O presidente nacional da OAB, Cezar Britto, optou por um discurso político na fala reservada aos advogados na cerimônia de posse de Gilmar Mendes na presidência do Supremo Tribunal Federal nesta quarta-feira (23/4). Britto disparou críticas ao sistema de reedição de Medidas Provisórias feitas pelo governo, ao avanço do Estado policial e à proposta que altera o pagamento de precatórios.
Na presença do presidente Lula, o presidente da OAB criticou também manobras políticas pelo terceiro mandato, que tachou de “casuísmo”. Para Britto, deve-se esperar que o STF conserve o espírito e a força da Constituição. Ele lembra que a Carta de 1988 foi concebida “quando pleiteávamos em praça pública votar livremente para presidente da República, sem a eternização de mandatos e com alternância de poder, jamais cogitando de recorrer a casuísmos”.
Britto sustenta que a proposta sobre os precatórios “desmoraliza as decisões do Poder Judiciário, legaliza a inadimplência para com os cidadãos e transfere para estes a responsabilidade da má gestão, descaso ou corrupção na condução da coisa pública”.
Para ele, o Congresso deve tirar de pauta a PEC 12, que classifica de PEC do Calote, por adiar o pagamento dos precatórios, submetidos a leilões por Estados e municípios. “Se a questão é pagar a dívida, que se pague primeiro a dívida para com o cidadão”, propôs o presidente da OAB.
Sobre as MPs, o advogado afirma que foram criadas para servir de exceção e não de regra. No entanto, ela “transformou-se em rotina o que deveria existir apenas em casos de urgência e relevância”. Britto afirma que a OAB espera que Congresso Nacional “produza um novo instrumento legal de controle das medidas provisórias, que têm provocado sua permanente paralisia”.
Para o presidente da entidade, a mudança do sistema de edições de MP “não é apenas uma questão de honra para o Poder Legislativo, mas imperativo constitucional, pois a banalização das medidas provisórias é agressão permanente à Constituição, a que espantosamente nos acostumamos”.
No discurso, Britto afirma que um novo desafio colocado à sociedade é enfrentar o estado policial. Ele diz que, embora tal estado tenha sido revogado pela Constituição, tem mostrado suas garras com assiduidade no Brasil desde os atentados do 11 de Setembro.
“Prisões clandestinas se espalham pelo mundo. Revoga-se o direito de defesa. Países são invadidos ou economicamente boicotados. A tortura ganha a proteção legal da admissibilidade”, diz.
Nesse cenário, dados da CPI dos Grampos revelam que mais de 409 mil escutas foram autorizadas judicialmente. Britto diz que, ao invés de coibir o abuso dos grampos, os órgãos governamentais estão disputando tem o maior poder de bisbilhotagem. “O Estado de bisbilhotagem, subproduto do Estado Policial, rasga a Constituição, sepulta a democracia, atropela a cidadania e nos remete a tempos obscuros da ditadura”, diz o advogado.
O presidente da OAB ressalta que se instalou no Brasil um clima de medo e terror entre os cidadãos. “Investiga-se tudo e a todos. Nem mesmo esta Corte ou qualquer autoridade ou cidadão presente, nem mesmo o Presidente da República está a salvo”, acrescentou Britto.
Leia o discurso
Senhoras e Senhores,
Inicialmente saúdo, em nome da advocacia brasileira, os personagens centrais desta cerimônia: os novos presidente e vice-presidente deste Supremo Tribunal Federal, ministros Gilmar Ferreira Mendes e Antonio Cezar Peluso.
Trata-se de duas eminências do Direito e da magistratura no Brasil, que dispensam maiores apresentações ou acréscimos biográficos.
O que posso dizer, em síntese, é que estão à altura dos cargos de que hoje se investem.
Da mesma forma, saúdo a ministra Ellen Gracie Northfleet, pela gestão impecável à frente desta Corte, em que figurou como a primeira mulher a presidi-la no país. Honrou a história do Supremo e, simultaneamente, derrotou aqueles que, teimosamente, se recusam a acreditar na igualdade entre todos os seres humanos.
Foi, durante dois anos, interlocutora solícita da advocacia, enfrentando com firmeza os múltiplos desafios que lhe foram encaminhados.
A Ordem dos Advogados do Brasil sente-se honrada em participar deste ato solene, no papel institucional que lhe cabe de representante da sociedade civil brasileira e da advocacia.
Por sua importância, ninguém pode ficar insensível ao que ocorre neste momento tão especial para a República. Não sem razão, reúne a atenção dos representantes dos seus três Poderes, de diversas autoridades e dos cidadãos espalhados pelos cantos e recantos desse Brasil continental.
É, por isso mesmo, ocasião preciosa e rara, e favorece o diálogo franco, direto e cortês, que deve e precisa ser a essência do Estado Democrático de Direito.
Democracia pressupõe diálogo, convívio civilizado de contrários, transparência de atitudes e fidelidade absoluta aos preceitos republicanos e ao interesse público.
Democracia implica, sobretudo, um Poder Judiciário ativo, altivo e preparado para fazer da Justiça palavra conhecida de todos.
Requer um Supremo Tribunal Federal consciente da sua importantíssima missão de guardião da Constituição Federal, o responsável pela última palavra na vida de um país.
Eis porque não poderia a sociedade brasileira deixar de registrar a sua esperança de que esta Corte, agora renovada em sua direção, conserve o espírito e a força de uma Constituição que é fruto de momento raro na vida da República.
Foi concebida quando a cidadania ousou romper com o período obscuro centrado na lógica autoritária de uma ditadura militar. Gerada quando passamos a rejeitar a intromissão externa, sobre a nossa política econômica; quando se tornou inaceitável a concentração de terras improdutivas em um país de bóias-frias; quando tenebrosas transações, furando a rígida censura à imprensa, se tornavam conhecidas da Nação; quando nos cansamos de ouvir que era preciso primeiro crescer o bolo para dividi-lo depois.
Germinou, enfim, quando fomos à rua pedindo a volta daqueles que partiram no “rabo de foguete”; quando caminhávamos contra o vento, querendo nos reunir em associações e sindicatos e exprimir o nosso pensamento, sem medo de censura, prisões ou perseguições políticas; quando pleiteávamos, em praça pública, votar livremente para Presidente da República, sem eternização de mandatos e com alternância de poder, jamais cogitando de recorrer a casuísmos.
Enfim, uma Constituição que nasceu quando a Nação queria de volta a liberdade roubada, sonhava com a igualdade ainda não conquistada e apostava na fraternidade como melhor forma de solução de conflitos.
Duas décadas depois, governo após governo, emendas após emendas, pasmos, percebemos que a Constituição foi sendo modificada, diminuída, esquartejada em seu espírito.
A globalização econômica passou a deixar suas impressões digitais no que parecia ser uma terra mais garrida.
O capital financeiro fez substituir o sonho social tão esperançosamente projetado. O Brasil foi privatizado. Estatais vendidas. A educação mercantilizada e a saúde pública condenada à inanição. Até mesmo o trabalho, orgulhosamente exibido como fator de dignidade humana, transformou-se em mero custo de produção.
Essa assombrosa mudança de paradigma fez o eminente jurista Celso Antonio Bandeira de Melo registrar, desapontado, que as novas emendas criaram uma Constituição completamente diferente daquela aprovada em 1988.
O seu espírito já não é o mesmo. De defensora da soberania, a Constituição de 88 se transformou em espectro do que pretendia ter sido. Rendeu-se ao capital especulativo antes mesmo da sua maioridade.
Basta que observemos as históricas taxas de juros praticadas no Brasil para compreendermos que a Constituição foi mutilada em um de seus principais fundamentos.
Definitivamente, após 56 (cinqüenta e seis) emendas, esta não é a Constituição que Ulysses Guimarães, no dia 05 de outubro de 1988, batizou de Constituição-Cidadã.
E, para agravar, o Congresso Nacional ainda não cumpriu sua obrigação constitucional de realizar a Auditoria da Dívida Externa, que, hoje mais do nunca, se faz urgente porque está sendo paga com o aumento assustador da dívida interna.
Se o Parlamento deseja efetivamente uma pauta positiva, deveria cuidar melhor dessa questão, antes mesmo do julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, ajuizada pela OAB com esta finalidade. Tempo não lhe falta.
E, se lhe faltasse, poderia retirar da pauta a famigerada PEC 12 – a PEC do Calote -, proposta que desmoraliza as decisões do Poder Judiciário, legaliza a inadimplência do Estado para com os seus cidadãos e transfere para estes a responsabilidade pela má gestão, descaso ou corrupção na condução da coisa pública.
Se a questão é pagar a dívida, que se pague primeiro a dívida para com o cidadão! Descumprir um precatório desrespeita não apenas a cidadania, mas também o Poder Judiciário, já que é uma decisão sua que estará sendo violada.
A OAB espera que o Congresso Nacional assuma o compromisso que lhe atribuiu a Constituição, tão logo, é claro, produza um novo instrumento legal de controle das medidas provisórias, que têm provocado sua permanente paralisia.
Medida provisória é exceção — não regra. Transformou-se em rotina o que deveria existir apenas em casos de urgência e relevância.
Nada mais urgente e relevante, hoje, que rever essa distorção, transmitida (e aceita) como herança de governo para governo, desde o primeiro da redemocratização.
Mudar isso é não apenas questão de honra para o Poder Legislativo, mas imperativo constitucional. A banalização das medidas provisórias é agressão permanente à Constituição, a que espantosamente nos acostumamos!
Senhoras e Senhores,
É evidente que nem tudo tem sido derrota ou revés. O Brasil hoje constata melhoras concretas nos mais diversos índices sociais. A inclusão social começa a ganhar corpo nas pautas de formulação das políticas públicas.
São dados que nos alentam.
Nos alentam e animam a um novo desafio: o de enfrentar o Estado Policial, que, embora revogado pela Constituição de 1988, tem mostrado suas garras com assustadora assiduidade.
A democracia vive, hoje, em nosso Planeta, o desafio de sobreviver às investidas da “lógica policialesca”. Desde o atentado às torres gêmeas, nos Estados Unidos, em 2001, as liberdades civis, a pretexto do combate ao terrorismo, têm sido alvo de ataques preocupantes.
Prisões clandestinas se espalham pelo mundo. Revoga-se o direito de defesa. Países são invadidos ou economicamente boicotados. A tortura ganha a proteção legal da admissibilidade. Quebram-se os sigilos que protegem o ser, embora se mantenham os que guardam o ter. Até mesmo assassinatos, como o do brasileiro Jean Carlos, em Londres, são admitidos.
Fernando Amalric, representante do papa Inocêncio III, na Cruzada dos Albigenses, que legitimou o massacre de quinze mil homens, mulheres e crianças, com a máxima “mate-os todos, Deus reconhecerá os seus”, seria um grande teólogo deste Estado Policial.
Certamente a nova palavra de ordem será: “Prenda, torture e assassine todos, deixe que a história no futuro aponte os inocentes”.
Nós, que não vivemos esse tipo de drama, não estamos, no entanto, preservados de seus efeitos. Aqui, a “lógica policialesca” também ousa se instaurar. Volta-se a dizer que bandido bom é bandido morto, especialmente quando metralhado exemplarmente do alto de um helicóptero.
Começa-se a pregar que no combate ao crime tudo é permitido.
Dados da CPI dos Grampos revelam que mais de quatrocentos mil escutas telefônicas foram autorizadas judicialmente. E, longe de combatê-las ou coibir o seu abuso, as autoridades, hoje, disputam quem tem o maior poder de bisbilhotagem sobre a vida dos outros.
O Ministério Público gaba-se dos seus aparelhos, as polícias federal e estaduais da mesma forma. Até mesmo a Abin, que não tem poder de investigação, também quer meter o bedelho neste mundo de controle.
Instaurou-se no Brasil um clima de medo e terror entre os cidadãos. Ninguém escapa das garras dos grampeadores de plantão. Investiga-se tudo e a todos. Nem mesmo esta Corte ou qualquer autoridade ou cidadão presente, nem mesmo o Presidente da República está a salvo.
O Estado de bisbilhotagem, subproduto do Estado Policial, rasga a Constituição, sepulta a democracia, atropela a cidadania e nos remete a tempos obscuros da ditadura.
Parece até que estamos a ler uma fotografia do Grande Irmão, criada por George Orwell, com a legenda “O Grande Irmão está a observar-te”.
Por essa razão, a OAB tem se empenhado em denunciar ações que atropelam fundamentos elementares do Estado Democrático de Direito, a começar pelas prerrogativas da advocacia – que são, na verdade, prerrogativas do cidadão, já que a ele, à sua defesa, se destinam.
Deflagram-se operações que põe em cena um arsenal de práticas ilegais e autoritárias: grampos ambientais em escritórios de advocacia, prisões espalhafatosas, cerceamento do trabalho dos advogados e a criminalização da própria atividade advocatícia.
Quase sempre essas operações findam na libertação da maioria dos detidos, com ações de reparação junto à Justiça, por danos morais, a serem pagas pelo contribuinte.
O resultado, como se vê, sai pela culatra em todos os sentidos, gerando frustração e descrença na eficácia do Estado no combate ao crime — e, por extensão, fortalecendo o próprio crime.
A busca de eficiência operacional no combate ao crime é meta permanente de qualquer sociedade que se preze — e tem na Ordem dos Advogados do Brasil uma de suas instâncias de sustentação mais obstinadas.
Entretanto, para que se cumpra, sem danos colaterais, é preciso que não se ceda à tentação de obtê-la fora dos limites constitucionais. Quando isso acontece, repito, o triunfo é apenas aparente.
Sempre que a lei é violada, o triunfo é do crime e consolida-se a nefasta idéia de que o mal é mais poderoso que o bem e só pode ser combatido pela contramão.
O Brasil, que viveu duas décadas de ditadura militar, sabe bem o que significa fortalecer os que detêm o poder das armas, o controle da imprensa e as rédeas de julgamentos.
Não podemos — repito — restabelecer uma mentalidade revogada pela Carta Constitucional de 1988.
Senhoras e Senhores,
Sabemos que nenhum de nós é isoladamente responsável pela crise de identidade que atinge a Constituição Federal. Mas cada um de nós fazendo a parte que nos cabe. Desde que não fiquemos calados, pois, como bem ressaltou Martin Luther King Jr: “o que me preocupa não é o grito dos maus e sim o silêncio dos bons”
A advocacia conclui esta saudação reiterando sua esperança e expectativa no aprimoramento das relações entre as instituições.
Desse bom relacionamento, depende a preservação dos fundamentos da democracia, cuja reconquista custou suor, sangue e lágrimas ao povo brasileiro. Não podemos trair essa luta.
Democracia e cidadania são palavras-chaves nesse processo. Que sejam nossa Guia na construção de um país mais justo e próspero. E que a geração que ousou pensar uma nova Constituição para o seu país, agora ocupando os postos mais relevantes e estratégicos, nunca possa dizer, parodiando Belchior, “que apesar de termos feito tudo que fizemos, ainda somos os mesmos, e vivemos, como nossos pais”.
Afinal, como complementou Bertolt Brecht, “o que devemos aprender com os antigos é como fazer o novo”.
Muito obrigado.
Cezar Britto
Revista Consultor Jurídico