Democracia ameaçada – Mato Grosso precisa de uma nova velha OAB

por Eduardo Mahon

Por uma nova velha Ordem dos Advogados. É proposital a provocação na frase. É que a Ordem dos Advogados do Brasil comemora os seus 75 anos em Mato Grosso à sombra de contradições que demandam superação, honestidade intelectual e uma dose substancial de consenso e não de conflito.

Essa septuagenária senhora, presente nos momentos marcantes da redemocratização brasileira, vive apenas de um passado glorioso, escravizando-se para polir os troféus com a ferrugem do tempo.

Isso porque a OAB perdeu o ímpeto da vanguarda, transformou-se em reduto político e politizante e fez dela mesma um trampolim para pretensões pessoais.

Além disso, rompe com o compromisso ético, ao pugnar por uma postura que não corresponde de forma alguma com as próprias práticas internas e, nesse ponto, amiúda-se a fundação de um dos maiores edifícios democráticos nacionais, sucumbindo à máxima “por fora, bela viola; por dentro, pão bolorento”.

De fato, as bactérias do poder estão fermentando a Ordem, tornando-a maior, mas esvaziando-a de vigor, tornando-a pior.

Vejamos algumas contradições: no discurso comemorativo dos 75 anos, o atual presidente Francisco Faiad tece as seguintes considerações: “Nesse ambiente de voto direto, de liberdade de expressão, estamos vendo nossa sociedade se embrenhar por caminhos tão escuros e aterrorizantes”.

Nestes termos, estamos incondicionalmente com ele. Ocorre que, os caminhos escuros e aterrorizantes tomam de assalto a própria OAB, que não privilegia o voto direto para seus representantes nos assentos judiciários. Ora, como falar em conquistas e garantias, se um dos grandes fiscais da democracia não a pratica de forma integral?

Ademais, recentemente pontuando o tema, estão dois advogados que se debruçam sobre o quesito democrático na Ordem – Renato Gomes Nery e Sebastião Carlos Gomes de Carvalho. O primeiro, pondera: “a OAB insiste em manter as reeleições indefinidas e luta fora para que não haja reeleições. Com a agravante de que não há limites para reeleições dentro da OAB. Não há democracia para a eleição do Conselho que é feita, através de chapas fechadas. O Conselho da OAB/MT é formado como se apenas um partido fosse o dono, por exemplo, de todas as cadeiras da Assembléia ou do Senado e da Câmara. Não existe a salutar presença da oposição. A Lista Sêxtupla para composição dos tribunais continua a ser feita pelo Conselho, quando seria democrático e salutar que ela fosse votada, através de eleições diretas dos inscritos e aprovados, submetidos ao voto da classe. E os seis mais votados seriam homologados pelo Conselho e encaminhados ao Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso que escolheria a lista tríplice e a levaria ao governador do estado que nomearia o desembargador”.

Acerca da proporcionalidade dos assentos no Conselho, regra básica da democracia contemporânea, mas não observada pela OAB, diz Sebastião Carlos: “se anteriormente era permitida a proporcionalidade na formação do Conselho estadual, essa regra foi alterada para admitir que a chapa que obtivesse a maioria simples de votos elegesse todos os conselheiros. Ora, essa disposição fere de morte o princípio da representatividade, cuja finalidade é dar voz a todos os segmentos interessados.

O resultado é que temos tido um Conselho Seccional que, ao invés de ser uma espécie de assembléia representativa das mais diferentes correntes dos advogados, hoje não vai além de ser um órgão que se conforma a uma única linha de pensamento e ação, muitas vezes amoldada pela vontade de um grupo ainda menor do eventual presidente do Conselho. Este é, sem sombra de dúvida, um processo incompatível com as exigências que a OAB tem feito às demais instituições nacionais”. Concordamos, in totum.

Portanto, há um grave distanciamento entre o discurso e a prática. E esse “vírus político” inoculado na OAB talvez tenha afetado profundamente a percepção de que a coerência é a maior viga de sustentação institucional da própria Ordem. Assim, fornecendo um discurso vazio à classe e à sociedade, os dirigentes da Ordem dos Advogados não só vulgarizam sua importância estratégica constitucional, como fazem de uma pauta ética mais um discurso pendular entre a necessidade e a conveniência. A credibilidade institucional do advogado foi rifada e esquartejada entre grupos.

No próximo artigo, abordarei ponto a ponto as contradições internas entre o discurso e a prática na OAB, auxiliando no regresso da instituição às trincheiras tradicionais da democracia, da ética, da liberdade, viés perdido pelos atos que não são dignos do empoado discurso do jubileu.

Justamente por isso somos por uma “nova” velha Ordem e não por uma velha Ordem nova. A diferença é marcante. Não precisamos apenas de caras novas, de discursos novos e sim de um comportamento inovador, rompendo com o abismo entre o discurso liberal-democrático e a prática política autoritária.

São basicamente quatro os problemas fundamentais: 1) representatividade; 2) publicidade; 3) retribuição; 4) eficiência. Muito claro que o maior deles reside fundamentalmente na questão democrática da representatividade interna e externa.

Pode ser inacreditável, mas a OAB prega limitação política do terceiro mandato eletivo, em sede de poder executivo. Mas, ainda que apregoe tal máxima democrática pela não perpetuação no poder, abre a brecha legal dela própria admitir um terceiro mandato para a Presidência, Conselho e demais estruturas que compõe o sistema representativo. Ou seja, atende ao adágio da hipocrisia — “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”.

Pergunta-se: qual a autoridade moral interna para, externamente, exigir a cláusula de limitação de poder, sendo que a própria instituição não se comporta adequadamente?

Nosso presidente da OAB/MT afirma que “nossos homens públicos tem fraquejado no cumprimento de suas obrigações. Nossos legisladores, com algumas exceções, são verdadeiras vacas de presídio de um exercício de poder danificado pela necessidade de auto-afirmação e perpetuação. Político hoje, infelizmente, virou raça pelo prisma do pejorativo”. Uma vez mais, somos obrigados a concordar ipsis literis.

Contudo, essa necessidade de perpetuação e auto-afirmação, fazendo da Ordem um trampolim político ou para outros cargos públicos é, também, uma constante. Daí que há um déficit entre o discurso e a prática, o que mina a estrutura ética e moral dos argumentos.

Não há representatividade em formatos liberais. O jovem advogado é discriminado. Não pode ter assento no Conselho Federal ou Estadual, não pode candidatar-se ao executivo e nem compor os quadros definitivos de alguns órgãos da instituição, defraudando uma discriminação inaceitável do “meio-advogado”, do “advogado pela metade”, aos olhos da Ordem. O argumento da experiência não convence ninguém, tratando-se a exclusão de mero caciquismo, mormente numa conjuntura de poucos profissionais como no Estado de Mato Grosso.

Ademais, abriu-se uma pseudo-discussão sobre a representatividade na OAB. Ilusão. Primeiro, que o Conselho é formado unitariamente, modelo político abandonado há mais de um século no Brasil. Não se forma proporcionalmente, dando assento a membros da situação e oposição, fazendo da representatividade uma fábula, um mito, onde representam apenas os atores de um determinado segmento político interno.

A chapa vence ou perde em sua inteireza, tornando-se opressivamente hegemônica, deixando de se legitimar por meio da composição, a impor verticalmente postura homogênea, o que sufoca a democracia.

Ainda no critério de representatividade, nada mais odioso do que o voto fechado, sigiloso, sem justificativa. E é justamente assim que a OAB procede na escolha de seus “representantes” para formar o quinto constitucional nos tribunais. Falsa democracia, por conseguinte. Essa falácia já evoluiu para dar lugar ao voto aberto, restrito no entanto, aos Conselheiros, o que é um “meio-termo”.

Além de aberto, pressuposto básico do estado democrático de direito, deve ser direto, porquanto o Conselho da Ordem, como vimos, representa a maioria simples dos advogados e não todos os advogados. Primando por eleições ou indicações indiretas, a Ordem não faz mais do que imitar os anos de chumbo, ratificando uma lista fechada de nomes que são simpáticos apenas aos conselheiros, ao establishment: e não à totalidade dos profissionais.

Novamente, socorro-me do apontamento do advogado Sebastião Carlos Gomes de Carvalho quando comenta que esperava uma discussão ampla a respeito da representatividade:

“Lamentavelmente, porém, não demorei por constatar que confiei demais. É que o assunto nunca mais foi ventilado, sequer foi justificada a razão do adiamento sine die. Comprovou-se então que os debates e as consultas que se anunciavam nunca foram motivo de preocupação para os dirigentes da entidade. E assim chegamos na proximidade da escolha de um desembargador pelo Quinto Constitucional com as mesmas regras antigas e superadas. E o silêncio sobre o tema é quase absoluto, como se a indicação de um advogado para a função de juiz da instância mais elevada do Poder Judiciário no Estado não se revestisse de importância fundamental para a sociedade. Muitos profissionais do Direito entendem esta questão como sendo de interesse exclusivo para os advogados quando, na verdade, a função e o cargo de Desembargador é da maior relevância para toda a sociedade, repito.”

Constatada a distância entre o discurso e a prática, restam as três últimas questões capazes de nos fazer concluir a deslegitimação da Ordem dos Advogados como uma instituição em prol da democracia real.

As reuniões do Conselho são, de fato, abertas. Tornaram-se, ao longo do tempo, mais divulgadas, mas nem tudo é público, de fato. Temos à disposição a internet e as televisões fechadas ou abertas como instrumentos de acesso efetivo ao público. Assim sendo, não há qualquer razão pela qual todos os atos, decisões, discussões não sejam disponibilizadas em tempo real, com resultados de julgamentos e outras decisões, em atas digitalizadas acessíveis a qualquer cidadão.

Outro problema grave é a ausência de retribuição, isto é, o retorno em qualidade corporativa das anuidades arrecadadas. Há, de fato, serviços que são úteis e imprescindíveis à advocacia de forma geral. Os postos avançados de apoio, o transporte coletivo, são poucos exemplos do retorno esperado pelo advogado que, aliás, tem pouca chance real de escalonar essa sua participação, conforme o grau da militância.

Isso porque não há proporcionalidade no pagamento de anuidades, gerando uma insuperável crise – de um lado, o jovem advogado tem obrigações integrais com as pesadas taxas anuais para a manutenção do direito de advogar mas, de outro, não pode concorrer em pé de igualdade, ainda que adimplente, pontual, zeloso com suas obrigações.

A procuradoria interna da OAB é uma conquista marcante. É preciso muito mais. Promover experiências no seio da Ordem, instrumentalizando os profissionais por meio de mecanismos tecnológicos que possibilitem advogar fora do escritório (se houver), atender em trânsito, auxiliar advogados do interior no acompanhamento de processos na capital, sobretudo junto à segunda instância estadual, são requisitos básicos para afirmar categoricamente que há retribuição proporcional aos valores arrecadados.

Eficiência no controle de qualidade que a sociedade espera da advocacia é uma tragédia para a OAB. E não adianta ficar imputando a culpa nas instituições de ensino, meramente, se a Ordem não cria instrumentos que possam auxiliar os estudantes a mensurarem se os cursos são, eles mesmos, bons ou maus. A lógica do mercado pode ou não ser incompatível com a qualidade, restando à fiscalização institucional a missão de deflagrar a conscientização do corpo discente. E também não adianta apontar culpadas apenas as faculdades (que têm sim uma enorme parcela de culpa, senão a maior), quando a OAB não indica o que seria bom, um padrão, uma ementa, um modelo mínimo de qualidade.

Daí que o discurso de nosso presidente: “Aqui em Mato Grosso, um quadro mais estarrecedor: último colocado em aprovação no Exame de Ordem Unificado”, torna-se inválido, quando ele mesmo é docente de uma das instituições de ensino que não tem médias aceitáveis de aproveitamento. Há uma comissão de ensino jurídico que bem poderia revolucionar o padrão de ensino mato-grossense, bastando para isso que os seus conselheiros não fossem, eles mesmos, professores da rede privada ou pública das quais deveriam fiscalizar. Ora, é básico que o fiscal não pode andar de mãos dadas com o fiscalizado, sob pena de confundirem-se os papéis institucionais de lado a lado.

Bastaria, enfim, que a comissão de ensino não fizesse mais do que divulgar resultados por instituição de ensino, disparando fiscalizações internas, ouvindo a comunidade estudantil, docente e constatando problemas em bibliotecas, ementas, avaliações, enfim, um conjunto de fatores que afeta sim o rendimento nos exames profissionais. Ora, criticar é fácil, apontar o dedo de que o nível jurídico é sofrível é uma postura bastante confortável para, inclusive, manter a exclusão discriminatória do jovem advogado.

Isso é uma ideologia de fácil percepção. O que não se quer, propositalmente, é apontar os caminhos, instaurando apenas o descrédito das instituições de ensino e dos jovens advogados. Essa é uma estratégia cruel. Se a Ordem realmente quer contribuir para aumentar a qualidade do ensino deve, ela mesma em primeiro lugar, apontar os caminhos. E, paralelamente, intervir diretamente com ações, denúncias e outras medidas de represália ao que chama (e concordo) de “estelionato educacional”.

Infelizmente, faço minhas as conclusões de Renato Gomes Nery: “A OAB/MT vem de ´ladeira abaixo´, há muito tempo, por uma série de atropelos que vem sendo cometidos ultimamente. A saber: não tomou qualquer providência na questão dos ‘juizes pingüins’; não participou e nem opinou na reestruturação das Varas e Comarcas do Estado de Mato Grosso; o seu Presidente teve que abortar uma candidatura a um cargo político, com um imenso desgaste para a Instituição e, por último, o Estado de Mato Grosso amargou o último lugar no Exame de Ordem Nacional”.

De forma que concluo ser a hora dos estudantes, dos jovens advogados e dos renomados profissionais que tenham paixão pela liberdade e pela democracia, unirem-se em torno de um projeto claro, sem sofismas, sem interesses partidários e pessoais, com escopo de legitimar o que está ilegítimo, validar o que está inválido, recuperar o que está falido. E que, sobretudo, não queiram fazer da Ordem um reduto, um gueto, um quintal e saibam deixar o tempo passar e, com ele, também os cargos.

Revista Consultor Jurídico

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