Duplo grau de jurisdição – Detentores de foro privilegiado podem apelar?

por Jorge Alexandre Karatzios

Imagine o prezado leitor as seguintes hipóteses. Primeira: um escriturário é condenado (injustamente) pela pratica de um furto. Segundo: uma autoridade que goze de foro por prerrogativa de função é condenado (indevidamente) em razão de um peculato.

Assim, nessa situação ao escriturário seria possível ajuizar um recurso que pudesse rever o mérito da decisão prolatada, pois, nos termos do CPP 593, cabe apelação contra sentença proferida por juiz singular, ao passo que para o alcaide, o inconformismo jurídico acerca de questões fáticas seria impossível, vez que não há previsão legal de recurso de apelação contra decisão proferida por um órgão colegiado, lembrando que a autoridade em questão é julgada pelo respectivo Tribunal competente (CF 29, Inciso X).

Assim surgem os seguintes questionamentos: Se estamos sob a égide de um regime Constitucional, Democrático e Humanitário de Direito, haveria razões a justificar essa situação que não prevê acesso à garantia do duplo grau de jurisdição aos detentores de foro por prerrogativa funcional? Como assegurar a eficácia do princípio da ampla defesa e da isonomia a essas autoridades? A impossibilidade recursal não viola o devido processo legal garantido constitucionalmente?

Desse modo, fica evidenciado uma ilegítima restrição ou mitigação ao princípio do duplo grau de jurisdição no cenário jurídico brasileiro ao agente público que gozar de foro por prerrogativa de função.

Fundamentos do recurso

De outro vértice, existem, pelo menos, três hipóteses fáticas a justificar a previsão de recursos no sistema processual penal de um país que segue as regras de uma Justiça Penal Principiológica: a) Falibilidade humana; b) Inconformismo (natural) do sucumbente; c) Evitar atos ilícitos e arbitrariedade do julgador.

Portanto, regra geral, aquele que sentir-se prejudicado por ocasião da derrota em uma demanda, terá à sua disposição um meio jurídico que permitirá o reexame fático e de direito da decisão combatida, pois, é natural que (também) um réu que goze de foro por prerrogativa de função, sinta-se inconformado (não importa o motivo) com a insatisfatória decisão condenatória, e assim, manifeste lídimo anseio de ter a garantia e o direito de revisão de uma decisão contrária, aos seus interesses.

Não se vê nenhum argumento lógico e racional para limitar importante direito ao detentor de foro “especial”, pois, este também pode ser vítima de um erro judiciário ou eventual arbitrariedade do Colegiado prolator do acórdão condenatório.

Assevera-se que o fato de o agente público ser julgado por um órgão colegiado, já seria uma justa razão ao impedimento de manifestação recursal sobre os aspectos fáticos da decisão, contudo, esse argumento não convence, pois, tal situação não possui o condão de elidir um direito consagrado em nossa Constituição, artigo 5º, Inciso LIV, porque “ninguém será privado da liberdade, sem o devido processo legal”.

Outro argumento que fundamentaria a negativa de um recurso acerca do mérito é aquele que afirma que o duplo grau impõe necessariamente uma jurisdição inferior e outra superior. Sim, isso não deixa de ser aceitável, contudo, devemos observar que nos delitos de menor potencial ofensivo (Lei 9.099/95) o recurso de apelação também é julgado por juízes de mesma hierarquia, isto é, pela Turma Recursal, conforme artigo 82 da Lei dos Juizados.

Veja-se o absurdo jurídico: Em caso de condenação face uma lesão corporal culposa cometida contra um homem (1), cuja pena não ultrapassa um ano de detenção, um réu “comum”, poderia apelar com o intuito de rever a condenação, levando seu inconformismo a juízes do mesmo nível (Turma Recursal), entretanto, em caso de um delito de maior gravidade (Lavagem de Capitais e.g..), o agente público detentor de foro funcional, não teria o mesmo direito (em relação ao aspecto fático), ou seja, para um delito de menor potencial ofensivo (onde a ofensa ao bem jurídico não é tão relevante) opera-se o princípio do duplo grau e da ampla defesa, mas, para um delito de maior ofensividade e repercussão jurídica e social, tal garantia estaria negada!

Mas então como solucionar tal problema?

Simples, nada impede que em situações como a apresentada, o detentor de foro especial seja julgado e processado por uma Turma ou Câmara do Tribunal respectivo, e seu eventual inconformismo quanto ao mérito, seja apreciado para um Órgão Especial ou o Plenário do mesmo Tribunal prolator do acórdão condenatório.

Regramento principiológico recursal

O princípio do duplo grau de jurisdição, fundamenta o recurso interposto pela parte sucumbente em matéria penal, havendo expressa previsão na Convenção Americana de Direitos Humanos — Pacto de San José da Costa Rica — que assegura ao condenado o “Direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal” (grifo pessoal), note-se a ausência de restrição ou limitação a quem quer que seja o condenado pela decisão judicial.

A Constituição Federal, em cláusula pétrea, assevera em seu artigo 5º, parágrafo 2º que: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (grifo pessoal), portanto o Pacto de San José constitui ao lado da Lei Magna, fonte de direito processual penal, contando com força de norma constitucionalizada (2).

A Conseqüência de ordem prática é acalentadora, pois, os Tratados de Direitos Humanos (Pacto de San José, ad exemplum) não restringem os direitos e as garantias previstos na Constituição Federal (CF 5, par. 2º), ao contrário, amplia-os, e de outro lado, apenas a título de esclarecimento, se um tratado de direitos humanos, restringir ou eliminar um direito ou uma garantia inserta na Carta Magna, ficará sem efeito.

Em suma: aplica-se sempre a norma que mais for favorável ao acusado (Pro Homine)

O Pacto de San José da Costa Rica foi aprovado pelo Congresso Nacional (Decreto Legislativo 27, de 25 de setembro de 1992), tendo o Brasil depositado sua Carta de Adesão, em 25 de setembro de 1992, tornando-se parte do nosso regramento jurídico em 06 de novembro de 1992, face o Decreto 678, assim, necessário é concluir que o direito ao segundo grau de jurisdição (recurso de mérito), expressamente previsto no aludido pacto, encontra-se inserido em nosso ordenamento jurídico de maneira constitucionalizada, isto é, nenhuma norma jurídica pode negar-lhe aplicabilidade, e mesmo que por meio de uma Emenda Constitucional tente-se suprimir tal garantia, essa Emenda nem poderá ser apreciada pelo Congresso Nacional.

É que o Princípio do Duplo Grau (CF 5º, parágrafo 2º, c/c artigo 8º, 2, g, do Pacto de San José, com o novo posicionamento da Excelsa Corte), é cláusula intangível, pois, é um direito e uma garantia individual a todos os jurisdicionados, sem exceção, não importando se o acusado é uma pessoa do povo, ou uma alta autoridade (prefeito, governador etc), e assim não poderá ser objeto de deliberação pelo Parlamento, conforme artigo 60, parágrafo 4º, Inciso, IV.

Para corroborar o aqui defendido a Convenção de Viena em seu artigo 27 prevê que “Nenhum Estado que faz parte de algum tratado pode deixar de cumpri-lo invocando um Direito Interno”.

Portanto, o direito a um recurso que reveja toda a matéria (fática e de direito) está a proteger todos os jurisdicionados, restando claro a possibilidade jurídica de que qualquer jurisdicionado pode levar ao conhecimento de outra autoridade judiciária competente, seu inconformismo, visando a reparação e eventual error in judicando, dando plena eficácia ao princípio da Dignidade Humana.

Notas de rodapé

1- Propositadamente não foi mencionada como vítima uma mulher, face o disposto no artigo 41 da Lei 11.340/06 (Lei Maria da penha), que determina a não aplicação da Lei dos Juizados Especiais Criminais ( Lei 9.099/95), em casos de violência doméstica.

2- Hodiernamente já não se discute qual é a natureza jurídica dos Tratados de Direitos Humanos, isto é, não resta dúvida acerca de sua posição na “pirâmide jurídica”, conforme o firme posicionamento do ministro Celso de Mello, lido em 12 de março de 2000, em uma ação de Habeas Corpus proveniente do estado de Tocantis (HC 87.585), no Pleno do STF, reconhecendo o status constitucional dos tratados internacionais sobre direitos humanos, assegurando assim, a paridade constitucional.

Referências Bibliográficas

Grinover, Ada Pelegrini, Recursos no Processo Penal, 4 edição, RT.

Fernandes, Antonio Scarance, Processo Penal Constitucional, 4ª edição, RT.

Suaness, Adauto, Os Fundamentos Éticos do Devido Processo Penal.

Tourinho, Fernando da Costa , Processo Pena, V.1, 27ª edição, Saraiva.

Revista Consultor Jurídico

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