por Arryanne Queiroz
No julgamento do HC 91.952, em 7 de agosto de 2008, em oposição ao Superior Tribunal de Justiça e ao Ministério Público Federal, o Supremo Tribunal Federal anulou a sessão de julgamento do Tribunal do Júri que condenou um homem por homicídio triplamente qualificado, ao argumento de que a manutenção do réu algemado perante os jurados, a despeito das outras circunstâncias, influenciou na condenação, o que configuraria violação ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Desacertos à parte, como desdobramento disso, o STF editou a Súmula Vinculante 11, que transforma o uso das algemas em exceção não apenas no âmbito do tribunal do júri, como impõe a Lei 11.689/2008, mas também para a execução de ordens judiciais de prisão cautelar. O problema é que no aspecto formal e material, a Súmula Vinculante 11 é um sacrilégio contra a integridade da Constituição Federal de 1988.
A edição da súmula não atendeu vários requisitos impostos pelo artigo 103-A da Constituição, sobre: 1) reiteradas decisões sobre matéria constitucional; 2) validade, interpretação e a eficácia de normas determinadas; 3) controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública; 4) grave insegurança jurídica; 5) relevante multiplicação de processo sobre questões idênticas.
A súmula extrapolou os limites da decisão tomada no HC 91.952, pois não houve reiteradas decisões sobre matéria constitucional envolvendo uso de algemas, mas, somente, um julgamento isolado de um HC cujo objeto foi uma nulidade no âmbito de tribunal do júri. Nesse ponto, a falta de correlação entre o objeto do HC e o objeto da súmula é patente. Não bastasse, não houve ponderação pelo STF sobre validade, interpretação e eficácia de norma determinada, simplesmente porque a Lei 11.689/08, que talvez justificasse a edição, sequer havia entrado em vigor por ocasião do julgamento do HC.
O objeto de discussão do HC é nulidade causada pelo uso de algemas em acusado em julgamento em plenário do júri. E isso é bastante diferente do uso de algemas em qualquer situação. Ou seja, uma súmula vinculante sobre algemas, nesse contexto, somente seria possível se versasse sobre nulidade pelo uso de algemas em júri. Afora isso, quem pesquisa a jurisprudência do STF não localiza os julgados que comprovam a existência de matéria controvertida. Isso porque o uso de algemas na execução de prisão cautelar nunca foi assunto controvertido nem mesmo periférico em processos criminais.
Aliás, é preciso esforço para acreditar que existam milhares de processos nos tribunais cuja causa de pedir remota (o suporte fático do pedido deduzido em juízo) seja objetivamente o uso de algemas. A partir dessa constatação, cai por terra ilações sobre insegurança jurídica ou risco de relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
A prova de que o STF regulamentou a matéria, fazendo as vezes de Poder Legislativo — numa usurpação de competência sem precedentes que põe em risco o princípio dos freios e contrapesos —, é que a nova súmula impõe condições para o uso de algemas que nem mesmo a legislação ordinária faz. Apenas os artigos 474, §3º, do CPP e o 234, §1º, do CPPM versavam, antes da Lei 11.689/08, sobre algemas. Mas nenhum deles exige explicação por escrito para uso da algema. Ou seja, o STF inovou por via contestável.
Além disso, a súmula alerta para a aplicação de penas diante do seu descumprimento. O nexo de causalidade para a aplicação da penalização civil, administrativa e penal reside na inobservância da súmula. O problema é que, segundo o princípio da legalidade, apenas lei ordinária pode criar crimes e preceitos secundários (penas). Afora isso, somente estatutos que disciplinam carreiras jurídicas podem prever hipóteses de incidência de pena disciplinar, sem mencionar que danos morais pelo uso de algemas não é dano in re ipsa — não dispensa prova.
Nunca antes, na história do país, se viveu com tanta força o Estado Democrático de Direito. Mas ao descumprir todos os requisitos do artigo 103-A, o STF ameaça essa conquista do povo, que não deseja retroceder ao Estado Policial nem a nenhuma outra forma de hegemonia de poder.
Sobre isso, aliás, vale registrar que não existe Estado Policial quando instituições como o Judiciário, o Ministério Público, o Legislativo, a OAB e a imprensa atuam com liberdade, autonomia e independência. Nesse debate sobre algemas, é preciso refletir sobre divulgação de imagens de presos — afinal, restrições já existem no ECA — e sobre a disposição do Legislativo para cumprir sua missão constitucional. Seja como for, se, por um lado, a preocupação do STF é legítima diante de eventuais abusos, por outro, isso jamais pode ser pretexto para a profanação da Constituição. Infelizmente, o STF não acertou desta vez.
Revista Consultor Jurídico