por Guilherme Guimarães Feliciano
Tramita no Senado o PLC 83, de 2008, que “define o crime de violação de direitos e prerrogativas do advogado”. Pelo projeto, haveria no sistema penal brasileiro um novo crime, a saber, o de violar direito ou prerrogativa do advogado, estabelecido no artigo 7º da Lei 8.906, “impedindo ou limitando sua atuação profissional, prejudicando interesse legitimamente patrocinado”, cuja pena variaria de seis meses a dois anos, sem prejuízo da sanção correspondente à violência. A proposta, já aprovada na Câmara dos Deputados, seguiu para a Comissão de Constituição e Justiça do Senado.
As associações de juízes e membros do Ministério Público têm oposto franca resistência à sua aprovação, por motivos óbvios: o projeto de lei é, do ponto de vista técnico-jurídico, inconstitucional; e, do ponto de vista político-legislativo — em tempos de Direito Penal mínimo, a la Alessandro Baratta —, é, no mínimo, inconveniente. Diga-se o porquê.
No aspecto técnico-jurídico, o tipo penal que se propõe viola o que se convencionou chamar, em “juridiquês”, de princípio da taxatividade penal. Assis Toledo dizia, seguindo a tradição alemã, que a norma penal tem de ser ditada em “lex scripta, stricta, certa et praevia” (lei escrita, estrita, certa e prévia). E é como deve ser: não pode a lei prever como “crime” condutas absolutamente genéricas, sem qualquer conteúdo concreto que possa servir de referência ao cidadão comum. Assim, por exemplo, não pode ser crime a conduta de “mau procedimento”, ou de “atentado contra o interesse público”, ou de “molestamento de cetáceos” (como havia, até 1998, na legislação brasileira), porque não se sabe exatamente o que significam tais expressões; dão-se, em contrapartida, poderes arbitrários ao juiz, que decidirá, exclusivamente conforme o seu próprio caldo de cultura, sobre o que seja ou não crime.
É o que ocorre no caso do PLC 83/2008. Como as prerrogativas dos advogados estão previstas no artigo 7º da Lei 8.906/1994, poderiam configurar o novo crime, em tese, condutas tão isentas e corriqueiras como o bloqueio temporário da passagem de um advogado em certa blitz policial, a ausência de cadeiras em sala de audiência para que o causídico se pudesse acomodar, ou mesmo alguma discussão de trânsito em que um cidadão qualquer se dirigisse ao causídico de forma desabonadora, em razão da sua profissão. Na redação original do projeto, que nem sequer limitava o crime aos direitos e prerrogativas desse artigo 7º, até mesmo questões ligadas à partilha e ao inadimplemento de honorários poderiam suscitar acusação de crime de violação de prerrogativas.
Da mesma forma, o projeto de lei é inconveniente na dimensão político-legislativa. Como seria inconveniente, por exemplo, um texto de lei que criminalizasse a conduta de “violar as prerrogativas do magistrado, impedindo ou dificultando o exercício e a eficiência da jurisdição” (que, a valer a tese política de sustentação do PLC 83/2008, teria igual valor republicano): tipificado esse “crime”, poderiam por ele responder advogados de todos os ramos, instâncias e locais, bastando para tanto a interposição pura e simples de algum recurso protelatório. Nada mais surreal.
Ademais, deve-se ter em conta o risco de que a nova figura penal sirva à perseguição corporativa de autoridades e cidadãos comuns. A esse propósito, merece menção a desconcertante iniciativa da OAB-SP de instituir uma “lista negra” em detrimento de tantos quantos tenham sido “condenados”, no âmbito interno de sua Comissão de Prerrogativas, em procedimentos de desagravo e moção de repúdio, pelas mais diversas razões.
Há ali juízes das mais diversas competências (estaduais, federais e do Trabalho), parlamentares (vereadores de vários municípios), autoridades do Poder Executivo, membros do Ministério Público, policiais civis e militares, sindicalistas, gerentes de bancos, conselheiros comunitários e até mesmo jornalistas (assim, por exemplo, ali está — e se decline o nome apenas neste caso, porque se maltrata a imagem insuspeita de alguém que devotou a vida às causas da cidadania — o nome do jornalista Elio Gaspari).
Tal “cadastro” é francamente disponibilizado na rede mundial de computadores, com danos sensíveis ao nome e à imagem de todos os que — justamente ou não — se tenham envolvido em entreveros com advogados ou com a própria instituição. Pois bem, à luz da nova lei, seriam todos esses, apenas por constarem do malsinado índex, criminosos à partida? Afinal, constam da lista exatamente porque, na percepção da entidade, violaram em algum momento direitos ou prerrogativas de advogados.
Tal indagação revela como, no limite, a criminalização em pauta serviria, não raro, para represálias de natureza corporativa. Não é — registre-se isso muito claramente — da natureza ou mesmo da tradição da OAB assim proceder, mas o instrumento, uma vez disponibilizado, facilitaria os abusos. Ofender-se-ia, ademais, a imunidade de juízes, de promotores e até mesmo dos próprios advogados, quando em conflito com outros advogados. E, para mais, se comprometeria a independência e o poder de polícia dos magistrados na condução de processos e audiências. Ter-se-ia o caos: nas sessões “mandaria” quem mais (ou melhor) gritasse e, na seqüência, se abarrotariam as varas e os tribunais com processos penais de violação de prerrogativas, por um lado, e de desacato (até como forma de defesa), por outro.
Não se pretende, com tais considerações, arranhar ou desmerecer, em milímetros sequer, o papel vital da Ordem dos Advogados do Brasil na construção da democracia brasileira recente. Os advogados têm, é certo, prerrogativas inalienáveis. E é bom que as tenham. Mas não à custa das liberdades públicas, tampouco a reboque de um Direito Penal do insólito.
Guilherme Guimarães Feliciano, juiz do Trabalho, secretário-geral da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 15.ª Região, doutor em Direito Penal e livre-docente em Direito do
Trabalho pela Faculdade de Direito da USP, publicou, entre outros, o livro Teoria da Imputação Objetiva no Direito Penal Ambiental Brasileiro (2005)
Revista Consultor Jurídico