A 6ª Câmara Cível do TJRS reconheceu o direito ao recebimento de indenização do seguro DPVAT pela morte de nascituro que se encontrava em gestação no ventre de mulher vítima fatal de acidente automobilístico.
A sentença proferida pela juíza Débora Kleebank, da 7ª Vara Cível do Foro Central de Porto Alegre, condenou a Confiança Companhia de Seguros ao pagamento de indenização de R$ 13.500,00 acrescidos de juros de 1% ao mês desde a data da citação, mais IGP-M, ocasionando apelação da companhia seguradora.
O relator, desembargador Ney Wiedmann Neto, lembrou que o art. 2º do Código Civil prevê que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
Lembrando precedente jurisprudencial, o acórdão expõe que “nascituro é, portanto, pessoa. Sendo assim, cumpre lhe atribuir o status de segurado do DPVAT, já que a lei que regula o seguro obrigatório tutela a pessoa, consoante se depreende do disposto no artigo 20, “l” do Decreto-Lei nº 73/66”.
Por isso, foi negado provimento à apelação da seguradora.
Atuam em nome da parte autora os advogados Daniela Rizzi e Jaime Bandeira Rodrigues. (Proc. n. 70037901493).
ÍNTEGRA DO ACÓRDÃO (25.10.10)
Apelação cível. Seguros. Ação de indenização. Seguro DPVAT. Direito de receber a indenização correspondente ao nascituro. Possibilidade jurídica do pedido. A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. Inteligência do art. 2º do Novo Código Civil. Manutenção do termo inicial da correção monetária. Apelo desprovido.
Apelação Cível – Sexta Câmara Cível
Nº 70037901493 – Comarca de Porto Alegre
CONFIANçA COMPANHIA DE SEGUROS – APELANTE
JUAN INACIO SILVERO DE OLIVEIRA – APELADO
GLADYS ODULA PEREYRA – APELADO
DON RAMON SILVERO – APELADO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, negar provimento ao apelo.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores DES. LUÍS AUGUSTO COELHO BRAGA (PRESIDENTE E REVISOR) E DES. ANTÔNIO CORRÊA PALMEIRO DA FONTOURA.
Porto Alegre, 26 de agosto de 2010.
DES. NEY WIEDEMANN NETO,
Relator.
(http://www.gabnwneto.blogspot.com)
RELATÓRIO
Des. Ney Wiedemann Neto (RELATOR)
Adoto o relatório da sentença, fls. 152-159, que passo a transcrever:
Gladys Odula Pereyra, Don Ramón Silvero e Ignácio Silvero de Oliveira, este representado pela primeira autora, todos qualificados nos autos, ajuizaram Ação de Cobrança Securitária em face de Confiança Companhia de Seguros, pessoa jurídica de direito privado também identificada no feito, pelos motivos a seguir expostos.
Alegaram, em síntese, que em 22.07.2008 ocorreu acidente de trânsito no qual faleceu Laura Karina Silvero, grávida de quinze semanas, sendo a causa mortis “avulsão de cérebro e cerebelo consecutivas a fratura de crânio por politraumatismo”. Ponderaram sobre a disposições da Lei nº 6.194/74. Discorreram sobre o valor da indenização devida, citando jurisprudência dos tribunais pátrios. Requereram a procedência da ação, com a condenação da ré ao pagamento de indenização correspondente a R$ 13.500,00 (treze mil e quinhentos reais), corrigidos monetariamente, para cada uma das vítimas. Acostaram documentos aos autos (fls. 08-55 e 59-61).
Citada, apresentou a parte ré contestação (fls.64-77).
Sustentou, preliminarmente, a inclusão da Seguradora Líder S/A no pólo passivo da demanda. Afirmou a ausência de interesse de agir, ante a falta de negativa administrativa do pleito. Discorreu sobre as teorias conceptualista e nativista. Afirmou a ausência de prova do fato constitutivo. Referiu o limite máximo de garantia. Mencionou aspectos relacionados aos juros legais e correção monetária. Requereu a improcedência da ação. Acostou documentos aos autos (fls.78-130).
Replicou a demandante, reeditando a argumentação anteriormente expendida (fls. 134-138).
Instadas as partes a especificarem as provas a serem produzidas no feito (fl.140), requereram os autores o julgamento imediato da lide, silente a ré (fl.141).
Sobreveio parecer do Ministério Público, opinando pela procedência parcial da ação em relação ao autor Juan Inácio Silvero de oliveira e improcedência da ação em relação aos demais demandantes (fls.145-150).
A sentença apresentou o seguinte dispositivo:
Isso posto, com fundamento no artigo 269, inc. I, do Código de Processo Civil, resolvo pela procedência da Ação de Cobrança Securitária ajuizada por Juan Ignácio Silvero de oliveira, representado por Gladys Odula Pereyra em face de Confiança Companhia de Seguros para condenar a seguradora ré ao pagamento de indenização, ao autor, no valor equivalente R$ 13.500,00 (treze mil e quinhentos reais, corrigidos pelo IGPM (FGV), por cada vítima, desde a data do sinistro, em 22.07.2008, acrescido de juros de 1% ao mês da data da citação até a efetiva liquidação. Com fundamento no art. 267, inc. VI, do Código de Processo Civil, resolvo pela extinção do feito, sem julgamento do mérito, em relação aos demandantes Gladys Odula Pereyra e Don Ramón Silvero, reconhecida a ilegitimidade passiva ad causam.
Tendo em conta o Princípio da Sucumbência, condeno a as partes ao pagamento proporcional das custas processuais e honorários advocatícios do procurador da parte adversa, que, observados os critérios do artigo 20, § 3º, do CPC, fixo em R$ 800,00 (oitocentos reais). Sobre esse valor deverá incidir correção monetária pelo IGP-M (FGV) a contar do trânsito em julgado da sentença. Suspendo a exigibilidade de tal pagamento em relação ao autor, em razão do disposto no art. 12, da Lei nº 1.060/50.
A seguradora apelou, fls. 161-167, insurgindo-se contra sua condenação ao pagamento de indenização referente à morte do feto. Atacou, ainda, a correção monetária.
Contra-razões, fls. 171-176.
Foram cumpridas as disposições do art. 551 do Código de Processo Civil.
É o relatório.
VOTOS
Des. Ney Wiedemann Neto (RELATOR)
Estou em negar provimento ao apelo.
Inicio com o exame da questão atinente ao direito do nascituro ao recebimento do seguro DPVAT. Para evitar tautologia, adoto, como razões de decidir, os votos proferidos pelos eminentes Desembargadores Antônio Corrêa Palmeiro da Fontoura, Liége Puricelli Pires e Luís Augusto Coelho Braga, quando do julgamento dos Embargos Infringentes Nº 70026431445, Terceiro Grupo de Câmaras Cíveis, julgado em 15.05.2009, quando houve enfrentamento de matéria análoga:
DES. ANTÔNIO CORRÊA PALMEIRO DA FONTOURA (RELATOR) –
Eminentes Colegas.
Adianto que o meu voto é pelo acolhimento dos embargos infringentes.
Entendo que para a solução da controvérsia é imprescindível definir se o nascituro é ou não pessoa desde a sua concepção. Acerca do tema, entendo pertinente a lição de Silmara J. A. Chinelato e Almeida (Tutela Civil do Nascituro, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 165/167):
“Como muito bem esclarece Antonio Chaves, ‘existe um conjunto de normas que podem ser rastreadas em todas as legislações, quando não explícitas, nelas contidas implicitamente e que são tão essenciais que mal se concebem separadas do próprio conceito de civilização e de acatamento à pessoa humana. O respeito à vida e aos demais direitos correlatos decorre de um dever absoluto por sua própria natureza, ao qual a ninguém é lícito desobedecer.
Demonstra o acerto dessa conclusão o fato de que o aborto sempre foi punido, como regra, bem como o fato de que a legislação de outrora e da atualidade, por nós examinada, sempre reconheceu direitos ao nascituro, os quais nem sempre dependeram – como não dependem – do nascimento com vida, como o próprio direito à vida, à integridade física, no qual se compreende o direito à saúde – direitos absolutos, erga omnes.
Também não dependem do nascimento com vida a curatela e a representação, que, juntamente com o direito a alimentos, já eram reconhecidas ao nascituro desde a concepção, por meio do instituto da ‘bonorum possessio ventris nomine’ do Direito Romano, de múltipla finalidade.
Antes da Constituição de 1988, podia-se afirmar que tinha status de filho ‘legítimo’, desde a concepção e antes do nascimento, o concebido na constância do casamento, nos termos dos arts. 337 e 338 do Código Civil.
Tinha também status de filho ‘legitimado’ o que estivesse apenas concebido e ainda não nascido quando do casamento dos pais, conforme dispõe o art. 353 do Código Civil.
A atribuição de tais status confirma que a personalidade do nascituro existe desde a concepção e independe do nascimento, já que o status, ao lado da capacidade, da sede e de seus direitos específicos, chamados direitos da personalidade, constitui um dos atributos da personalidade, conforme leciona R. Limongi França.
(…)
Outros exemplos podem ser dados confirmando que o status de filho é atribuído ao nascituro desde a concepção e independentemente do nascimento. Invoque-se o reconhecimento voluntário – por escrito particular, por escritura pública ou por testamento – admitido pelo art. 357, parágrafo único, do Código Civil, pelo art. 26 do Estatuto da Criança e do Adolescente e pelo art. 1º, II, da Lei n. 8.560, de 29 de dezembro de 1992”.
Adiante, a ilustrada jurista destaca (Tutela Civil do Nascituro, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 168):
“Não há meia personalidade ou personalidade parcial. Mede-se ou quantifica-se a capacidade, não a personalidade. Por isso se afirma que a capacidade é a medida da personalidade. Esta é integral ou não existe. Com propriedade afirma Francisco Amaral:
‘Pode-se ser mais ou menos capaz, mas não se pode ser mais ou menos pessoa’.
Nenhum homem é capaz de todos os direitos e de todas as obrigações reconhecidas pelo sistema jurídico. A personalidade é um valor. A capacidade é um quantum, a medida da personalidade.
Por isso, a limitada capacidade de direito do nascituro não lhe tira a personalidade. (…)”
Nascituro é, portanto, pessoa.
Sendo assim, cumpre lhe atribuir o status de segurado do DPVAT, já que a lei que regula o seguro obrigatório tutela a pessoa, consoante se depreende do disposto no artigo 20, “l” do Decreto-Lei nº 73/66:
“Art 20. Sem prejuízo do disposto em leis especiais, são obrigatórios os seguros de:
(…)
l) danos pessoais causados por veículos automotores de vias terrestres e por embarcações, ou por sua carga, a pessoas transportadas ou não.”
Também o disposto no artigo 3º da Lei nº 6.194/74 permite concluir nesse sentido:
“Art . 3º Os danos pessoais cobertos pelo seguro estabelecido no artigo 2º compreendem as indenizações por morte, invalidez permanente e despesas de assistência médica e suplementares, nos valores que se seguem, por pessoa vitimada.”
…
Em conclusão, acolho os embargos infringentes, a fim de fazer prevalecer o voto vencido no mérito e, assim, restabelecer a sentença de procedência da pretensão.”
DESA. LIÉGE PURICELLI PIRES (REVISORA) –
Com a devida vênia aos Desembargadores que proferiram os votos vencedores no julgamento do apelo junto à 5ª Câmara Cível, estou em acompanhar o e. Relator para fazer prevalecer o voto vencido do Des. Paulo Sérgio Scarparo.
A questão central trazida no litígio não prescinde de uma análise acerca de um dos temas mais belos e polêmicos na evolução do direito civil brasileiro, qual seja, a discussão acerca da natureza jurídica do nascituro.
Antes, contudo, de ingressar nesse tema polêmico, impõe-se uma breve digressão acerca do que se entende por personalidade jurídica.
No Código Civil de 1916 prevaleceu o entendimento de que personalidade jurídica era a aptidão para ser titular de relações jurídicas, a aptidão para ser sujeito de direitos. Desse conceito, desdobrou-se a idéia de que todo aquele que detinha personalidade jurídica detinha capacidade jurídica. Esta última, nessa concepção clássica, se subdivide em capacidade de direito – possibilidade de ser sujeito – e capacidade de gozo – possibilidade de praticar os atos pessoalmente, de modo que aquele que reunisse essas duas capacidades (de direito e de gozo) detinha a chamada capacidade plena. Assim, a título exemplificativo, uma criança de 5 anos teria apenas a capacidade de direito – é sujeito de direito -, mas não teria capacidade de gozo ou de fato (pois não poderia praticar pessoalmente os atos da vida civil). Completando esse entendimento teríamos, ainda, a idéia de legitimação, que é um requisito específico para a prática de um ato específico (segundo Orlando Gomes, a legitimação é um plus da capacidade). É o caso da outorga uxória para a venda do bem imóvel.
O problema é que essa idéia de capacidade como uma medida da personalidade entra em choque com a presença dos chamados “entes despersonalizados”, como o condomínio edilício, a sociedade de fato, a sociedade irregular, a herança jacente, a herança vacante, e a massa falida, por exemplo. Tais entes despersonalizados não possuem personalidade jurídica, mas podem ser sujeitos de direito, ou seja, possuem capacidade, e tal conclusão se obtém mediante singela leitura do art. 12 do CPC.
Essa contradição põe em cheque o conceito de personalidade trazida pelo Código Civil de 1916. Em razão disso, Pontes de Miranda denunciou o erro na conceituação teórica da personalidade jurídica, afirmando que essa personalidade jurídica não pode reduzir-se à idéia de ser a qualidade do indivíduo sujeito de relações jurídicas.
Em razão disso, e para o Novo Código Civil, ter personalidade jurídica é possuir proteção fundamental a esses indivíduos, proteção essa que se perfectibiliza através dos direitos da personalidade. Logo, ter personalidade não significa ser ou não ser sujeito de direitos, mas ter uma proteção avançada, uma garantia básica a essa condição. Assim, a capacidade foi colocada ao lado da personalidade, e com essa não se confunde. A capacidade jurídica, essa sim, portanto, é a possibilidade de titularizar relações jurídicas, desdobrando-se em capacidade de direito e capacidade de fato, de modo que essa capacidade (titularidade em relações jurídicas) pode ser conferida a entes despersonalizados. Para ter capacidade, portanto, não se mostra necessário ter personalidade. Essa capacidade (que pode ser de direito e de fato) pode exigir o reconhecimento de requisitos específicos, o que configura a chamada legitimação.
Agora, a questão do nascituro.
Nascituro, com base na doutrina de Limongi França, é o ente concebido, mas ainda não nascido.
Existem duas correntes doutrinárias tentando explicar a natureza jurídica do nascituro.
A primeira é a teoria natalista, segundo a qual o nascituro é um ente concebido, ainda não nascido, desprovido de personalidade. Para essa teoria, o nascituro não é pessoa, gozando apenas mera expectativa de direitos, uma vez que a personalidade jurídica só é adquirida a partir do nascimento com vida. Trata-se de corrente majoritária na doutrina, chancelada por autores clássicos, dentre os quais Leonardo Espínola, Vicente Rao, Sílvio Venosa e Sílvio Rodrigues, até porque melhor se coaduna com a interpretação literal do Código Civil.
A segunda é a teoria concepcionista, defendida, dentre outros, por Teixeira de Freitas, Clóvis Beviláqua e Silmara Chinelato. Para essa corrente, o nascituro é considerado pessoa para efeitos patrimoniais ou extrapatrimoniais desde a concepção, uma vez que a personalidade jurídica é adquirida desde tal momento. Aparentemente, segundo Clóvis Beviláqua (influenciado por Teixeira de Freitas), ao afirmar que a personalidade jurídica da pessoa começa do nascimento com vida, o Código Civil de 1916 abraçou a teoria natalista, por ser mais prática, mas em inúmeros pontos sofreu inequívoca influência da teoria concepcionista, o que hoje se nota da parte final do art. 2º do CC/02, ao reconhecer direitos ao nascituro. Beviláqua, contudo, entende que a melhor teoria seria a concepcionista, pois trata o nascituro como pessoa, segundo referiu na sua obra “Código Civil dos Estados Unidos do Brasil”, Edição Histórica de 1975, Editora Rio, p. 168.
Após refletir sobre o tema, firmei entendimento no sentido de acompanhar a segunda corrente, a concepcionista, e isso por algumas razões fundamentais.
Primeiro porque, em que pese não desconhecer a doutrina majoritária sobre o tema, a qual adota a teoria natalista em razão de uma aplicação literal do art. 2º do CC/02, me parece indubitável a concretização de uma tendência de migração para a segunda corrente, reconhecendo o status de pessoa “em formação” ao nascituro, o que não o desqualifica enquanto pessoa humana. Tal constatação é facilmente perceptível ao se observar a crescente positivação de direitos tipicamente reconhecidos à pessoa natural, e que cada vez mais vêm sendo estendidos ao indivíduo em gestação uterina.
Valho-me da lição do doutrinador e colega Pablo Stolze Gagliano , Magistrado do Estado da Bahia, para declinar rol exemplificativo (como ressalva o autor), de direitos já reconhecidos ao nascituro:
“Nesse sentido, pode-se apresentar o seguinte quadro esquemático, não exaustivo:
a) o nascituro é titular de direitos personalíssimos (como o direito à vida, o direito à proteção pré-natal etc.);
b) pode receber doação, sem prejuízo do recolhimento do imposto de transmissão inter vivos;
c) pode ser beneficiado por legado e herança;
d) pode ser-lhe nomeado curador para a defesa dos seus interesses (arts. 877 e 878, CPC);
e) o Código Penal tipifica o crime de aborto;
f) como decorrência da proteção conferida pelos direitos da personalidade, concluímos que o nascituro tem direito à realização do exame de DNA, para efeito de aferição de paternidade.”
Ainda, a recente publicação da Lei nº 11.804/08 (alimentos gravídicos) reconheceu e regulou o direito do nascituro aos alimentos. Trata-se de inequívoca influência da teoria concepcionista.
E penso nem poderia ser de outra forma.
Ora, uma interpretação sistemática, que vise a expungir os anacronismos do sistema, não pode tutelar a vida do nascituro como bem jurídico penalmente protegido e negar tal proteção em matéria de seguro DPVAT. Com a vênia de entendimentos contrários, Colegas, não consigo suplantar a idéia de que tal proteção se vislumbre em ramo subsidiário e fragmentário como o Direito Penal, que tem como um dos nortes o princípio da intervenção mínima, para negar aos pais de um ser humano ainda não nascido uma compensação, por intermédio de seguro de natureza eminentemente social, a qual fariam jus tivesse o bebê algumas horas de vida extra-uterina.
Perdeu o legislador brasileiro excelente oportunidade de transpor idéia de há muito ultrapassada, acerca da qual questiono a compatibilidade com o ordenamento constitucional, que traz a proteção ao ser humano como valor fundamental e a dignidade da pessoa humana como valor supremo de nosso ordenamento.
Peço vênia ao ilustre Relator para, complementando a lição de Silmara Chinelato e Almeida, acrescentar outro trecho da autora na mesma obra :
“Juridicamente, entram em perplexidade total aqueles que tentam afirmar a impossibilidade de atribuir capacidade ao nascituro ‘por este não ser pessoa’. A legislação de todos os povos civilizados é a primeira a desmenti-lo. Não há nação que se preze (até a China) onde não se reconheça a necessidade de proteger os direitos do nascituro (Código chinês, art. 1º). Ora, quem diz direitos, afirma a capacidade. Quem afirma capacidade, reconhece personalidade.”
De outra banda, ao lado da evolução legislativa e doutrinária rumo à corrente concepcionista, ainda que de forma incipiente, vale ressaltar que o próprio STJ, em recente decisão, publicada em agosto de 2008, reconheceu ao nascituro o direito de ser indenizado a título de danos morais. Vale transcrever a ementa:
RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DO TRABALHO. MORTE. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. FILHO NASCITURO. FIXAÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO. DIES A QUO. CORREÇÃO MONETÁRIA. DATA DA FIXAÇÃO PELO JUIZ. JUROS DE MORA. DATA DO EVENTO DANOSO. PROCESSO CIVIL. JUNTADA DE DOCUMENTO NA FASE RECURSAL. POSSIBILIDADE, DESDE QUE NÃO CONFIGURDA A MÁ-FÉ DA PARTE E OPORTUNIZADO O CONTRADITÓRIO. ANULAÇÃO DO PROCESSO. INEXISTÊNCIA DE DANO. DESNECESSIDADE.
– Impossível admitir-se a redução do valor fixado a título de compensação por danos morais em relação ao nascituro, em comparação com outros filhos do de cujus, já nascidos na ocasião do evento morte, porquanto o fundamento da compensação é a existência de um sofrimento impossível de ser quantificado com precisão.
– Embora sejam muitos os fatores a considerar para a fixação da satisfação compensatória por danos morais, é principalmente com base na gravidade da lesão que o juiz fixa o valor da reparação.
– É devida correção monetária sobre o valor da indenização por dano moral fixado a partir da data do arbitramento. Precedentes.
– Os juros moratórios, em se tratando de acidente de trabalho, estão sujeitos ao regime da responsabilidade extracontratual, aplicando-se, portanto, a Súmula nº 54 da Corte, contabilizando-os a partir da data do evento danoso. Precedentes – É possível a apresentação de provas documentais na apelação, desde que não fique configurada a má-fé da parte e seja observado o contraditório. Precedentes.
– A sistemática do processo civil é regida pelo princípio da instrumentalidade das formas, devendo ser reputados válidos os atos que cumpram a sua finalidade essencial, sem que acarretem prejuízos aos litigantes.
Recurso especial dos autores parcialmente conhecido e, nesta parte, provido.
Recurso especial da ré não conhecido.
(REsp 931556/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/06/2008, DJe 05/08/2008)
Agora restam as perguntas: se o entendimento doutrinário e jurisprudencial moderno consiste na idéia de que o dano moral configura-se de uma violação a um direito da personalidade, como não reconhecê-la ao nascituro, a par dessa decisão da Colenda Corte Superior? E para quem defende ser o nascituro titular de “alguns” direitos da personalidade, seria razoável tê-lo como uma semi-pessoa, como se extrai da lição de Serpa Lopes e Maria Helena Diniz? Não me parece razoável a divisão entre personalidade formal e personalidade material, esta conferida sob causa suspensiva, como sugerido por estes últimos doutrinadores. Pessoa é pessoa, de modo que entendimentos restritivos podem ensejar fundamento científico para atrocidades já vivenciadas em períodos negros da nossa história.
Por todas essas razões, penso ser o caso de se conceber a regra do art. 2º do CC/02 a partir de uma perspectiva da técnica da interpretação conforme, compreendendo-se no dispositivo a idéia de que a personalidade se torna plena com o nascimento com vida, momento em que se perfectibiliza a capacidade de direito dos demais direitos patrimoniais, sem que isso implique em desconsiderá-la em relação ao nascituro, muito menos a sua condição de pessoa. Essa a maneira de compatibilizar a norma legal não apenas ao espírito de nossa Carta Política, mas também à própria evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial, como visto alhures. A concepção restritiva, na contramão da evolução social, é fruto de um ranço conservador do Código Civil de 1916, inexplicavelmente não reformado pelo codificador de 2002, então justificada em razão dos valores que permeavam a sociedade na época em que se pretendeu a elaboração do Código, muito antes de sua vigência, evidenciando ter ele nascido já superado, como em grande parte se repetiu no Código de 2002.
Com o perdão do pequeno obiter dictum, explico a assertiva anterior em breve perspectiva histórica. Em 1824, a Constituição do Império estabelecia (art. 159) que em um ano deveria ser editado um Código Civil e um Código Criminal. Teixeira de Freitas, ilustre jurista da época, apresentou, em 1855, um esboço de Código Civil que unificava todo o Direito Privado, tal como se buscou atualmente na Codificação de 2002. Esse esboço continha cerca de 5.000 artigos, unificando o Direito Privado (Direito Civil, Direito Comercial, etc), e mostrou-se extremamente avançado para sua época, tratando de institutos como revisão do contrato, a própria tutela jurídica do nascituro e dissolução do casamento. Em razão disso, esse esboço acabou não sendo aprovado, dado o conservadorismo da época, sendo o ideal de Teixeira de Freitas incorporado ao Código Civil da Argentina, o qual, como sabemos, era muito mais avançado do que nosso CC/16. Em abril de 1899, o governo Brasileiro contratou o jurista cearense Clóvis Beviláqua para elaborar um Projeto de Código Civil, norteado desses valores conservadores da época, projeto esse que sofreu severas críticas de Ruy Barbosa, na época Senador. Apenas em 1916 o Código Civil de Beviláqua restou aprovado, com claras influências dos Códigos Civis Francês e Alemão, norteado, portanto, pelo individualismo e patrimonialismo, valores que permeavam o direito naquela época.
Tais valores, contudo, eminentes Colegas, não estão a marcar isoladamente o ordenamento jurídico, nem mesmo no âmbito do direito privado, em que se observa a relevância de princípios como o da boa-fé objetiva e o da dignidade da pessoa humana, e valores como a eticidade, socialidade e operabilidade.
Em razão de todos os argumentos acima alinhavados, tenho que a idéia de “pessoa” presente no art. 3º da Lei nº 6.194/74, ao referir acerca dos danos “pessoais”, deve ser interpretada à luz da corrente concepcionista acerca do nascituro, reconhecendo-lhe tal status e, como tal, atribuindo ao pai o direito à indenização do seguro obrigatório DPVAT, em razão do abortamento sofrido por sua esposa quando por ocasião do acidente automobilístico descrito na petição inicial.
Nesse sentido, destaco precedente desta Corte:
SEGURO-OBRIGATORIO. ACIDENTE. ABORTAMENTO. DIREITO A PERCEPCAO DA INDENIZACAO . O NASCITURO GOZA DE PERSONALIDADE JURIDICA DESDE A CONCEPCAO.O NASCIMENTO COM VIDA DIZ RESPEITO APENAS A CAPACIDADE DE EXERCICIO DE ALGUNS DIREITOS PATRIMONIAIS. APELACAO A QUE SE DA PROVIMENTO. (5 FLS.) (Apelação Cível Nº 70002027910, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, Julgado em 28/03/2001)
Com tais considerações, acompanho o voto do e. Relator, acolhendo os embargos infringentes, para o fim de fazer prevalecer o voto vencido na Câmara.
DES. LUÍS AUGUSTO COELHO BRAGA –
Estou por acompanhar o relator.
Na atualidade, com a evolução da medicina, é correto presumir que o nascituro nascerá. Diferente da perspectiva da Lei Civil anterior, onde pouco se dominava da arte médica.
Assim, tal evolução na natalidade e na medicina pré-natal tem como corolário que o nascituro tenha maior respaldo jurídico, pois se ainda não tem a personalidade jurídica necessária para adquirir ou ser sujeito de direitos, teve que aguentar as consequências do ato violento que retirou a vida de sua mãe e a sua.
A Lei Civil e os tribunais já reconhecem o nascituro como titular de prerrogativas. Ele pode receber em testamento, tomar posse de determinados bens ou receber alimentos, claro que sempre representado por alguém.
Diante do exposto, há de se concluir que apesar de não ter personalidade o nascituro é sujeito de direitos, e se é sujeito ativo de direitos, fazendo uso de um senso de justiça, somos obrigados a reconhecer que ele também pode ser sujeito passivo e gerar a obtenção de determinados direitos para terceiros, no caso seu pai.
Destaco que esse meu entendimento deflui do presente caso concreto, onde se está a discutir um seguro que tem o cunho eminentemente social. Em outros casos, talvez a discussão seja pantanosa. Em outras situações, diversas desta, talvez a abordagem tenha que ser outra. Porém, no presente caso, estou convencido que a indenização tem o caráter de ajudar o sobrevivente no momento de desordem pessoal e familiar, pois, afinal, houve uma morte, e essa morte é suficiente para gerar o direito previsto no art. 3º da Lei nº 6.194/74.
Assis está previsto no art. 2º do novo Código Civil:
“Art. 2o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.”
Com efeito, havendo lide relacionada a direitos de personalidade, não tem o nascituro somente expectativa de direitos, sendo, no tocante aos mesmos, de forma efetiva, sujeito de direito. Todos os fatos relacionados à sua vida (direito de personalidade), desde o momento da concepção, geram conseqüências jurídicas. No caso em tela, impedida a vida extra-uterina, fato incontroverso, legítima a pretensão de recebimento da indenização.
Em relação ao termo inicial da correção monetária, destaco que, sendo a correção um meio de manutenção do poder aquisitivo da moeda, e sendo a indenização certa e determinada desde o momento do sinistro, é este o marco a ser considerado, sob pena de desvalorização do capital devido.
Para fins de prequestionamento, observo que a solução da lide não passa necessariamente pela restante legislação invocada e não declinada, seja especificamente, seja pelo exame do respectivo conteúdo. Equivale a dizer que se entende estar dando a adequada interpretação à legislação invocada pelas partes. Não se faz necessária a menção explícita de dispositivos, consoante entendimento consagrado no Eg. Superior Tribunal de Justiça, nem o Tribunal é órgão de consulta, que deva elaborar parecer sobre a implicação de cada dispositivo legal que a parte pretende mencionar na solução da lide.
Oportuno salientar que a apresentação de questões para fins de prequestionamento não induz à resposta de todos os artigos referidos pela parte, mormente porque foram analisadas todas as questões que entendeu o julgador pertinentes para solucionar a controvérsia.
VOTO PELO DESPROVIMENTO DO APELO.
(http://www.gabnwneto.blogspot.com)
Des. Luís Augusto Coelho Braga (PRESIDENTE E REVISOR) – De acordo com o(a) Relator(a).
Des. Antônio Corrêa Palmeiro da Fontoura – De acordo com o(a) Relator(a).
DES. LUÍS AUGUSTO COELHO BRAGA – Presidente – Apelação Cível nº 70037901493, Comarca de Porto Alegre: “NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME.”
Julgador(a) de 1º Grau: DEBORA KLEEBANK