Defesa técnica – Súmula Vinculante 5 gerou efeitos antidemocráticos

por Rafael Pinto Cordeiro

No dia 7 de maio de 2008, o plenário do Supremo Tribunal Federal aprovou por unanimidade a sua quinta Súmula Vinculante, estabelecendo que é dispensável a defesa técnica por advogado em Processo Administrativo Disciplinar.

A redação da indigitada súmula — que está em sentido diametralmente oposto ao verbete expresso da Súmula 343 do Superior Tribunal de Justiça — é a seguinte: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”.

Em que pese a decisão do Supremo Tribunal Federal ter posto fim à discussão jurídica há muito travada, não podemos nos furtar em fazer uma breve análise crítica do entendimento sumulado, atentos especialmente aos comandos constitucionais inscritos nos artigos 5º, LV e 133 da Carta Maior.

Isso porque a nossa Constituição Federal foi explícita ao prever o contraditório e a ampla defesa – com todos meios a ela inerentes – como garantia individual e coletiva inderrogável também nos processos administrativos, além de arvorar o advogado como peça indispensável à administração da justiça.

Não discordamos da doutrina da ministra Ellen Gracie, cuja parte do voto deu redação à ementa do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 207.197, ao afirmar que “A extensão da garantia constitucional do contraditório (artigo 5º, LV) aos procedimentos administrativos não tem o significado de subordinar a estes toda a normatividade referente aos feitos judiciais, onde é indispensável a atuação do advogado”

Vale ressaltar, entretanto, que o PAD tem por objeto a apuração de ilícitos funcionais e, quando for o acaso, a aplicação da respectiva sanção administrativa. A penalidade aplicada muitas vezes ocasiona resultados extremamente gravosos ao servidor, próximos às sanções de natureza penal não restritivas de liberdade.

No Estatuto dos Servidores Públicos Federais, Lei 8.112/1990, a indisponibilidade de bens do servidor (artigo136), a sua impossibilidade de retornar ao serviço público (artigo 137, parágrafo único) e a cassação de aposentadoria (artigo 127, IV), são exemplos das graves conseqüências que podem advir de um Processo Administrativo Disciplinar.

Em virtude dessa peculiaridade que o diferencia dos demais procedimentos, o saudoso professor Hely Lopes Meirelles já falava de uma “tendência da jurisdicionalização do poder disciplinar, que impõe condutas formais e obrigatórias para garantia dos acusados contra arbítrios da Administração”. [Meirelles, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 32ª Edição. Malheiros]

Se por um lado concordamos que não se pode transpor toda a normatividade referente aos feitos judiciais aos processos administrativos, por outro entendemos que as regras inerentes ao princípio do devido processo legal devem ser amplamente aplicadas àqueles processos de índole “restritivo-sancionatório”, vez que as sanções administrativas estão cada vez mais gravem, possuindo, ademais, aspectos imunes ao controle judicial.

Isto porque o mérito da decisão administrativa — salvo em ocasiões muito particulares que não cabe explanação neste pequeno ensaio — é insindicável pelo Poder judiciário, em razão da separação dos poderes. Mesmo que modernamente se entenda que o número de elementos do ato administrativo passíveis de controle de legalidade tenha se ampliado, ainda permanece um núcleo irreparável pela função jurisdicional, o que impõe uma apreciação na esfera administrativa cada vez mais zelosa.

Nesse sentido a voz sempre respeitada do professor Celso Antônio Bandeira de Mello, arrolando os objetivos dos processos administrativos, leciona que “o procedimento ou processo administrativo revela-se de grande utilidade para complementar a garantia de defesa jurisdicional, porquanto, em seu curso, aspectos de conveniência e oportunidade passíveis de serem levantados pelos interessados podem conduzir a Administração a comportamentos diversos dos que tomaria, em proveito do bom andamento da coisa pública e de quem os exibiu em seu interesse. Ora, tais aspectos não poderiam ser objeto de apreciação na via jurisdicional, que irá topar com o ato sem poder levar em conta senão a dimensão da legalidade. Aliás, Carlos Ari Sundfeld mostra que centrar o estudo da atividade administrativa apenas no ato administrativo, com prescindência de atenção ao procedimento, tem o inconveniente de deixar encoberta a tramitação seqüencial, e, portanto, a existência de um instrumental apto a abortar efeitos lesivos — o que é melhor do que simplesmente remediá-los.” [Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25ª Edição. Malheiros ]

Portanto, a participação obrigatória do advogado nos Processos disciplinares preveniria a ocorrência de nulidades no âmbito administrativo, festejando, entre outros, o princípio da economicidade, uma vez que evitaria ações judiciais para anulação de tais procedimentos.

Entendemos que a decisão do STF se fundamentou exclusivamente no princípio da segurança jurídica. Na linha do legítimo entendimento expresso pelo competente Advogado Geral da União, José Antônio Dias Toffoli, a manter-se o entendimento dado pelo STJ à questão, a obrigatoriedade da presença do advogado em PAD daria ensejo à demandas em que servidores, além de sua reintegração ao cargo, poderiam reclamar salários atrasados de todo o período em que dele estiveram ausentes.

Esse argumento, “concessa máxima vênia”, é destituído de substrato jurídico, olvidando-se, inclusive, da regra imperativa proclamada pela Constituição Federal, que assegura a apreciação do Poder Judiciário às lesões ou ameaças a direitos.

Por essa razão, emerge neste caso particular uma das mais contundentes críticas que se faz às Súmulas Vinculantes, qual seja, a de que elas obliteram a função precípua dos juízes de dizerem o direito caso a caso, compondo os conflitos de interesse na exata medida de suas realidades.

Em nossa vida profissional constatamos que não raro a Administração Pública comete equívocos de interpretação e aplicação das leis, como podemos citar a conduta corriqueira e pacífica no âmbito da Administração Pública Federal em impedir-se a participação dos advogados na oitiva dos acusados em processos disciplinares, acreditando achar amparo na norma inscrita no artigo 159, §1º, do Estatuto dos Servidores Públicos Federais.

A presença do defensor tecnicamente habilitado no acompanhamento dos feitos administrativos muitas vezes consegue demover o Administrador em aplicar interpretações equivocadas do ordenamento jurídico, fazendo valer as prerrogativas constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

Além dos direitos fundamentais individuais garantirem, o artigo 41 §1º, II da CF assegura o efetivo contraditório ao servidor público estável, prescrevendo que este somente perderá o cargo “mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa”.

A estabilidade e essas tantas prerrogativas conferidas aos ocupantes de cargo público são privilégios atribuídos em favor da própria sociedade, pois protegem o exercício da função pública de ingerências políticas momentâneas, que podem, eventualmente, interferir na apenação do funcionário.

A regra é que o princípio da indispensabilidade do advogado seja atendido, só podendo ser mitigada em procedimentos especiais e que não aniquilem princípios tão caros ao Estado Democrático de Direito, como o do efetivo direito de defesa.

Faz-se necessário, ainda, que a exceção a este comando normativo seja legitimada por efeitos materiais benéficos que dela possam decorrer, como ocorre nos casos da possibilidade do próprio coagido impetrar “habeas corpus”, e na facilitação do acesso aos Juizados Especiais e na Justiça Trabalhista até um certo limite.

Nem se alegue que a obrigatoriedade de ser acompanhado por causídico acarretaria ônus excessivo ao servidor processado, mesmo porque, às pessoas que comprovem insuficiência de recursos financeiros, o Estado prestará assistência jurídica através das — bem-vindas — Defensorias Públicas. (artigo 5º LXXIV e 134 da CF).

Em razão de sua envergadura constitucional, a norma do artigo 133 da Carta Política tem aplicabilidade imediata, descabendo interpretações que retirem por completo a sua normatividade. Quanto aos seus efeitos jurídicos, por mais que se entenda como sendo de eficácia contida, ou restringível, a sua normatividade já foi regulamentada pelo artigo 68 Lei Federal 8.906/1994, gravado nos seguintes termos: “Art. 68. No seu ministério privado o advogado presta serviço público, com os juízes e os membros do Ministério Público, elemento indispensável à administração da justiça.”.

Talvez por isso, segundo o professor José Afonso da Silva, “A Advocacia não é apenas uma profissão, é também um múnus e “árdua fatiga posta a serviço da Justiça” (Couture), como servidor ou auxiliar da Justiça. É um dos elementos da administração democrática da Justiça. Por isso, sempre mereceu o ódio e a ameaça dos poderosos.” [SILVA, José Afonso da. Comentário Textual à Constituição. 4ª Edição. Malheiros.]

Dessa forma, o comando que diz “o advogado é indispensável à administração da justiça” deve ser interpretada de forma a entender que o causídico serve como um fiscal da lei, prevenindo aplicação desvirtuada das regras jurídicas nos casos concretos.

Além da importância da OAB como instituição, o advogado em seu ministério particular exerce um serviço público, como bem assevera a Lei Federal supracitada, atendendo não só aos anseios de seu cliente no particular, mas também ajudando a consolidar a democracia no país.

Certamente a súmula em debate não reduzirá as milhares demandas jurídicas que aportam diariamente no Judiciário. Se por um lado, em um primeiro momento, ela pode constranger o ingresso ao judiciário para pleitear a nulidade fundada na simples ausência de defesa técnica por advogado, por outro, a falta desses profissionais qualificados acarretará uma enxurrada de pedidos de Segurança fundados em procedimentos viciados, que poderia ser impedida pela participação dos causídicos.

Acreditamos que a constante tensão existente entre a Administração e os Administrados — aparados pela defesa técnica do advogado — seja salutar, na medida em que esses debates feitos de maneira dialética acarretam mudanças positivas na doutrina e na jurisprudência administrativa.

É essa tensão, natural e amplamente construtiva, que se espera acontecer em uma República que se constituiu em Estado Democrático de Direito, firmando, cada vez mais, o tão sonhado modelo participativo. E não é a pretexto de diminuir as demandas judiciais que se pode sufocar a consagração de direitos individuais e coletivos triunfados após séculos e séculos de debates democráticos.

Revista Consultor Jurídico

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