Ângela, assim, foi descrita como “uma mulher fatal que encanta, seduz, domina, como foi o caso de Raul Fernando do Amaral Street, um moço passional, um criminoso de ocasião, não um delinquente habitual”. Para Lins e Silva, o “ato de violência praticado foi um gesto isolado em sua vida, produto de um desvario, num momento de desespero”.
A promotoria engoliu a isca e passou duas horas tentado mostrar que Doca Street era “um gigolô, que vivia de explorar mulheres, além de integrar uma quadrilha internacional de tráfico de drogas. Para Evaristo de Moraes sobraram os 30 minutos de réplica, usados por ele para demonstrar “a frieza do crime” e reforçar as provas contidas nos autos do processo, como o fato de após ter dado o primeiro tiro a arma usada por Doca Street travou. “Ele poderia ter desistido e se arrependido ali, mas destravou a Beretta e deu mais três tiros”. O último, reforçou o criminalista, atingiu a vítima próximo à nuca, “como os habituais tiros de misericórdia”.
Mas era tarde, o júri e a maior parte da platéia lotada, que aplaudia com entusiasmo a defesa de Evandro Lins, já haviam decidido. Por 5 votos a 2, Doca foi condenado por excesso culposo no estado de legítima defesa. O juiz Francisco Motta Macedo fixou a pena em dois ano de detenção, com direito ao sursis e Doca deixou o Fórum de Cabo Frio logo após lida a sentença. Na edição de 24 de outubro de 1979, com grande chamada na capa, a revista Veja publicou extensa reportagem com o título “Doca vai, mata e vence”. Nos subtítulos, um resumo do que ocorreu nem Cabo Frio: “A defesa provou que Ângela tinha má conduta; A promotoria disse que Doca era um rufião; A platéia foi uma festa e um crime deixou de ser julgado”.
Já no dia seguinte a vitoria de Evandro Lins e Silva, vários juristas apontaram “falhas gritantes” no julgamento. Não estavam errado. Depois de uma batalha de recursos entre acusação e defesa e sobre enorme pressão dos movimentos feministas, o Tribunal de Justiça do Rio decidiu anular o julgamento realizado em Cabo Frio. De novo diante do júri, quase dois anos depois, mas sem a companhia de Evandro Lins e Silva, Doca Street foi condenado a 15 anos de prisão. Passou sete anos na cadeia, quando obteve o benefício da liberdade condicional em 1987.
Em janeiro de 1997, o Brasil parou acompanhar ao vivo outro julgamento que teve como palco o Tribunal do Júri do Rio de Janeiro. A sentença foi anunciada no dia 25 daquele mês pelo juiz José Geraldo Antônio. Guilherme de Pádua, o réu, foi condenado a 19 anos de reclusão – cumpriu sete anos, antes de ser libertado – pelo brutal assassinato de Daniela Perez, na noite de 28 de dezembro de 2002. Cinco meses depois do julgamento de Guilherme, Paula Thomaz de Pádua (hoje Paula Nogueira Peixoto), na época casada com o ator global, foi sentenciada “por ter concorrido” para o crime a 18 anos e 6 meses de prisão. Grávida de três meses, ela teve o filho na prisão. Posteriormente sua pena foi reduzida para 15 anos e deixou a prisão em 1998, após seis anos na cadeira, quando ganhou o direito de cumprir o restante da sentença em regime semi-aberto. No total, ficou seis anos na cadeia.
Pelas circunstâncias e pelos personagens envolvidos, a repercussão do crime dividiu espaço com um acontecimento político de extrema importância na história política do pais – a renúncia do então presidente Fernando Collor de Mello para tentar escapar do processo de impeachment aberto pelo Congresso. Enquanto Collor renunciava em Brasília, Guilherme de Pádua, confessava o crime em uma delegacia da Barra da Tijuca, após apresentar várias versões, confusas e até mesmo sem nexo, negando participação no assassinato. A Folha de S. Paulo, na edição do dia 30 de dezembro daquele ano divulgou uma pesquisa mostrando que o assassinato de Daniela Perez foi mais discutido nas ruas do que o impeachment de Collor, o primeiro de um presidente latino americano.
Na época do crime, Guilherme de Pádua e Daniela Perez interpretavam no horário nobre da TV Globo Bira e Yasmin, um dos pares românticos da novela De Corpo e Alma, escrita por Glória Perez, mãe de Daniela. Ficção e realidade se entrelaçavam de tal forma que o brutal assassinato – Daniela, então com 22 anos, foi morta com 18 golpes de um instrumento “instrumento pérfuro-cortante” – uma tesoura, segundo a defesa; um punhal, segundo a acusação – era discutido como uma extensão da novela, com manifestações repletas de cartazes com alusão aos nomes dos personagens vividos por réu e vítima na televisão.
A condenação dos acusados foi apenas um capítulo a mais e longe de encerrar ou diminuir o interesse popular acirrou ainda mais o clamor contra a “impunidade”. Como ambos estavam presos desde a época do crime, bastava uma simples conta para saber que estariam em liberdade alguns anos após o julgamento, graças ao regime de progressão de penas. Foi neste clima que irrompeu em todo o país um movimento “contra a impunidade”. O objetivo da campanha, liderada do Glória Perez, parentes e amigos de vítimas de crimes que também tiveram ampla repercussão na imprensa, era incluir o homicídio qualificados na lista de crimes hediondos, promulgada por Collor em 1990, como tentativa de resposta à onda de sequestros e ao tráfico de drogas no Rio de Janeiro. A lei extinguia a fiança para os crimes nela previstos, bem como os benefícios da progressão da pena para os seus autores, que deveriam cumprir 2/3 da pena em regime fechado.
Em três meses, a campanha conseguiu 1,3 milhão de assinaturas e se tornou a primeira emenda popular do país. A lei foi mudada, mas não poderia atingir Guilherme de Pádua e Paula Thomaz, já que o assassinato de Daniela Glória Perez ocorreu antes da nova redação. Em fevereiro de 2006, por maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional o §1º do artigo 2º da Lei 8.072/90, que vedava a possibilidade de progressão de regime. Guilherme tornou-se evangélico ainda na prisão e hoje vive no interior mineiro. No dia 8 de abril, sua presença no “Programa do Ratinho”, do SBT, reabriu uma nova onda de polêmicas e protestos. Paula, casou-se com um policial militar que conhecera na prisão, formou-se em Direito, e vive em Niterói, município vizinho ao Rio de Janeiro. Quem esteve no tribunal nos dois julgamentos, sabe que a condenação foi justa, mas que boa parte da história ainda está para ser contada.
Injusta, no entanto, foi uma sentença praticamente anônima que culminou com o enforcamento do latifundiário Manoel da Motta Coqueiro em 6 de março de 1855, uma terça-feira. O cenário do julgamento, da execução e do crime atribuído à “Fera de Macabu” foi a paupérrima e distante Macaé, no Norte Fluminense, hoje um próspero município graças aos royalties proporcionados pelo petróleo. Com a corda no pescoço, já no patíbulo, a “fera” repetiu que era inocente, a exemplo do que afirmava insistentemente desde a prisão. Havia uma vaga esperança de que merecesse o indulto de D. Pedro II. A hesitação e a pressão dos jornais locais, calaram o imperador. Anos depois, convencido de que deixara um inocente ser executado, procurou se redimir ao prometer que “nunca mais deixaria um homem ser enforcado no Brasil”.
Motta Coqueiro, um rico fazendeiro, foi preso em 1852, sob a acusação de ter ordenado a matança de uma família de colonos que viviam em uma de suas propriedades. As vítimas, o agricultor Francisco Benedito, sua mulher e seis filhos do casal, incluindo três crianças, tiveram os corpos mutilados e a casa incendiada, segundo os autos processuais. Figura importante no Partido Conservador, Coqueiro tinha adversários de sobra interessados na sua condenação. No julgamento praticamente não teve defesa e a sentença proferida pelo juiz João da Costa Lima e Castro foi aquela intensamente reivindicada pela “opinião pública” e pelos jornais.
Os indícios eram fortes contra Coqueiro. Da chacina escapara apenas uma jovem mulher. A principal testemunha de acusação foi uma escrava, fato que o experiente jornalista Carlos Marchi, autor do livro A Fera de Macabu, publicado em segunda edição no final do ano passado, classifica como algo inédito e ilegal no Brasil de 1852. Marchi também estranhou, também, que “um homem branco, fazendeiro, rico e letrado se visse submetido a júri popular com base num inquérito que ficou pronto em apenas 90 dias e não apresentava nem a confissão do crime nem provas materiais da autoria”.
A história foi publicada originalmente em 1887 pelo escritor, jornalista e abolicionista José do Patrocínio, nascido em Campos, município vizinho a Macaé, em 1855, mesmo ano em que o fazendeiro foi enforcado. O livro de José de Patrocínio, Motta Coqueiro ou A Pena de Morte foi escrito sob a forma de romance, mas a riqueza de detalhes torna difícil saber até que ponto a ficção separa-se de realidade. A obra narra os bastidores políticos dos dois julgamentos a que foi submetido o fazendeiro, o envolvimento de sua mulher, jamais revelado pelo acusado, a não ser em cartas pessoais, até a surpeendente confissão do verdadeiro assassino 22 anos depois, pouco antes de morrer vítima de varíola.
Certo é que D. Pedro II ao saber da inocência do homem a quem havia negado o indulto passou a comutar a pena de todos os sentenciados à morte. O jornalista Carlos Marchi admite que a promessa não foi de todo cumprida e que alguns enforcamentos, principalmente de escravos, ainda voltariam a ocorrer. Mas assim como o enforcamento deTiradentes 1972 desaguou na Independência do País, a injusta execução de Coqueiro em 1855 foi o marco para a extinção da pena de morte no país que só viria a ocorrer, de direito, com a promulgação da República em 1899, embora desde o início de dos anos 60, inexistam registros de enforcamentos no Brasil.