Desigualdade dos desiguais – Pela lei, pequenas empresas têm vantagens em licitações

por Giuseppe Giamundo Neto

Como se sabe, as microempresas e empresas de pequeno porte representam um dos principais alicerces da economia brasileira. São responsáveis por uma boa parcela da geração de renda e de empregos no país.

Ciente dessa importância socioeconômica, o legislador constituinte inseriu, através da Emenda Constitucional 6/95, o inciso IX ao artigo 170 da Constituição Federal, para estabelecer que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, deve observar o princípio do “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País”.

Com base nessa previsão constitucional foi editada a Lei Complementar 123, de 14/12/2006, que instituiu o “Estatuto Nacional das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte”, criando um conjunto de normas gerais voltadas ao tratamento diferenciado e favorecido para as atividades empresariais de pequeno porte.

Pretendendo regulamentar o tratamento favorecido a estas empresas, o estatuto estabeleceu privilégios na participação de licitações públicas para a aquisição de bens e serviços.

Analisando-se a Lei Geral das Micro e Pequenas Empresas, verifica-se que a mesma foi editada com um intento bastante positivo — o de facilitar o acesso das microempresas e empresas de pequeno porte ao mercado —, materializando, efetivamente, o princípio do tratamento favorecido a essa categoria de empresas previsto no artigo 170, inciso IX, da Constituição Federal.

São muito positivas, por exemplo, as disposições legais relativas à comprovação da regularidade fiscal das microempresas e empresas de pequeno porte. A lei estabelece que tal comprovação deve ser exigida somente para efeito de assinatura do contrato. Além disso, caso haja alguma restrição, é assegurado o prazo de dois dias úteis para a regularização da documentação, o pagamento ou o parcelamento do débito.

Esse tipo de previsão permite que um número maior de empresas (micro e pequenas) participe das licitações públicas, tendo em vista que a comprovação prévia da regularidade fiscal se apresenta muitas vezes como um fator inibidor de ingresso dessa categoria em certames licitatórios.

Também é interessante a possibilidade de a União, os estados e os municípios — desde que previsto na legislação do respectivo ente — promoverem licitação destinada exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações cujo valor seja de até R$ 80 mil; ou que estabeleça cota de até 25% do objeto para a contratação dessas empresas em certames para a aquisição de bens e serviços de natureza divisível.

Na mesma linha, o diploma em comento ainda assegura, em seu artigo 44, caput, como critério de desempate, preferência de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte. Até aí, a inovação é muito bem-vinda, na medida em que plenamente observado o propósito da Constituição Federal ao conferir tratamento favorecido às empresas mencionadas.

Contudo, o parágrafo 1º do mesmo dispositivo define que se entendem por “empate” aquelas situações em que as propostas apresentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte sejam iguais ou até 10% superiores à proposta mais bem classificada. Nessa hipótese, a licitante favorecida (micro ou pequena) poderá apresentar proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame, situação em que será adjudicado em seu favor o objeto licitado.

Em que pese a intenção do legislador ter, certamente, sido das melhores -pautada no princípio do tratamento favorecido a empresas de pequeno porte-, a margem de 10% conferida para efeito de empate se mostra excessiva e acaba por conferir vantagem extrema, e mesmo desleal, nas licitações públicas, o que invade, por conseguinte, o campo de outros princípios de mesmo quilate expressos ou implícitos no texto constitucional, quais sejam, o da igualdade de condições a todos os concorrentes, o da razoabilidade, o da impessoalidade e o da economicidade (o qual, embora não expresso no texto constitucional, se harmoniza integralmente ao princípio da eficiência). A finalidade da licitação, é sabido, é selecionar a melhor proposta à Administração Pública. A Lei Federal 8.666/93 afirmou que, além disso, a licitação visa a assegurar a realização do princípio da isonomia (artigo 3º).

Contudo, o que se tem visto na prática, especificamente quanto ao benefício do desempate permitido pela Lei das Micro e Pequenas Empresas, é que muitas empresas favorecidas têm-se utilizado dessa previsão como ferramenta para se sagrar vencedoras de certames com preços significativamente superiores aos que proporiam caso competissem em igualdade de condições com as demais empresas.

Cientes de que terão a chance de reduzir a sua proposta ao valor da menor oferta apresentada por empresas de porte maior, algumas empresas de pequeno porte têm evitado baixar a sua proposta ao mínimo que lhes seria possível, com a estratégia de, utilizando-se da margem dos 10% de desempate, reduzir apenas o necessário para vencer o certame. Tal prática, contudo, não se coaduna com os princípios constitucionais destacados, sendo de rigor que haja uma revisão pontual na Lei Complementar 123/06 para suprimir a previsão que assegura, como critério de desempate, preferência de contratação a empresas de pequeno porte ou — que a nosso interpretar se afigura mais razoável — manter o benefício, apenas reduzindo a margem percentual que define o empate. A regra da igualdade, pois, cuja materialização, conceituada por Rui Barbosa, se dá aquinhoando-se desigualmente os desiguais — e, no presente caso, com o tratamento favorecido das empresas de pequeno porte em relação às demais —, deve ser operada com a observância e o respeito aos princípios norteadores do sistema jurídico aplicáveis à espécie, calcados em critérios razoáveis que evitem opções arbitrárias ou abusivas.

[Artigo originalmente publicado no jornal DCI de segunda-feira (7/7)]

Revista Consultor Jurídico

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