Em reunião, conselheiros do Carf decidem não parar

A nova leva de Ações Populares ajuizadas contra decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), do Ministério da Fazenda, levou a advocacia a voltar a discutir como combater o que tem chamado de “assédio processual”. Em reunião na manhã desta terça-feira (10/9), os membros do Conselho, que é formado por auditores fiscais e advogados tributaristas, e o presidente do órgão, Otacílio Cartaxo, decidiram continuar a julgar, mesmo durante a tramitação das ações. Também decidiram procurar outras entidades para debater formas de proteger os conselheiros de futuras pressões.

Da primeira vez que o Carf foi acometido por ações populares contra suas decisões, por não saber como reagir, os conselheiros decidiram parar de julgar. Foram 59 ações questionando o mérito de decisões do Carf que entenderam não serem devidos os créditos tributários alegados pela Receita Federal. A alegação é a de que, como o Carf é um órgão da Fazenda, ao decidir que créditos fiscais não são devidos, obrigou a União a ser omissa em seu papel de tributar.

O Carf é a última instância administrativa para discussões a respeito de autuações fiscais entre contribuintes e o fisco federal. O problema das primeiras 59 ações, que começaram a ser ajuizadas em agosto de 2012, foi que os conselheiros foram arrolados no polo passivo da causa e tornaram-se litisconsortes. A paralisação decorreu do entendimento de que, como foram citados pessoalmente, qualquer decisão que tomassem como conselheiros poderia voltar a ser alvo de questionamento judicial.

Mas as ações foram logo derrubadas. A Justiça Federal do Distrito Federal entendeu, em pelo menos 37 ações, que não poderiam ser ajuizadas ações populares contra o mérito de decisões administrativas legalmente fundamentadas. A única possibilidade seria se houvesse alguma acusação de desvio ou corrupção, o que nunca foi feito. O entendimento foi confirmado pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

O arrolamento pessoal de conselheiros do Carf também foi rejeitado pela Justiça Federal, e o entendimento baseou a edição da Lei 12.833, em junho deste ano. O texto protege os conselheiros no exercício de suas funções e diz que eles não podem ser acusados pessoalmente pelas decisões do Carf, a não ser que haja dolo.

Por isso, nesta terça, os membros do Carf decidiram continuar julgando, a despeito das três novas ações, que ainda não tiveram julgamento (leia mais sobre as ações abaixo). A decisão sobre o que será feito para que os conselheiros sejam protegidos de futuros assédios virá de reuniões com o presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Marcus Vinícius Furtado Coêlho; com o ministro da Fazenda, Guido Mantega; e com o advogado-geral da União, ministro Luís Inácio Adams. O encontro com a OAB está marcado para esta terça. Os demais, ainda estão sem data. Da OAB, os conselheiros estudam se vão pedir ajuda institucional para despachar com juízes sobre os argumentos usados nas novas ações.

Ajuste de foco
Quem figura como autora das ações é Fernanda Soratto Uliano Rangel, mas quem é reputado como autor é o ex-procurador da Fazenda Nacional Renato Chagas Rangel. Ele aparece nos autos como advogado de Fernanda, sua mulher. Depois de ser derrotado em mais da metade das ações que ajuizou ano passado, Chagas Rangel mudou de estratégia: passou a questionar o fato de as decisões do Carf foram inválidas porque entre os julgadores estão advogados militantes.

A tese é cópia do que vem sendo discutido no Tribunal de Justiça de São Paulo, que tem anulado decisões do Tribunal de Impostos e Taxas paulista, órgão administrativo que julga contestações de contribuintes a autuações do Fisco — equivalente estadual do Carf. Por serem paritários, o TIT e o Carf são formados também por advogados. Mas ao menos nove decisões do TJ afirmam que o Estatuto da OAB proíbe advogados de participar de órgãos julgadores e anularam acórdãos do TIT. As decisões, no entanto, anularam acórdãos favoráveis ao Fisco estadual.

Por falta de interesse processual e de argumentos que justificassem lesão ao patrimônio público, as primeiras Ações Populares contra o Carf fracassaram na Justiça. Até julho, pelo menos 37 caíram.

As novas ações tentaram corrigir esse problema, ao reputar como ato ilegal o fato de o julgamento ter contado com decisão de advogados — apesar de o Regimento do Carf determinar a paridade na composição dos colegiados e descrever situações de impedimento e suspeição, além de não remunerar seus membros. Ademais, a Lei 12.833 garantiu que, na função de julgadores, os conselheiros são independentes de suas vinculações originais, tanto os fiscais quanto os representantes da sociedade civil.

Próprio veneno
Contra as alegações do ex-procurador, os conselheiros do Carf usam uma das razões do próprio: a lesão ao erário. Eles afirmam que o “assédio judicial” custa ao Tesouro porque obriga a Advocacia-Geral da União a defender o Carf e seus membros em cada uma das ações e paralisa, no Conselho, julgamentos importantes para a arrecadação devido à “coação” sentida pelos julgadores.

Afirmam ainda que alegar nulidade de julgamentos que tiveram a participação de advogados pode sair pela culatra, já que também entrariam no pacote decisões favoráveis ao Fisco. Os processos, segundo eles, ameaçam a credibilidade da instituição, que há 86 anos funciona sob os mesmos parâmetros. Por fim, a proposta do Carf, apontam os julgadores, sempre foi a de ser um órgão de julgamento isento, e não um braço do Fisco para arrecadar.

Raio-X das ações
O fato de Renato Chagas Rangel ser o verdadeiro autor das ações é tido como consumado pelos que acompanham os episódios. Ele era procurador da Fazenda Nacional e foi demitido por improbidade administrativa: apropriou-se de honorários nas causas em que defendeu o Fisco. Foi considerado culpado em dois processos.

A primeira demissão aconteceu em 2008, quando o então advogado-geral da União, José Antônio Dias Toffoli, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal, demitiu o procurador “por valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública, e por improbidade administrativa”. A segunda decisão foi em 2010, quando Rangel já não atuava como procurador. Luís Inácio Adams, já na chefia da AGU, determinou a demissão “pela prática de atos de improbidade administrativa e por valer-se do cargo para lograr proveito pessoal, em detrimento da dignidade da função pública, com a restrição de retorno ao serviço federal”. Os fatos também são apurados em Ação Penal, na Justiça Federal de Santa Catarina, contra o casal.

Em decorrência da demissão, a seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil instaurou, de ofício, processo administrativo para apurar a conduta do ex-procurador. O pedido foi feito pelo presidente da seccional, Felipe Santa Cruz, ao Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-RJ com base no inciso 27 do artigo 34 do Estatuto da OAB, que considera falta disciplinar “tornar-se moralmente inidôneo para o exercício da advocacia”.

Fato é que, agora, Rangel tem contado com o apoio da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. A PGFN deu parecer favorável em algumas das dezenas de ações que pedem a modificação de decisões que favoreceram contribuintes. Em agosto, Rangel entrou com mais três Ações Populares contra decisões em casos de monta, todas tratando de aproveitamento de ágio interno para abatimento de tributos.

O ágio interno, que permite a dedução da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, é formado na compra de uma empresa por outra, e usado em planejamentos tributários. Coincidentemente, essa tática é hoje o alvo número um da Receita Federal. As autuações fiscais que questionam aproveitamento de ágio em operações consideradas fantasiosas ou sem propósito negocial chegam a R$ 100 bilhões.

Quem acompanha o andamento das Ações Populares desde o ano passado estranhou a coincidência. Primeiro pelo fato de Renato Rangel saber justamente quais são os casos que envolvem uso de ágio que são de interesse da Receita Federal e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. Depois, pelo fato de o ex-procurador estar tão atualizado a respeito de decisões importantes do Carf e que tratam justamente dos temas de maior preocupação da Fazenda.

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