Dono da banca – Briga societária em escritório mineiro agita a advocacia

por Lilian Matsuura

A OAB só pode julgar aspectos formais dos contratos de sociedades de advogados. Se a discussão contratual envolve a necessidade de produção de provas periciais e a declaração de incapacidade civil de um dos sócios, é o Judiciário quem deve decidir a questão.

O entendimento foi firmado pelo Órgão Especial do Conselho Federal da Ordem no dia 10 de março ao julgar a alteração do contrato societário do escritório Décio Freire & Associados. Com a decisão, o juiz da 29ª Vara Cível de Belo Horizonte é quem deve resolver a disputa pelo controle do escritório.

Décio Freire possui 100% do capital social da banca desde 2005, ano em que morreu seu sócio José de Castro Ferreira — que foi o primeiro advogado-geral da União do país. Os filhos de Castro Ferreira argumentam que a transferência das cotas do pai ao sócio foi ilegal.

No processo judicial, Maria Paula Villella Vieira de Castro, filha de Castro Ferreira, sustenta que a segunda mulher de seu pai, Ana Amélia Menna Barreto, se aproveitou da incapacidade do marido para fazer com que ele passasse sua parte do escritório para ela. Castro Ferreira tinha 50% do escritório. Depois de um Acidente Vascular Cerebral, transferiu 40% para a mulher e ficou com 10% das ações da banca. Em pouco tempo, ele passou o restante das cotas que possuía para Ana Amélia, que repassou todas para Décio Freire.

Para o advogado Guilherme de Oliveira Cruz, que defende o Décio Freire no caso, a compra das cotas foi perfeitamente legítima: “O sócio remanescente (Décio Freire) foi envolvido indevidamente em uma briga de família”. De acordo com Cruz, a metade do escritório foi comprada da viúva de Castro Ferreira com a anuência dele. E lembra que o fato de terem vivido juntos por 25 anos legitima suas decisões. O advogado ainda sustenta que os filhos só alegaram que o pai era incapaz depois de sua morte e não levantaram qualquer objeção sobre a venda das cotas do escritório enquanto ele estava vivo.

Para o relator do processo no Órgão Especial do Conselho federal da OAB, Almino Afonso Fernandes, quando a filha de Castro Ferreira procurou o Judiciário, reconheceu a incompetência da Ordem para resolver a questão. A ação judicial foi proposta em março de 2006.

“Para as alegações de incapacidade civil a competência foi projetada para o Poder Judiciário, bem como se faz necessário vasto campo probatório tais como: oitiva de testemunhas, depoimento de médicos atestantes, prova pericial grafotécnica e sobre as cotas, só possíveis perante aquele poder, com amplo contraditório”, afirmou o relator.

Segundo ele, não cabe e não pode a OAB entrar no mérito da questão como fez a 3ª Câmara do Conselho Federal, “sob pena de consagrar, inclusive, cerceamento da ampla defesa com todas as provas em direito admitidas, o que consistiria, em última análise, em violação do próprio texto constitucional pátrio”. Até esta decisão, muitas outras foram conflitantes. A questão é controversa.

Sociedade de futuro

O escritório nasceu em 1993 e se chamava Jorge Moisés Júnior Advocacia. Décio Freire entrou na sociedade em agosto de 1994. Nessa época, José de Castro Ferreira atuava como Consultor-Geral da República, durante o governo de Itamar Franco. Em seguida foi nomeado o primeiro advogado-geral da União. Assim que deixou o cargo decidiu voltar para a advocacia privada e entrou na sociedade de Moisés Júnior e Freire.

Três anos depois, Moisés Júnior deixa a banca. Décio Freire fica com 50% e Castro Ferreira 50% das cotas. A parceria gerou grandes frutos. Além da filial no Rio de Janeiro e em Brasília, inauguraram uma em Belo Horizonte e outra em São Paulo.

José de Castro Ferreira tinha sete filhos, três deles advogados. Dois netos também seguiram a profissão, como que uma tradição familiar. O advogado era casado, em regime de separação universal de bens, com a advogada Ana Amélia Menna Barreto de Castro Ferreira. E fumava muito.

Em 2000, sofreu um AVC. Dois anos depois, a Ana Amélia tornou-se sócia do seu marido e de Décio Freire no escritório. Mas por pouco tempo. Castro Ferreira passou 40% das cotas do escritório para a mulher e ficou com 10%.

Nessa época, de acordo com o processo, ela fazia parte oficialmente de outro escritório de advogados, o que é proibido pelo Estatuto da Advocacia. Mas a Comissão de Sociedades de Advogados da OAB confirmou a legalidade do requerimento de alteração contratual e opinou pelo deferimento do registro.

No dia 10 de outubro de 2003, Ana Amélia entrou oficialmente para a sociedade de Décio Freire e seu marido. Quatro dias depois, apresentou à seccional mineira da OAB um requerimento de saída e transferência de sua parte para Décio Freire — que passou a ter 90% do escritório. Pouco depois, comprou os outros 10%, também de Ana Amélia. Em 2005, Castro Freire morreu de insuficiência respiratória e câncer de pulmão, provocados pelo tabagismo.

Os filhos do primeiro casamento de Castro Ferreira ficaram inconformados com a perda do escritório para o sócio. A filha Maria Paula Villella de Castro logo apresentou Representação ao presidente da Comissão de Sociedades de Advogados da OAB-MG pedindo o cancelamento da última alteração contratual, que passou o controle do escritório para Décio Freire. A família alegou que o AVC foi devastador e que a partir daí Castro Ferreira já não tinha condições de se “autogovernar”.

O presidente da Comissão de Sociedades de Advogados da OAB mineira, Stanley Martins Frasão, anulou as alterações contratuais. Para decidir, se apegou ao fato de que Ana Amélia já era sócia de outro escritório ao entrar para a sociedade com o marido e Décio Freire. Determinou a instauração de processo disciplinar no Tribunal de Ética e Disciplina contra os dois advogados.

Décio Freire recorreu da decisão, alegando que a Comissão não tem competência para anular atos administrativos e que a OAB não exerce atividade típica de administração pública, capaz de anular atos administrativos. Disse ainda que não teve tempo hábil para se defender e que a Ana Amélia não integrou duas sociedades ao mesmo tempo.

O relator do recurso na 3ª Câmara da OAB-MG, conselheiro Antônio Marcos Nomhi, acolheu alguns dos argumentos e restabeleceu a validade de todas as alterações contratuais. Para ele, não cabe à OAB declarar a incapacidade civil do advogado José de Castro Ferreira. Entende que o papel da OAB é tão-somente promover atos de registro. Ou seja, analisar os atos e documentos que são levados a registro.

Conselho Federal

A briga societária chegou à 3ª Câmara do Conselho Federal da OAB. Ao mesmo tempo corria a ação no Judiciário. O juiz suspendeu o andamento do processo até que a OAB se manifestasse.

O conselheiro Paulo Napoleão Gonçalves Quezado, relator, foi totalmente contra os argumentos usados pela OAB-MG. “A OAB, no exercício de sua função julgado, não só pode como deve anular cláusula contratual de sociedade de advogado, ainda não declarada pelo Poder Judiciário”. Quezado se voltou ainda contra o argumento de que a OAB não pode anular ou julgar ineficaz cláusula contratual com base em incapacidade civil de advogado.

Para ele, a decisão da OAB-MG viola o artigo 10º do Provimento 112/2006. A norma confere poderes para a Comissão de Sociedade de Advogados decidir sobre cláusulas contratuais e não faz restrições sobre o alcance do fundamento de suas decisões. Quezado concluiu ainda que Ana Amélia fraudou de forma clara o Estatuto dos Advogados, ao fazer parte de duas sociedades aos mesmo tempo.

Em seu voto, afirmou que durante todo o processo os laudos médicos que atestavam a incapacidade civil de José de Castro Ferreira em nenhum momento foram questionados. Segundo o conselheiro, baseado nos laudos, toda a alteração contratual que transferiu as cotas para Décio Freire aconteceu no período de incapacidade civil do advogado.

“Por essa linha de entendimento, posso concluir que a irregular situação de Ana Amélia ao integrar concomitante duas sociedades por mais de nove meses, ainda que de fato, e sua passagem rapidíssima pela sociedade ré, com aquisição de 40% das cotas de José de Castro ao entrar e a transferência, ao sair, de todas suas cotas ao sócio Décio Freitas, ficando este com 90% do capital social, tal situação já seria o bastante para demonstrar o desrespeito ao princípio da boa-fé objetiva na resolução do contrato de sociedade”, concluiu. Por maioria, a 3ª Câmara do Conselho Federal decidiu anular a alteração contratual.

Em novo recurso de Décio Freire, a decisão da 3ª Câmara do Conselho Federal foi anulada pelo Órgão Especial. Em seu voto, o relator Almino Afonso Fernandes diz que a OAB não poderia ter entrado no mérito do processo, porque já estava sob análise do Judiciário. E também porque não cabe à Ordem atestar a incapacidade civil do sócio. Por maioria, os conselheiros federais concordaram com os seus argumentos e aceitaram o recurso. Agora, caberá à Justiça resolver a controvérsia.

Revista Consultor Jurídico

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