por Emanuella Melo Viana Portela
O Direito do Trabalho, fruto do capitalismo durante muito tempo, foi concebido como a quantificação do valor do serviço humano dentro do sistema produtivo. A contraprestação pelo serviço, determinado pelo fator econômico, seria a quantia possível e não a quantia necessária para a melhoria real da condição de vida do trabalhador, embora retoricamente esse objetivo sempre tenha integrado a propedêutica deste ramo da ciência jurídica. Em concreto, foi até mesmo aventada a hipótese de que o direito do trabalho seria, nos “tempos modernos”, o direito ao trabalho, ao trabalho que fosse plausível conferir dentro do sistema de produção, cada vez mais influenciado pela alta tecnologia e pelos efeitos do mundo globalizado.
Entretanto, diante da atual situação socioeconômica do país, constata-se que a mera integração do trabalhador ao mercado produtivo, garantindo-lhe retribuição, não é suficiente para a preservação da dignidade nas relações de trabalho. Pouco, ou nada adianta construir um ordenamento jurídico que preveja remuneração aos trabalhadores, quando nas relações de trabalho, a ameaça do desemprego e a instabilidade econômica fazem com que se potencialize a subordinação do empregado ante o empregador e seus superiores hierárquicos, transformando as relações pessoais do trabalho em fontes concretas de destruição da cidadania e da dignidade humana.
A fragilização do trabalhador no ambiente do trabalho fez surgir a figura do “assédio moral”, que é toda conduta abusiva e repetitiva, manifestada através de comportamentos, palavras, gestos e alusões, que possam causar danos à personalidade, à dignidade e à integridade física ou psíquica do trabalhador.
Modernamente, ao longo dos últimos 20 anos, o assédio moral passou a ter maior notoriedade por três motivos. Primeiro porque no atual contexto há porventura uma maior atenção aos direitos do trabalhador. Cultiva-se um discurso das condições de realização profissional e de progressão na carreira. Em segundo, porque a imprensa e os órgãos de comunicação se interessam por estas matérias e dão-lhes outra visibilidade. E, ainda, porque na atual conjuntura as vítimas não pertencem aos segmentos mais explorados desde sempre, são normalmente do setor terciário.
Embora seja mais comum o assédio moral do tipo vertical, ou seja, perpetrada por um superior hierárquico em detrimento do seu subordinado. Essa violência também pode ocorrer entre colegas (mobbing horizontal), quando há agressividade permanente, desacatos, inimizades grupais, bem como as vítimas do assédio moral podem ser os superiores (mobbing ascendente), nos casos, por exemplo, em que colegas são promovidos e não há aceitação do grupo ou quando os subordinados têm acesso privilegiado, transpondo sistematicamente a hierarquia.
Atualmente, pesquisas começam a ser feitas e publicadas sobre o assédio moral nas empresas. A doutora Margarida Barreto [1], em sua tese de mestrado (PUC/SP), apurou que 36% da população brasileira, economicamente ativa, sofrem desse tipo de violência. Em outra pesquisa mais recente, num total de 4.718 profissionais ouvidos, 68% deles afirmaram sofrer humilhações várias vezes. E 66%, afirmaram que já foram intimados por seus superiores.
Nota-se que o assédio moral no ambiente de trabalho é um problema quase clandestino e de difícil diagnóstico, mas, se não enfrentado de frente, pode levar à debilidade de saúde de milhares de trabalhadores, prejudicando, sensivelmente, a qualidade de vidas das pessoas e a economia de um país. Urge, dessa forma, adotarmos limites legais que preservem a integridade física e metal dos indivíduos, sob pena de perpetuarmos essa “guerra invisível” nas relações de trabalho.
O Estado brasileiro se fundamenta e se justifica pela garantia que oferece ao exercício da cidadania, do respeito à dignidade da pessoa humana, de reconhecimento dos meios e instrumentos de valorização social do trabalho, assegurando a prevalência do interesse social em detrimento do mero interesse particular do lucro.
Corroborando com os dispositivos constitucionais e analisando o contrato de trabalho que ganhou novos contornos com a Constituição Federal de 1988, conclui-se ser o empregador responsável por assegurar aos empregados condições de trabalho, de salário e de vida das mais amplas.
O advogado paranaense Luiz Salvador, em artigo no qual comenta um acórdão que reconheceu a prática de assédio moral, chama a atenção para a própria Constituição: “Necessário ressaltar o fato de que a nossa Carta Política elegeu o meio ambiente (artigo 225) à categoria de bem de uso comum do povo. Impõe ao empregador a obrigação de assegurar ao trabalhador um ambiente de trabalho sadio” [2].
Como se vê, é inquestionável a obrigação do empregador em manter um ambiente de trabalho saudável para seus empregados, inclusive psicologicamente. O Ministério Público do Trabalho tem o múnus público de desempenhar eficazmente sua função de fiscalizar os locais de trabalho, desenvolvendo uma avaliação adequada ao contexto atual, capaz de verificar as condições psicológicas em que os trabalhadores estão sendo submetidos durante suas jornadas.
Nos casos em que as condições psicológicas de trabalho são penosas, o empregado, além de ter direito a pleitear perante a Justiça do Trabalho por uma indenização por dano moral, nos termos do artigo 5ª, X e do artigo 114, VI da Lex Legem, pode, embasada pelo artigo 483, a, b e d da Consolidação das Leis Trabalhistas, postular em juízo a resolução do contrato, por descumprimento dos deveres legais e contratuais por parte de seu empregador,como também, no caso do rigor excessivo ou exigência de serviços além das forças do trabalhador.
Interessante frisar que, a prática isolada das hipóteses de rescisão indireta do contrato de trabalho, acima descritas, bem como o não-cumprimento das obrigações contratuais, que consiste na mora salarial, do ato lesivo à honra e boa fama do empregado, dentre outras não configuram a prática de assédio moral. Este só será demonstrado pela conduta abusiva reiterada, com certa duração no tempo, produzindo um verdadeiro processo destruidor.
Vale ressaltar, ainda, que, o enquadramento, pelos operadores do Direito, do assédio moral nas hipóteses tratadas no artigo 482, b, e no artigo 483 da Consolidação das Leis do Trabalho é muito pertinente, porém, insuficiente. Segundo o artigo 483 da referida Consolidação, para que se configure uma das hipóteses de assédio moral ascendente, é necessário que a conduta do superior hierárquico seja ativa, não cabendo estender tais hipóteses aos casos de omissão, como a mais comum pratica de assédio desenvolvida — o isolamento da vítima. Este último não encontra correspondente na lei trabalhista, cabendo ao empregado, vitima de assédio moral, optar entre a submissão ou o pedido de demissão.
Dessa forma, ainda que os tribunais entendam pela possibilidade do pedido de rescisão indireta do contrato de trabalho pelo empregado assediado moralmente por seu superior hierárquico, haveria casos que careceriam de respaldo legal.
Nesse sentido, tramita na Câmara dos deputados o Projeto de Lei Federal 5.970/01 com o escopo de alterar o artigo 483 da Consolidação das Leis do Trabalho, inserindo com a alínea há figura da coação moral. O projeto prevê, a seguinte redação para a alínea: “Artigo 483: (…) praticar o empregador ou seus prepostos, conta ele, coação moral, através de atos ou expressões que tenham por objetivo ou efeito humilhantes ou degradantes, abusando da autoridade que lhe conferem suas funções”.
O projeto ainda prevê a inserção da alínea h na redação do § 3º do artigo, além da inserção do art.484 – A, o qual, se aprovado o projeto, terá a seguinte redação:
Art. 484 – A: se a rescisão do contrato de trabalho foi motivada pela prática de coação moral do empregador ou de seus prepostos contra o trabalhador, o juiz aumentará, pelo dobro, a indenização devida em caso de culpa exclusiva do empregador.
Da leitura que se faz do projeto percebe-se que o legislador está perdendo uma grande chance de dar ao assédio moral uma tutela realmente eficaz e completa. É que pela sua redação, o projeto prevê as mesmas hipóteses em que já se entende caber a rescisão indireta do contrato de trabalho, não abrindo a oportunidade de previsão para o assédio ascendente e nem pra o horizontal. Ademais, o projeto não prevê a nulidade, ou mesmo anulabilidade, dos atos e efeitos do assédio moral, e nem conseqüências especificas, as quais podem ser administrativas, para o agente assediador.
Além desse projeto de alteração da Consolidação das Leis do Trabalho, existem vários outros projetos e, até mesmo, leis municipais já aprovadas, voltadas para o serviço público, em várias cidades. Tramita também um projeto de criminalização do assédio moral, com o objetivo de criar o tipo penal “assédio moral”.
Diante de todo o exposto, entendemos que, apesar da carência legal diante de alguns casos de assédio moral nas relações de trabalho, as normas trabalhistas de cunho indenizatório, juntamente com a via administrativa, podem ser consideradas um instrumento muito eficaz na tutela jurídica do assédio moral. Todavia, há a necessidade, apenas, que haja uma maior potencialidade da aplicabilidade das normas trabalhistas a fim de garantir o efetivo cumprimento de seus princípios e garantias protecionistas.
Notas
[1] BARRETO, Margarida (2000). Tese de mestrado em Psicologia Social pela PUC. Acesso em 20 de julho de 2004.
[2] SALVADOR, Luiz; Cury, Luciana, “Sindrome de Burnout”, in Júris Síntese Millenium, CD nº 40, março-abril 2003.
Revista Consultor Jurídico